Nos Corredores da Morte
Sexta-feira, 4 de Outubro de 2002 João Grosso decidiu remontar a encenação que o italiano Giorgio Corsetti fez das "Barcas", de Gil Vicente, no Teatro Nacional São João, no Porto. E agora há 15 actores novos, no Teatro D. Maria II, em Lisboa. Num lugar depois da morte, há muita pulsão de vida. Estreia dia 10. Joana Gorjão Henriques Estamos num lugar depois da morte. Mas há muita pulsão de vida. Acelerada e festiva; abafada, quando se percorrem territórios interiores; actores que são atirados para o palco, figuras que vão desfilando e sendo "penduradas" numa árvore; uma chuva de bolas de plástico transparente; a recriação de uma iluminura renascentista. E há tábuas que caem, transformando-se num corredor da morte onde os pecadores lançam uma enorme pergunta sobre a sua vida. É um Gil Vicente espectacular. Encenado por Giorgio Corsetti e agora com remontagem de João Grosso, "Barcas", de Gil Vicente, reune os autos da Barca do Inferno, do Purgatório e da Barca da Glória. No Teatro D. Maria II, em Lisboa, nenhuma alma é poupada ao julgamento implacável do Diabo (que assume diversas formas, todas elas com o corpo de João Grosso ) e do Anjo (Glória de Matos). gargalhadas histriónicas. É certo que passaram quase 500 anos sobre a escrita destas moralidades e que existem evocações cénicas da época, sobretudo nos figurinos. Não temeis, no entanto, a incompreensão de algumas palavras do português arcaico, do latim e do castelhano, pois além delas serem apropriadas pelos actores em tom coloquial, a expressividade da representação complementa os sentidos. E não esperais uma reconstituição histórica. Porque é como se Corsetti tivesse usado a obra vicentina para a "remontar" no palco - está lá, e agora com a direcção de João Grosso, a representação da sátira impiedosa, da crítica corrosiva à sociedade (do sapateiro ao papa, todos são atingidos), o humor na caracterização das figuras, os conflitos, mas também o lirismo poético. Datada de 1516 ou 1517, a "Barca do Inferno" faz desfilar "pecadores" - só se salvam das garras e gargalhadas histriónicas do Diabo pérfido os quatro Cavaleiros (por que o Judeu, nem o Anjo nem o Diabo querem carregar). No auto do "Purgatório" (1518), escrito para ser representado durante as festividades natalícias, os que cometeram "pecadilhos" esperam pelo destino, enquanto a virgem negra-Diabo os provoca até eles entrarem na barca do Anjo. A "progressão" do poder atinge o seu cume na "Barca da Glória", moralidade associada à redenção pascal, onde até o papa é condenado ao Inferno - mas perante o arrependimento, aparecerá um Cristo misericordioso. Uma das características mais sublinhadas em Gil Vicente é, justamente, a crítica social. Mas como não pensar no confronto das figuras-tipo das "Barcas" com a morte? Até porque é nesse momento que emergem visões ácidas sobre os julgados, sobre o poder. Na "Barca da Glória", o Diabo confisca o ouro aos poderosos, despe-os violentamente, escorraça-os, ata-os a cordas: ao homem destituído de poder, descaracterizado socialmente, uma individualidade no meio de outras, apenas resta a redenção. O próprio ritmo do espectáculo, agora um pouco mais acelerado do que o original, seguiu esta premissa: se é num tempo pós-morte que as figuras habitam, então a pulsação não pode ser realista. "Estas criaturas passam a morte, passam para outro sítio. Estão como almas, ainda que com reflexos de corpo, mas têm uma necessidade urgentíssima de se arrumar, seja no Céu, seja no Inferno. Portanto é um tempo de urgência", diz João Grosso. Que relação existe entre a obra de Gil Vicente e a morte? "É um pouco como uns versos de Pessoa na 'Ode Marítima': 'o misterioso receio ancestral à chegada e ao novo'. Há uma passagem, não sabemos o que está do outro lado. Aqui sabem que há o Inferno ou o Céu, mas quando passam a morte são confrontados com um mundo de criaturas diabólicas, divinas, que não têm capacidade de descodificar. E isso é apavorante. Ligo sempre as coisas à minha forma de pensar: tenho uma relação pragmática com a morte e quando morre alguém surge-me sempre não uma interrogação sobre o que vem a seguir mas uma catadupa de filmes para o qual não há final, imagens e memórias que põem em causa o modo de nos relacionarmos com a vida", acrescenta Grosso. frescura física. Regressemos a um outro tempo, do século XXI, para percorrer esta longa remontagem. Em Janeiro de 2000 o palco do São João acolheu um espectáculo ambicioso, dirigido pelo encenador italiano, a convite do então director Ricardo Pais. A data ficaria marcada por uma tragédia, a morte da actriz Fernanda Alves, que faria o importantíssimo papel de Anjo ao lado de João Grosso, o Diabo. Nada de mais tenebroso, ainda para mais num espectáculo cuja acção se centra num lugar pós-morte. Estava planeada a reposição do espectáculo no ano seguinte, uma digressão por Lisboa, Coimbra, Évora. A direcção do TNSJ mudou - José Wallenstein substitui Ricardo Pais - e o projecto não se integrava na linha artística do novo director, conta João Grosso. Manuel Maria Carrilho, então ministro da Cultura, convidou Grosso para o D. Maria II; o seu sucessor, José Sasportes, desfez o convite, escolhendo Maria de Medeiros. Que conversou com Grosso sobre os seus projectos - a actriz entusiasmou-se com a reposição das "Barcas" no D. Maria. Novo ministro, Augusto Santos Silva: Grosso foi novamente convidado para o Nacional. E o projecto manteve-se nos seus planos. Ironicamente, a estreia dá-se quando Ricardo Pais decidiu aceitar o convite para regressar ao cargo do qual Wallenstein se demitira em Junho. Em ano de comemorações vicentinas, para Grosso era oportuno aproveitar o ponto de vista do encenador italiano, transformar os textos num "grande espectáculo" onde se exige aos actores "uma frescura física intensa". "Era impensável convidar a equipa que tinha feito o espectáculo no Porto a vir para Lisboa trabalhar, triplicava os custos. Convidámos 15 novos actores e daí chamar-lhe remontagem e não reposição." o mesmo e outro. O trabalho com os actores foi assim feito de raiz. Grosso recusou-se a ver o vídeo do espectáculo original e impediu também os actores de o visonar - para que não houvesse o risco de imitações. "Foi como construir um espectáculo de início, mas onde tinha os vectores desenhados pelo encenador." Não há alteração significativa, mas Grosso diz que, em termos teatrais, este é um outro espectáculo: "A maneira de trabalhar do Corsetti é também a minha: não há marcações prévias, é um trabalho em que o actor, ao desenvolver um pensamento próprio sobre as ideias que o texto lhe propõe, vai improvisando e desenvolvendo o seu 'setting' - digamos, o seu desenvolvimento no espaço, a relação com as outras personagens. É um trabalho muito assente na criatividade e na personalidade do actor que o faz." A alteração mais profunda foi, no entanto, o final da "Barca do Inferno" e da "Barca da Glória", que encerra o espectáculo. Grosso decidiu agora seguir o texto de Vicente e introduzir o quarto Cavaleiro que Corsetti omitira - para o vicentista Cardoso Bernardes perdia-se assim o sentido de harmonia do canto a quatro vozes (cerne de toda a moralidade). Quanto à finalização do espectáculo, decidiu voltar a incluir o desenlace que Corsetti cortara - a vinda do Cristo da Ressurreição, repartindo os remos das chagas pelos condenados -, outras das críticas, mais afincadas, de Cardoso Bernardes a um espectáculo que não deixou de considerar "marcante". Barcas
De Gil Vicente. Encenação de Giorgio Corsetti, com remontagem de João Grosso. Com Grosso, Glória de Matos, Alberto Magassela, Luísa Cruz, Rogério Vieira, José Neves, Paula Mora, entre outros.
LISBOA. Teatro Nacional D. Maria II. Pç. D. João V. Tel. 21-3250800. Estreou-se ontem. Até 28 de Novembro. De 3ª a sáb., às 21h30; dom., às 16h (4ª e 6ª também às 15h30). Bilhetes entre 2,5 e 15 euros.
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Maria II, em Lisboa, nenhuma alma é poupada ao julgamento implacável do Diabo (que assume diversas formas, todas elas com o corpo de João Grosso ) e do Anjo (Glória de Matos). gargalhadas histriónicas. É certo que passaram quase 500 anos sobre a escrita destas moralidades e que existem evocações cénicas da época, sobretudo nos figurinos. Não temeis, no entanto, a incompreensão de algumas palavras do português arcaico, do latim e do castelhano, pois além delas serem apropriadas pelos actores em tom coloquial, a expressividade da representação complementa os sentidos. E não esperais uma reconstituição histórica. Porque é como se Corsetti tivesse usado a obra vicentina para a "remontar" no palco - está lá, e agora com a direcção de João Grosso, a representação da sátira impiedosa, da crítica corrosiva à sociedade (do sapateiro ao papa, todos são atingidos), o humor na caracterização das figuras, os conflitos, mas também o lirismo poético. Datada de 1516 ou 1517, a "Barca do Inferno" faz desfilar "pecadores" - só se salvam das garras e gargalhadas histriónicas do Diabo pérfido os quatro Cavaleiros (por que o Judeu, nem o Anjo nem o Diabo querem carregar). No auto do "Purgatório" (1518), escrito para ser representado durante as festividades natalícias, os que cometeram "pecadilhos" esperam pelo destino, enquanto a virgem negra-Diabo os provoca até eles entrarem na barca do Anjo. A "progressão" do poder atinge o seu cume na "Barca da Glória", moralidade associada à redenção pascal, onde até o papa é condenado ao Inferno - mas perante o arrependimento, aparecerá um Cristo misericordioso. Uma das características mais sublinhadas em Gil Vicente é, justamente, a crítica social. Mas como não pensar no confronto das figuras-tipo das "Barcas" com a morte? Até porque é nesse momento que emergem visões ácidas sobre os julgados, sobre o poder. Na "Barca da Glória", o Diabo confisca o ouro aos poderosos, despe-os violentamente, escorraça-os, ata-os a cordas: ao homem destituído de poder, descaracterizado socialmente, uma individualidade no meio de outras, apenas resta a redenção. O próprio ritmo do espectáculo, agora um pouco mais acelerado do que o original, seguiu esta premissa: se é num tempo pós-morte que as figuras habitam, então a pulsação não pode ser realista. "Estas criaturas passam a morte, passam para outro sítio. Estão como almas, ainda que com reflexos de corpo, mas têm uma necessidade urgentíssima de se arrumar, seja no Céu, seja no Inferno. Portanto é um tempo de urgência", diz João Grosso. Que relação existe entre a obra de Gil Vicente e a morte? "É um pouco como uns versos de Pessoa na 'Ode Marítima': 'o misterioso receio ancestral à chegada e ao novo'. Há uma passagem, não sabemos o que está do outro lado. Aqui sabem que há o Inferno ou o Céu, mas quando passam a morte são confrontados com um mundo de criaturas diabólicas, divinas, que não têm capacidade de descodificar. E isso é apavorante. Ligo sempre as coisas à minha forma de pensar: tenho uma relação pragmática com a morte e quando morre alguém surge-me sempre não uma interrogação sobre o que vem a seguir mas uma catadupa de filmes para o qual não há final, imagens e memórias que põem em causa o modo de nos relacionarmos com a vida", acrescenta Grosso. frescura física. Regressemos a um outro tempo, do século XXI, para percorrer esta longa remontagem. Em Janeiro de 2000 o palco do São João acolheu um espectáculo ambicioso, dirigido pelo encenador italiano, a convite do então director Ricardo Pais. A data ficaria marcada por uma tragédia, a morte da actriz Fernanda Alves, que faria o importantíssimo papel de Anjo ao lado de João Grosso, o Diabo. Nada de mais tenebroso, ainda para mais num espectáculo cuja acção se centra num lugar pós-morte. Estava planeada a reposição do espectáculo no ano seguinte, uma digressão por Lisboa, Coimbra, Évora. A direcção do TNSJ mudou - José Wallenstein substitui Ricardo Pais - e o projecto não se integrava na linha artística do novo director, conta João Grosso. Manuel Maria Carrilho, então ministro da Cultura, convidou Grosso para o D. Maria II; o seu sucessor, José Sasportes, desfez o convite, escolhendo Maria de Medeiros. Que conversou com Grosso sobre os seus projectos - a actriz entusiasmou-se com a reposição das "Barcas" no D. Maria. Novo ministro, Augusto Santos Silva: Grosso foi novamente convidado para o Nacional. E o projecto manteve-se nos seus planos. Ironicamente, a estreia dá-se quando Ricardo Pais decidiu aceitar o convite para regressar ao cargo do qual Wallenstein se demitira em Junho. Em ano de comemorações vicentinas, para Grosso era oportuno aproveitar o ponto de vista do encenador italiano, transformar os textos num "grande espectáculo" onde se exige aos actores "uma frescura física intensa". "Era impensável convidar a equipa que tinha feito o espectáculo no Porto a vir para Lisboa trabalhar, triplicava os custos. Convidámos 15 novos actores e daí chamar-lhe remontagem e não reposição." o mesmo e outro. O trabalho com os actores foi assim feito de raiz. Grosso recusou-se a ver o vídeo do espectáculo original e impediu também os actores de o visonar - para que não houvesse o risco de imitações. "Foi como construir um espectáculo de início, mas onde tinha os vectores desenhados pelo encenador." Não há alteração significativa, mas Grosso diz que, em termos teatrais, este é um outro espectáculo: "A maneira de trabalhar do Corsetti é também a minha: não há marcações prévias, é um trabalho em que o actor, ao desenvolver um pensamento próprio sobre as ideias que o texto lhe propõe, vai improvisando e desenvolvendo o seu 'setting' - digamos, o seu desenvolvimento no espaço, a relação com as outras personagens. É um trabalho muito assente na criatividade e na personalidade do actor que o faz." A alteração mais profunda foi, no entanto, o final da "Barca do Inferno" e da "Barca da Glória", que encerra o espectáculo. Grosso decidiu agora seguir o texto de Vicente e introduzir o quarto Cavaleiro que Corsetti omitira - para o vicentista Cardoso Bernardes perdia-se assim o sentido de harmonia do canto a quatro vozes (cerne de toda a moralidade). Quanto à finalização do espectáculo, decidiu voltar a incluir o desenlace que Corsetti cortara - a vinda do Cristo da Ressurreição, repartindo os remos das chagas pelos condenados -, outras das críticas, mais afincadas, de Cardoso Bernardes a um espectáculo que não deixou de considerar "marcante". Barcas
De Gil Vicente. Encenação de Giorgio Corsetti, com remontagem de João Grosso. Com Grosso, Glória de Matos, Alberto Magassela, Luísa Cruz, Rogério Vieira, José Neves, Paula Mora, entre outros.
LISBOA. Teatro Nacional D. Maria II. Pç. D. João V. Tel. 21-3250800. Estreou-se ontem. Até 28 de Novembro. De 3ª a sáb., às 21h30; dom., às 16h (4ª e 6ª também às 15h30). Bilhetes entre 2,5 e 15 euros.
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