NÃO SOMOS TODOS MAUS
Segunda-feira, 03 de Novembro de 2003
Um dos filhos do primeiro-ministro angolano sofreu recentemente um pequeno acidente na Ilha de Luanda. Segundo algumas testemunhas não conseguiu travar a tempo, batendo contra o carro que seguia à sua frente. Enfurecido, saiu para a rua, arrancou pela janela o outro condutor, um homem de sessenta anos, e espancou-o brutalmente. Os polícias chamados ao local foram recebidos com insultos e provocações mas, reconhecendo nele o "filho do chefe", não se atreveram a levá-lo preso. Confrontado, porém, com a indignação dos populares o jovem acobardou-se, acabando por fugir no carro da vítima.
A mim parece-me isto mais do que um simples fait divers tropical - parece-me uma versão condensada e premonitória da história do regime angolano: primeiro atropela o país, depois agride-o, desafiando as autoridades e troçando de toda a gente. Quando o povo perder a paciência, e não há-de faltar muito, fugirá, com a cauda entre as pernas, levando todavia os bens da vítima.
Nessa altura, é claro, aqueles que hoje visitam o país, desdobrando-se em vénias aos chefes, e aos seus filhos, dirão que andaram pelos corredores do Palácio da Cidade Rosada a salamalecar não os chefes, que sempre detestaram, e sim o martirizado povo de Angola, representado nesses chefes. Compreendo. Não compreendo. Talvez eu não tenha sentido de Estado.
Encontrei há poucos dias, numa festa, nos arredores de Luanda, um próspero empresário local, antigo ministro, homem dinâmico, culto e inteligente, que se orgulha de ter percorrido os cantos mais remotos do país:
"Precisamos conversar", disse-me, depois de me estreitar num formidável abraço: "Tens de conhecer algumas das pessoas boas que teimam em não deixar afundar este barco. Não somos todos maus."
Compreendo o desespero dele. Sim, eu sei, resistem em Angola pessoas excepcionais: honestas, num país onde permanecer honesto exige considerável ousadia; competentes, num país onde a competência ainda é vista como uma ameaça; trabalhadoras, num país onde, durante séculos, o trabalho foi entendido como uma ignomínia, uma pecha de escravos. Na sua maioria, porém, estas pessoas permanecem na sombra. O crime, em Angola, é coisa pública. O horror está à superfície. A beleza, essa, passou à clandestinidade. Milhões de pessoas no mundo inteiro conhecem o mais famoso diplomata angolano, Pierre Falcone, que não é nem angolano nem diplomata, tendo passado de comerciante de armas a especialista em ensino universitário na UNESCO. Mas quantas pessoas ouviram falar, por exemplo, em Rui Duarte de Carvalho, enorme poeta, antropólogo, cineasta, uma das mais extraordinárias e complexas figuras da cultura lusófona? Quantas pessoas conhecem o pintor António Ole, os editores e animadores culturais Jacques dos Santos e Adriano Botelho de Vasconcelos, o actor Orlando Sérgio, o guitarrista e compositor Carlitos Vieira Dias, o cineasta Zézé Gamboa, a bailarina e coreógrafa Ana Clara Guerra Marques? Quantas pessoas, fora de Angola, ouviram falar em Aguiar dos Santos, em Américo Gonçalves, em Rafael Marques, em Tandala Francisco, entre muitos outros, jornalistas que com assombrosa coragem têm enfrentado o poder, denunciando a corrupção e a incompetência?
O que destruiu Angola não terá sido apenas a guerra. Afinal, guerra era algo que já havia antes e foi precisamente nos anos da guerra, a partir de 1960, que a economia angolana deu o grande salto em frente. O que destruiu Angola foi sobretudo a opção pelo socialismo totalitário, com a nacionalização de todas as empresas, a fuga do capital e dos quadros técnicos e a consequente ascensão da mediocridade. Com o colapso do modelo socialista, e à medida que a economia se for recuperando, será o próprio dinamismo do sistema a impor mudanças políticas. A democratização de Angola pode ser atrasada, mas não travada, pela mediocridade predadora instalada no aparelho de Estado.
Creio que o povo angolano já compreendeu isto. Espero que os dirigentes e empresários estrangeiros que por estes dias têm desembarcado em Angola - todas as semanas chegam novas delegações - também o tenham compreendido.
José Eduardo Agualusa
NÃO SOMOS TODOS MAUS
Segunda-feira, 03 de Novembro de 2003
Um dos filhos do primeiro-ministro angolano sofreu recentemente um pequeno acidente na Ilha de Luanda. Segundo algumas testemunhas não conseguiu travar a tempo, batendo contra o carro que seguia à sua frente. Enfurecido, saiu para a rua, arrancou pela janela o outro condutor, um homem de sessenta anos, e espancou-o brutalmente. Os polícias chamados ao local foram recebidos com insultos e provocações mas, reconhecendo nele o "filho do chefe", não se atreveram a levá-lo preso. Confrontado, porém, com a indignação dos populares o jovem acobardou-se, acabando por fugir no carro da vítima.
A mim parece-me isto mais do que um simples fait divers tropical - parece-me uma versão condensada e premonitória da história do regime angolano: primeiro atropela o país, depois agride-o, desafiando as autoridades e troçando de toda a gente. Quando o povo perder a paciência, e não há-de faltar muito, fugirá, com a cauda entre as pernas, levando todavia os bens da vítima.
Nessa altura, é claro, aqueles que hoje visitam o país, desdobrando-se em vénias aos chefes, e aos seus filhos, dirão que andaram pelos corredores do Palácio da Cidade Rosada a salamalecar não os chefes, que sempre detestaram, e sim o martirizado povo de Angola, representado nesses chefes. Compreendo. Não compreendo. Talvez eu não tenha sentido de Estado.
Encontrei há poucos dias, numa festa, nos arredores de Luanda, um próspero empresário local, antigo ministro, homem dinâmico, culto e inteligente, que se orgulha de ter percorrido os cantos mais remotos do país:
"Precisamos conversar", disse-me, depois de me estreitar num formidável abraço: "Tens de conhecer algumas das pessoas boas que teimam em não deixar afundar este barco. Não somos todos maus."
Compreendo o desespero dele. Sim, eu sei, resistem em Angola pessoas excepcionais: honestas, num país onde permanecer honesto exige considerável ousadia; competentes, num país onde a competência ainda é vista como uma ameaça; trabalhadoras, num país onde, durante séculos, o trabalho foi entendido como uma ignomínia, uma pecha de escravos. Na sua maioria, porém, estas pessoas permanecem na sombra. O crime, em Angola, é coisa pública. O horror está à superfície. A beleza, essa, passou à clandestinidade. Milhões de pessoas no mundo inteiro conhecem o mais famoso diplomata angolano, Pierre Falcone, que não é nem angolano nem diplomata, tendo passado de comerciante de armas a especialista em ensino universitário na UNESCO. Mas quantas pessoas ouviram falar, por exemplo, em Rui Duarte de Carvalho, enorme poeta, antropólogo, cineasta, uma das mais extraordinárias e complexas figuras da cultura lusófona? Quantas pessoas conhecem o pintor António Ole, os editores e animadores culturais Jacques dos Santos e Adriano Botelho de Vasconcelos, o actor Orlando Sérgio, o guitarrista e compositor Carlitos Vieira Dias, o cineasta Zézé Gamboa, a bailarina e coreógrafa Ana Clara Guerra Marques? Quantas pessoas, fora de Angola, ouviram falar em Aguiar dos Santos, em Américo Gonçalves, em Rafael Marques, em Tandala Francisco, entre muitos outros, jornalistas que com assombrosa coragem têm enfrentado o poder, denunciando a corrupção e a incompetência?
O que destruiu Angola não terá sido apenas a guerra. Afinal, guerra era algo que já havia antes e foi precisamente nos anos da guerra, a partir de 1960, que a economia angolana deu o grande salto em frente. O que destruiu Angola foi sobretudo a opção pelo socialismo totalitário, com a nacionalização de todas as empresas, a fuga do capital e dos quadros técnicos e a consequente ascensão da mediocridade. Com o colapso do modelo socialista, e à medida que a economia se for recuperando, será o próprio dinamismo do sistema a impor mudanças políticas. A democratização de Angola pode ser atrasada, mas não travada, pela mediocridade predadora instalada no aparelho de Estado.
Creio que o povo angolano já compreendeu isto. Espero que os dirigentes e empresários estrangeiros que por estes dias têm desembarcado em Angola - todas as semanas chegam novas delegações - também o tenham compreendido.
José Eduardo Agualusa