Suplemento Pública

31-10-2003
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Vindima no Dão

Segunda-feira, 27 de Outubro de 2003 %Luís Miguel Viana O céu baixo, de nuvens escuras, tornou-se tenso de tanta água conter. Começa a pingar, mas o pior ainda está para vir. Em toda a região vinícola do Dão, nos campos entre as serras do Caramulo e da Estrela, a vindima já leva uma semana nesta terça-feira em que a chuva se aproxima vinda do litoral. É o pior que pode acontecer: e, todavia, no Dão são raros os anos em que tal não ocorre durante a apanha das uvas. Ia bom este ano de 2003, de Primavera seca e Verão ardente. Esperava-se muito de tanta uva, tão madura, tão sã, tão bonita. Uma colheita excepcional - era essa esperança que nas últimas semanas pulsava com vigor dentro das quintas. E agora isto. Chuva. Pedro de Vasconcellos e Souza, enólogo da Casa de Santar, olha pela manhã as uvas molhadas que estão a ser despejadas no tegão à entrada da sua adega. Filho de conde, não foi o português a sua primeira língua. Estudou agronomia e enologia na Suíça e na França e só em 1990 veio para Santar, para o magnífico solar do século XVII em cujas adegas erguidas nas traseiras dos jardins se vinifica desde 1790. É um homem alto, aloirado, que cultiva as maneiras pausadas, uma afectação suave, as conversas a meio-tom. Algo de si passou para quem trabalha na casa porque, mesmo nos períodos de maior trabalho, mesmo quando é preciso correr pelos pátios, ninguém grita ou fala alto. "Se a chuva for muita vou interromper a vindima", declara Pedro de Vasconcellos e Souza. Cala-se um momento para que o anúncio produza o seu efeito. E é com um ar distante que explica que sempre que chove as pessoas entram em pânico, metem-se a apanhar as uvas a todo o custo com medo que apodreçam. "Um erro", sublinha, se as vinhas estiverem em boa situação sanitária, capazes de esperar pelo tempo seco que se seguirá. "As pessoas que trabalham comigo e que são responsáveis pela vinha garantem que os cachos estão óptimos, que aguentam mais duas, três semanas sem qualquer problema", continua o enólogo de Santar. "Para quê stressar? Vamos arriscar e esperar mais uns dias". Arriscar, é essa a palavra apesar de tudo. "Um risco calculado", sorri José Carlos Oliveira, responsável pelas vinhas desde 1999, que chegou entretanto do Douro, onde reside, e que vai ao terreno calculá-lo, ao risco. Começa pela parcela da Casa de Ferro, umas vinhas velhas onde prevalecem as castas baga e mourisco. Desce do jipe e avança entre as fiadas, sempre a mexer nos cachos, a afastar as folhas, a espreitar, provando bagos aqui e ali. "Estão boas", murmura, "a sanidade está óptima". Dali parte para a Matinha, verifica vinhas mais jovens de tinta roriz e palpa os seus cachos enormes, sente-lhes a densidade, revirando-os. Espreita a touriga nacional, ainda toda na vinha: este ano Pedro quer as uvas no seu pico de maturação - tem o tal sonho de fazer grandes vinhos em 2003 - e ele garantiu-lhe que pode esperar, dar tempo ao tempo, deixar os cachos nas vides, empurrar a vindima para lá dos meados de Outubro. O que ali vê confirma-lhe a justeza da decisão. Na adega, aliás, não falta vinho: começaram pelo jaen e pela tinta pinheiro e, depois, vindimaram todo o alfrocheiro, uma casta com sensibilidade à podridão e que já estava no ponto certo de maturação. "As castas não evoluem todas ao mesmo tempo", diz José Carlos, "por isso faz todo o sentido preparar uma estratégia de circuito de vindima". As suas botas pisam agora a vinha das Alminhas, onde a tinta roriz, a touriga e uma pequena experiência de tinto cão (casta tardia, de corpo macio e aromas florais) estão em perfeitas condições. Chega ao Alto Cedro onde se vindima dentro de um manto de chuva branda, goticular. Mais de trinta homens e mulheres vão enchendo caixas de plástico vermelho e cinzento, colocando-as em cima do camião. Tudo se faz num silêncio insólito que a chuva agrava. José Carlos aproxima-se de César, engenheiro "residente" na quinta e seu braço direito na gestão das vinhas, que fala com Alberto, o empreiteiro agrícola responsável por aquela gente. "Hoje vai ter que ser até ao fim, a não ser que caia um dilúvio", atira-lhe José Carlos ao cumprimentá-lo. Alberto põe o ar resignado de quem já percebeu que a vindima deverá ser interrompida e que ficará sem dar que fazer aos trabalhadores o resto da semana: "A minha preocupação já é com segunda-feira", suspira. "Nessa altura vai estar bom", conforta-o César. "Vamos ver...!" De regresso à adega, José Carlos declara que nas vinhas as uvas estão em condições de esperar. "Ah", murmura Pedro Vasconcellos e Souza fazendo com as sobrancelhas uma curva que significa: já sabia disso. Mas não toma qualquer decisão, dado que o administrador-delegado da Sociedade Agrícola de Santar SA tem uma palavra a dizer: trata-se de Daniel Picciotto, da família colombiana que detém a multinacional Pedro Domecq e os vinhos Undurraga no Chile, que se encontra do outro lado do Atlântico. À tarde, quando já possuírem todos os dados, farão uma conferência através de uma linha de satélite dedicada. Entretanto almoça-se. E a seguir, quando os engenheiros Miguel e Cecília redobram a sua actividade junto ao tegão - ele supervisionando o virar das cubas para a espiral que conduz as uvas ao desengaçador/esmagador, ela recolhendo amostras e aspergindo as uvas com enzimas - é tempo de visitar os vinhos, de ver como palpitam, de sentir como nascem. Estão 350 mil quilos de uvas em plena fermentação. Pedro sobe ao passadiço que dá acesso à parte superior e começa a destapar as cubas uma a uma. Com a mão direita em concha transporta ao nariz os aromas que saem delas através de um gesto semelhante ao de tirar água de um regato para beber. A cuba 12 entrega-lhe um aroma alegre, floral, amorangado. A seguinte já está mais evoluída, com alguma cereja preta, framboesa, talvez ameixa. É o "blend" (ou "mistura") de tinta roriz e de jaen para o Casa de Santar normal. Para o reserva, esse, só lá para frente se farão junções: como as suas uvas são as melhores, é completamente diferente o seu potencial de extracção, ou seja, a sua capacidade de transferir cor, aromas e sabores para o mosto, o sumo das uvas. Fá-lo-ão com tempo naquelas cubas de temperatura controlada, por norma a 25º, às vezes a menos, prolongando a fermentação alcoólica. O enólogo destapa agora uma cuba de roriz e ela brinda-o com uma baforada herbácea. "É selvagem, florestal, intensa", enumera Pedro. "Estou encantado com esta cuba, radiante!" Espreita a seguir o alfrocheiro, de onde vem uma sugestão ácida muito fresca, um aroma intenso a frutos vermelhos jovens como o morango ou a amora, também um pouco de pepino e até maçã. Pedro concentra-se naquela cuba depois de uma aspiração quase imperceptível: no seu reserva (cuja edição 2000 está a chegar ao mercado), a seguir à austeridade nobre da touriga nacional exprime-se algo daquela alegria. Fecha a cuba satisfeito: "Vai estar aqui mais 15 dias, no mínimo". Faz ainda uma passagem rápida pelo "melocotón" e pelo maracujá da casta branca bical, a seguir pelo doce sopro do pêssego e do ananás da malvasia. Desce então ao painel das temperaturas: a maior parte das cubas estão a 24º, só uma está a 30,5º, a macerar. No final desta fase todas passarão quase directamente à fermentação maloláctica, a transformação do ácido málico em láctico, que amacia os vinhos. Passarão depois por madeira, no caso barricas de carvalho Seguin-Moreau de 225 litros, o normal até seis meses, o reserva até um ano. Só depois se engarrafa, para que o casamento com a garrafa se produza no tempo certo. A tarde está a meio e começa a chover intensamente. No enlameado da vinha há um instante de indecisão. Nesse momento Pedro está rodeado de barricas na adega de envelhecimento e, para além de sentir o cair irritado da chuva, é informado que a capacidade das cubas de fermentação está a atingir o limite. "Telefonem para o José Carlos", ordena, "e marquem uma reunião para daqui a dez minutos: é preciso tomar decisões". Passado esse tempo estão em directo com a Colômbia e, como as coisas são o que são, firma-se a decisão: os trabalhadores que despegam às seis só regressarão na segunda-feira. Até lá o pessoal da casa vindimará uns cachos nas abertas. Apesar da chuva, o dia não correu mal sob nenhum aspecto. Todos se esforçaram e, em vez das 35 toneladas de uva habituais, apanharam-se 50. As uvas das vinhas mais velhas deram mostos com graduação de 12º/12,5º, a média situou-se nos 13º. "Porque é que eu me havia de apressar?", interroga-se Pedro, ele, que ainda tem metade das uvas na vinha. "Dêem-me uma razão para continuar amanhã a vindima! Porque é que eu hei-de entrar em pânico?" Um escurecimento lento, pesado, húmido, vai descendo sobre o Dão, antecipando o início da noite. Corre um arzinho frio que sugere o Inverno quando José Carlos e César entram no escritório e despem os impermeáveis. Acendem os cigarros e, frente ao computador, visitam o site de previsão meteorológica da Marinha norte-americana. Quarta e quinta não pressagiam nada de bom. Na sexta o tempo deve começar a secar. Quarta-feira alvoreceu com uma queda de água tremenda. Em Carregal do Sal, na Dão Sul - empresa responsável pela Quinta de Cabriz e várias outras como a do Covão, da Linha ou do Solar -, Casimiro Gomes está na adega desde as sete horas menos um quarto. Acordou às quatro da manhã com uma chuvada, mas a sua preocupação é moderada: tem 90 por cento dos seus 105 hectares com a vindima feita. Sempre foi o primeiro a entrar na empresa este engenheiro de 40 anos que, em 1990, após trabalhar na cooperativa de Mangualde e de lançar uma empresa de prestação de serviços agrícolas, resolveu fundar uma empresa de vinhos. Ele e os sócios com "know-how" agrícola não tinham dinheiro, mas possuíam ambição. E um projecto: associarem-se a agricultores do Dão, assumirem a liderança técnica das suas vinhas para corrigir falhas tremendas nesse capítulo, e pagarem-lhes bem pelo produto melhorado que iriam produzir. O projecto vingou, embora com a mudança de alguns sócios. Hoje são quatro: dois fundadores - Casimiro Gomes e Joaquim Almeida, advogado; e dois que entraram a meio - Carlos Lucas, um engenheiro agrícola hoje com 37 anos, e Joaquim Coimbra, dono da Laberfal, a maior empresa ibérica de soro fisiológico. Só Casimiro e Lucas trabalham directamente na empresa, a qual, entretanto, criou participadas no Douro (quintas das Tecedeiras e de Sá de Baixo, onde o enólogo Carlos Moura é um dos sócios), na Bairrada (Quinta do Encontro, em que é sócio o enólogo Carlos Rodrigues) e na Estremadura (Quinta do Gradil, onde os enólogos António Ventura, Paulo Maurício e Virgílio Loureiro também participam no capital). O professor Virgílio Loureiro é, aliás, uma espécie de consultor enológico de todas as quintas. A princípio, as suas ideias de reconduzir os vinhos a um perfil mais clássico que lhes privilegie a elegância, a finura e o equilíbrio, chocaram com a juventude dos outros enólogos, completamente imersos na moda de fazer vinhos muito intensos, carregados de cor e de fruta, fáceis de beber logo à nascença. Pouco a pouco, porém, vendo-o chegar do Instituto Superior de Agronomia (ISA) em Lisboa sempre com a mesma disponibilidade para conversar e partilhar o seu saber, para discutir com eles e aguentar os chistes e os desafios com um ar de patriarca boémio, começaram a considerá-lo um camarada de barbas brancas. Neste dia 1 de Outubro o professor chegou pelas 10h30, vindo de Lisboa. Passa por uma pequena reunião nos escritórios e desce à adega a tempo de ver chegar as poucas caixas de tinto cão que se apanharam naquela manhã de água na Quinta do Covão, em terrenos xistosos do vale do Rio Alva. Os olhos brilham-lhe ao mexer nos cachos. "Esta casta é a minha paixão", suspira: "Bago pequeno, pouca doçura aparente, quatro grainhas duras que lhe dão os ácidos, muitos taninos, uns 13º graus: é um corredor de fundo". Casimiro Gomes afasta-o daquele idílio. A mesa de provas está pronta e é necessário começar a assentar ideias, a tomar as primeiras opções sérias desta vindima. O grupo é variado: Casimiro e Carlos Lucas, para além de administradores, provam bem; Carlos Rodrigues veio da Bairrada para dar opiniões; está também João Santos, especialista em fito-sanidade e que em breve partirá para o Nordeste brasileiro para cuidar da futura vinha da mais recente sociedade da Dão Sul; e Sónia Martins e Catarina Simões, que acompanharam toda a vinificação em directo. A média de idades ronda os 35 anos. Avançam todos para a sala de provas em agradável tumulto, começando pelo caminho a provocarem-se uns aos outros com ironias certeiras. Adensa-se uma certa tensão que a informalidade atenua. Cada um tem as suas responsabilidades bem definidas no processo que se concluiu nesta vindima e, portanto, o seu desempenho vai ser agora avaliado. Para além disso há gostos - de regiões, de castas, de estilos - muitos deles contraditórios: os minutos seguintes vão ser fulcrais para determinar o futuro dos vinhos que enchem as cubas. Sobre a bancada branca há dezenas de copos de prova já cheios, apenas identificados com números. Começa-se pelos brancos que estão na primeira linha. Virgílio Loureiro cheira rápido, dedica muito pouco tempo a cada copo. "Aqui vinhos interessantes", murmura, "discretos, austeros... mas são bons". Carlos Lucas faz de irritador de serviço, lança farpas pequenas mas afiadas aos autores do que se está a provar. Vai fazendo elogios ao Douro, em cujos vinhos tem estado directamente envolvido, desvalorizando por comparação o que ali se está experimentando. Mas também ele se entusiasma com o encruzado: "Vai hoje para a barrica!", decide. Casimiro, mais reservado, começa a tomar notas depois de uma ronda discreta. Passa-se aos tintos, nos quais estão misturados alguns recém-vindimados da Bairrada e do Douro para servirem de termo de comparação. E então os enólogos mais novos começam a dar brados de júbilo: "Eh lá!! Ganda vinho..." E uma rajada de conversa incendeia a sala, com toda a gente a falar ao mesmo tempo dos vinhos que estão a provar. "É da Bairrada?", "A mim cheira-me a Dão", "É baga e touriga, das vinhas velhas", "Cheira a alecrim, a rosmaninho", "Atenção: já viste isto?", "Que linda cor". Também Virgílio Loureiro se sobressalta perante um dos copos - "Oh caramba!, este está bestial" Como reconhece certos vinhos através do que cheira, aproveita para atirar as suas piadas: "Este nº4 é o vinho mais vaidoso...". Lucas percebe pelo tom de voz que é com ele, certifica-se cheirando o mesmo copo, e confirma: "É à imagem do dono, professor". E, inspirado, lança uma proposta: porque é que não aproveitam estarem juntos e não vão ao Douro provar os vinhos do seu enlevo? "À Quinta das Tecedeiras!?", espantam-se todos. "Isso são pelo menos duas horas de caminho". Mas depois aceitam - e fica combinado. O ambiente distende-se. Não se trocam abraços nem parabéns, mas há mãos sobre os ombros uns dos outros como num balneário após a vitória. "Há aqui excelência", solta Casimiro com a sua típica indiferença feliz. "O que mais me impressiona é a homogeneidade dos vinhos", concorda Lucas. Virgílio está rendido: "Desde que faço vinhos no Dão nunca tive uma prova tão esmagadora como esta." Há ainda outra razão para a sua felicidade: o professor foi avô este ano e nada lhe agradaria mais do que fazer em 2003 o vinho da sua vida. Passa das 13h00 e vão almoçar ao restaurante da quinta, uma belíssima casa feita para provar vinhos mas onde a cozinha beirã não desmerece. Almoçam bem, mas sem vagares ou requintes. Estão todos um pouco pensativos, com intervalos de silêncio entre assaltos de conversa. Sopa de legumes, bacalhau no forno, ananás. Muita água, duas garrafas de Tinta Roriz 1999 bastam para dez pessoas. [O professor Virgílio cala-se e isola-se na observação daquele vinho: há quatro anos deu-o por perdido quando, no meio da vindima em Cabriz, o sistema de frio de uma cuba avariou. O mosto dessa cuba borbulhava em plena fermentação alcoólica e, sem arrefecimento, a sua temperatura rapidamente começou a subir. Passou os 30 graus, os 33, os 35... atingiu os 37 quando Casimiro Gomes entrava pela adega. Virgílio Loureiro, que desde os 30 graus entrara em profundo desespero, voltou então para ele uma cara medonha. Disse-lhe tudo: que assim era impossível trabalhar!! Que nenhuma empresa (e sublinhava: "empresa") digna desse nome trabalhava sem ter uma cuba de reserva!! O problema - atirava agora o professor com os olhos acesos - "o problema é que não é possível trabalhar como enólogo com gente que só pensa nos lucros!!" Casimiro, depois da surpresa inicial, passou a responder-lhe friamente apenas com acenos de cabeça. E foi mais para os empregados que declarou que a empresa não dispunha de dinheiro para "ter 30 mil contos parados, à espera de uma avaria". A seguir subiu, entrou no escritório e sentou-se em frente a Carlos Lucas: "Não fazes ideia como o professor Virgílio me tratou agora", disse-lhe. "Talvez o devamos despedir em Janeiro". Lucas franziu o sobrolho e quis saber o que se passara. E, depois de informado, em vez de correr à adega para ver milhares de contos de vinho a ferver sem futuro dentro da cuba avariada, filosofou com o seu sorriso irónico: "Tudo se resolve. Tem calma". A coisa passou. Mais tarde Carlos Rodrigues foi fazendo trasfegas, compondo os lotes que as provas determinavam, e, um dia, chegou-se discretamente a Casimiro: "Olha, temos de provar a tinta roriz". Este, porém, cortou-lhe o pio: "Não me fales nesse vinho!". E Carlos assim fez. Meses mais tarde, realizou-se uma prova cega para formar opiniões sobre os diferentes vinhos, escolher os monocastas e definir as suas quantidades, lotear os topos de gama. À medida que se ia cheirando e provando um copo sobressaía. "Há aqui um vinho distinto", opinava o professor. "É o melhor vinho da prova", corroboravam os outros. Quando Carlos disse que aquela era a roriz da desgraça, não queriam acreditar. Nem os administradores, nem o professor. Afinal, um pico de calor não acarretava automaticamente a perda por evaporação dos aromas mais delicados. Nem sequer era fatal que as leveduras parassem, deixando de desdobrar os açúcares em álcool e libertando péssimos cheiros ao morrer. A mostos que fermentam a temperaturas baixas pode fazer-lhes bem um aquecimento súbito, desde que não muito prolongado. É uma questão de observar a evolução dos açúcares e - claro! - de provar, antes de decidir. As surpresas podem surgir onde menos se espera. "Não me digam nada!!", exigiu então Virgílio Loureiro, levantando as mãos, quando se viraram para ele a cobrar o seu ataque de mau feitio. E é como se parte disto lhe ocorresse agora, quando momentaneamente alheado daquele almoço de vindima mergulha o nariz no copo e, depois, se demora a rodá-lo com um olhar vago.] Tomados os cafés, regressa o frenesim. É como se dissessem: "Cuidado com a monotonia, é o maior de todos os pecados mortais". Dois carros cheios lançam-se então a alta velocidade em direcção ao norte: Nelas, Mangualde, Penalva do Castelo, Sernancelhe, chuva e mais chuva até Penedono. Só à vista de S. João da Pesqueira o negrume se começa a adelgaçar. No Douro o dia está perfeito. Luminoso, morno, com uma brisa do norte que empurrava tufos de nuvens brancas por cima das arribas. Lá em baixo o rio, um pouco turvo, lança brilhos de metal escuro. António, da família que antes detinha a quinta e que agora participa na sociedade, vem com um jipe enorme buscar as visitas aos últimos vestígios de alcatrão. Lança-se depois em direcção à adega, aos ziguezagues pela encosta lamacenta abaixo, a uma velocidade insensata. Lá no fundo está Carlos Moura à espera da comitiva. Entram todos pela adega, sobem ao piso superior e, sem delongas nem cerimónias, abeiram-se da mesa de provas. São poucos os copos. Três para um lado, oito para o outro. Lucas aproxima-se dos três primeiros - numerados com 12, 13 e 1 - como se os reconhecesse só de olhar. E é a vez de ele, sempre tão exuberante, tão irónico, ficar calado, expectante. Virgílio Loureiro passa esses copos com rapidez e, antes de voltar a cheirá-los, vai observar os outros. Lucas desespera com a indiferença: "Já pôs o vinho na boca, professor?" E este, impassível, a castigá-lo pelas provocações da manhã: "Não, estou a ganhar coragem". Casimiro, esse sim, cheira-os, prova-os, troca um olhar cúmplice com Carlos Moura e fica de sorriso nos lábios, braços cruzados, imperturbável, a aguardar o juízo do professor. E ele dá-o: "Estes três, para mim, são os melhores à data de hoje". Casimiro sublinha esta opinião com um "indiscutivelmente". E Lucas abre-se num sorriso e bate as mãos sem barulho. Foi assim que decidiram fazer um topo de gama, o "Quinta Sá de Baixo Superior 2003", que deverá chegar ao mercado no Natal de 2005, ou pouco depois. Avançam logo a seguir para os outros copos, já com premência. "O 7 e o 3 estão excelentes em termos de acidez"; "Estes dois têm taninos a mais e há o risco do sulfídrico, é preciso trasfegá-los com frequência"; "O ideal era filtrá-los"; "Há que fazer a maloláctica rapidamente, dá-me a impressão de que têm mais ácido málico do que o normal". Dois vinhos são postos de parte: um deles, talvez por ainda estar em fermentação, cheira a borracha. Mas todos os outros são divididos em lotes, em contas apontadas a esferográfica na toalha de papel onde estão poisados os copos: seis mil litros "deste", com quatro mil "daquele" e dois mil do "outro". Os conteúdos das cubas de armazenamento vão sendo definidos. Em meia hora todas as decisões estão tomadas. Uma volta pelas vinhas e são horas de regressar ao Dão. A noite aproxima-se e, em redor, o céu começa a nublar-se. No dia seguinte o sol voltou, macio e morno, ao Outono português. Em Santar, com a maior parte da tinta roriz por vindimar, com a touriga nacional ainda toda na vinha, Pedro de Vasconcellos e Souza gozava o seu triunfo. Nada perturba a saúde das suas uvas. Tem a aposta ganha e quer dar a sensação de que ficaria igualmente sereno se a tivesse perdido. As uvas adoçam-se durante o dia e, à noite, a brisa de frio serrano concentra-lhe todos os compostos fenólicos. O que vai vindimando entra-lhe na adega pela manhã a uns 12º centígrados, uma temperatura deliciosa para iniciar a fermentação. Os mostos saem gordos, com graduações a rondar os 13º. "Nunca fiz uma vindima com tanta tranquilidade", sorri. "Este ano só me apetece continuar a vindimar durante mais um mês". Nas adegas de onde sai o Quinta de Cabriz o ritmo é outro, há uma essência de oficina. Prosseguem engarrafamentos de vindimas anteriores, operações de rotulagem, rotações de stocks enquanto, ao lado, a vindima de 2003 principia o seu sossego dentro das cubas. Casimiro Gomes continua a velar por tudo desde as horas altas da manhã, porque "não há nada pior do que perder na adega o que se ganhou na vinha". Sobretudo num ano destes, excepcional. A hora alquímica de criar os "blend" ainda vem longe, não se calcula sequer quando é que a madeira receberá a colheita. Ele também não arrisca: "Vamos ver o que é que o vinho quer que a gente lhe faça". OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Segunda-feira, 27 de Outubro de 2003 %Luís Miguel Viana O céu baixo, de nuvens escuras, tornou-se tenso de tanta água conter. Começa a pingar, mas o pior ainda está para vir. Em toda a região vinícola do Dão, nos campos entre as serras do Caramulo e da Estrela, a vindima já leva uma semana nesta terça-feira em que a chuva se aproxima vinda do litoral. É o pior que pode acontecer: e, todavia, no Dão são raros os anos em que tal não ocorre durante a apanha das uvas. Ia bom este ano de 2003, de Primavera seca e Verão ardente. Esperava-se muito de tanta uva, tão madura, tão sã, tão bonita. Uma colheita excepcional - era essa esperança que nas últimas semanas pulsava com vigor dentro das quintas. E agora isto. Chuva. Pedro de Vasconcellos e Souza, enólogo da Casa de Santar, olha pela manhã as uvas molhadas que estão a ser despejadas no tegão à entrada da sua adega. Filho de conde, não foi o português a sua primeira língua. Estudou agronomia e enologia na Suíça e na França e só em 1990 veio para Santar, para o magnífico solar do século XVII em cujas adegas erguidas nas traseiras dos jardins se vinifica desde 1790. É um homem alto, aloirado, que cultiva as maneiras pausadas, uma afectação suave, as conversas a meio-tom. Algo de si passou para quem trabalha na casa porque, mesmo nos períodos de maior trabalho, mesmo quando é preciso correr pelos pátios, ninguém grita ou fala alto. "Se a chuva for muita vou interromper a vindima", declara Pedro de Vasconcellos e Souza. Cala-se um momento para que o anúncio produza o seu efeito. E é com um ar distante que explica que sempre que chove as pessoas entram em pânico, metem-se a apanhar as uvas a todo o custo com medo que apodreçam. "Um erro", sublinha, se as vinhas estiverem em boa situação sanitária, capazes de esperar pelo tempo seco que se seguirá. "As pessoas que trabalham comigo e que são responsáveis pela vinha garantem que os cachos estão óptimos, que aguentam mais duas, três semanas sem qualquer problema", continua o enólogo de Santar. "Para quê stressar? Vamos arriscar e esperar mais uns dias". Arriscar, é essa a palavra apesar de tudo. "Um risco calculado", sorri José Carlos Oliveira, responsável pelas vinhas desde 1999, que chegou entretanto do Douro, onde reside, e que vai ao terreno calculá-lo, ao risco. Começa pela parcela da Casa de Ferro, umas vinhas velhas onde prevalecem as castas baga e mourisco. Desce do jipe e avança entre as fiadas, sempre a mexer nos cachos, a afastar as folhas, a espreitar, provando bagos aqui e ali. "Estão boas", murmura, "a sanidade está óptima". Dali parte para a Matinha, verifica vinhas mais jovens de tinta roriz e palpa os seus cachos enormes, sente-lhes a densidade, revirando-os. Espreita a touriga nacional, ainda toda na vinha: este ano Pedro quer as uvas no seu pico de maturação - tem o tal sonho de fazer grandes vinhos em 2003 - e ele garantiu-lhe que pode esperar, dar tempo ao tempo, deixar os cachos nas vides, empurrar a vindima para lá dos meados de Outubro. O que ali vê confirma-lhe a justeza da decisão. Na adega, aliás, não falta vinho: começaram pelo jaen e pela tinta pinheiro e, depois, vindimaram todo o alfrocheiro, uma casta com sensibilidade à podridão e que já estava no ponto certo de maturação. "As castas não evoluem todas ao mesmo tempo", diz José Carlos, "por isso faz todo o sentido preparar uma estratégia de circuito de vindima". As suas botas pisam agora a vinha das Alminhas, onde a tinta roriz, a touriga e uma pequena experiência de tinto cão (casta tardia, de corpo macio e aromas florais) estão em perfeitas condições. Chega ao Alto Cedro onde se vindima dentro de um manto de chuva branda, goticular. Mais de trinta homens e mulheres vão enchendo caixas de plástico vermelho e cinzento, colocando-as em cima do camião. Tudo se faz num silêncio insólito que a chuva agrava. José Carlos aproxima-se de César, engenheiro "residente" na quinta e seu braço direito na gestão das vinhas, que fala com Alberto, o empreiteiro agrícola responsável por aquela gente. "Hoje vai ter que ser até ao fim, a não ser que caia um dilúvio", atira-lhe José Carlos ao cumprimentá-lo. Alberto põe o ar resignado de quem já percebeu que a vindima deverá ser interrompida e que ficará sem dar que fazer aos trabalhadores o resto da semana: "A minha preocupação já é com segunda-feira", suspira. "Nessa altura vai estar bom", conforta-o César. "Vamos ver...!" De regresso à adega, José Carlos declara que nas vinhas as uvas estão em condições de esperar. "Ah", murmura Pedro Vasconcellos e Souza fazendo com as sobrancelhas uma curva que significa: já sabia disso. Mas não toma qualquer decisão, dado que o administrador-delegado da Sociedade Agrícola de Santar SA tem uma palavra a dizer: trata-se de Daniel Picciotto, da família colombiana que detém a multinacional Pedro Domecq e os vinhos Undurraga no Chile, que se encontra do outro lado do Atlântico. À tarde, quando já possuírem todos os dados, farão uma conferência através de uma linha de satélite dedicada. Entretanto almoça-se. E a seguir, quando os engenheiros Miguel e Cecília redobram a sua actividade junto ao tegão - ele supervisionando o virar das cubas para a espiral que conduz as uvas ao desengaçador/esmagador, ela recolhendo amostras e aspergindo as uvas com enzimas - é tempo de visitar os vinhos, de ver como palpitam, de sentir como nascem. Estão 350 mil quilos de uvas em plena fermentação. Pedro sobe ao passadiço que dá acesso à parte superior e começa a destapar as cubas uma a uma. Com a mão direita em concha transporta ao nariz os aromas que saem delas através de um gesto semelhante ao de tirar água de um regato para beber. A cuba 12 entrega-lhe um aroma alegre, floral, amorangado. A seguinte já está mais evoluída, com alguma cereja preta, framboesa, talvez ameixa. É o "blend" (ou "mistura") de tinta roriz e de jaen para o Casa de Santar normal. Para o reserva, esse, só lá para frente se farão junções: como as suas uvas são as melhores, é completamente diferente o seu potencial de extracção, ou seja, a sua capacidade de transferir cor, aromas e sabores para o mosto, o sumo das uvas. Fá-lo-ão com tempo naquelas cubas de temperatura controlada, por norma a 25º, às vezes a menos, prolongando a fermentação alcoólica. O enólogo destapa agora uma cuba de roriz e ela brinda-o com uma baforada herbácea. "É selvagem, florestal, intensa", enumera Pedro. "Estou encantado com esta cuba, radiante!" Espreita a seguir o alfrocheiro, de onde vem uma sugestão ácida muito fresca, um aroma intenso a frutos vermelhos jovens como o morango ou a amora, também um pouco de pepino e até maçã. Pedro concentra-se naquela cuba depois de uma aspiração quase imperceptível: no seu reserva (cuja edição 2000 está a chegar ao mercado), a seguir à austeridade nobre da touriga nacional exprime-se algo daquela alegria. Fecha a cuba satisfeito: "Vai estar aqui mais 15 dias, no mínimo". Faz ainda uma passagem rápida pelo "melocotón" e pelo maracujá da casta branca bical, a seguir pelo doce sopro do pêssego e do ananás da malvasia. Desce então ao painel das temperaturas: a maior parte das cubas estão a 24º, só uma está a 30,5º, a macerar. No final desta fase todas passarão quase directamente à fermentação maloláctica, a transformação do ácido málico em láctico, que amacia os vinhos. Passarão depois por madeira, no caso barricas de carvalho Seguin-Moreau de 225 litros, o normal até seis meses, o reserva até um ano. Só depois se engarrafa, para que o casamento com a garrafa se produza no tempo certo. A tarde está a meio e começa a chover intensamente. No enlameado da vinha há um instante de indecisão. Nesse momento Pedro está rodeado de barricas na adega de envelhecimento e, para além de sentir o cair irritado da chuva, é informado que a capacidade das cubas de fermentação está a atingir o limite. "Telefonem para o José Carlos", ordena, "e marquem uma reunião para daqui a dez minutos: é preciso tomar decisões". Passado esse tempo estão em directo com a Colômbia e, como as coisas são o que são, firma-se a decisão: os trabalhadores que despegam às seis só regressarão na segunda-feira. Até lá o pessoal da casa vindimará uns cachos nas abertas. Apesar da chuva, o dia não correu mal sob nenhum aspecto. Todos se esforçaram e, em vez das 35 toneladas de uva habituais, apanharam-se 50. As uvas das vinhas mais velhas deram mostos com graduação de 12º/12,5º, a média situou-se nos 13º. "Porque é que eu me havia de apressar?", interroga-se Pedro, ele, que ainda tem metade das uvas na vinha. "Dêem-me uma razão para continuar amanhã a vindima! Porque é que eu hei-de entrar em pânico?" Um escurecimento lento, pesado, húmido, vai descendo sobre o Dão, antecipando o início da noite. Corre um arzinho frio que sugere o Inverno quando José Carlos e César entram no escritório e despem os impermeáveis. Acendem os cigarros e, frente ao computador, visitam o site de previsão meteorológica da Marinha norte-americana. Quarta e quinta não pressagiam nada de bom. Na sexta o tempo deve começar a secar. Quarta-feira alvoreceu com uma queda de água tremenda. Em Carregal do Sal, na Dão Sul - empresa responsável pela Quinta de Cabriz e várias outras como a do Covão, da Linha ou do Solar -, Casimiro Gomes está na adega desde as sete horas menos um quarto. Acordou às quatro da manhã com uma chuvada, mas a sua preocupação é moderada: tem 90 por cento dos seus 105 hectares com a vindima feita. Sempre foi o primeiro a entrar na empresa este engenheiro de 40 anos que, em 1990, após trabalhar na cooperativa de Mangualde e de lançar uma empresa de prestação de serviços agrícolas, resolveu fundar uma empresa de vinhos. Ele e os sócios com "know-how" agrícola não tinham dinheiro, mas possuíam ambição. E um projecto: associarem-se a agricultores do Dão, assumirem a liderança técnica das suas vinhas para corrigir falhas tremendas nesse capítulo, e pagarem-lhes bem pelo produto melhorado que iriam produzir. O projecto vingou, embora com a mudança de alguns sócios. Hoje são quatro: dois fundadores - Casimiro Gomes e Joaquim Almeida, advogado; e dois que entraram a meio - Carlos Lucas, um engenheiro agrícola hoje com 37 anos, e Joaquim Coimbra, dono da Laberfal, a maior empresa ibérica de soro fisiológico. Só Casimiro e Lucas trabalham directamente na empresa, a qual, entretanto, criou participadas no Douro (quintas das Tecedeiras e de Sá de Baixo, onde o enólogo Carlos Moura é um dos sócios), na Bairrada (Quinta do Encontro, em que é sócio o enólogo Carlos Rodrigues) e na Estremadura (Quinta do Gradil, onde os enólogos António Ventura, Paulo Maurício e Virgílio Loureiro também participam no capital). O professor Virgílio Loureiro é, aliás, uma espécie de consultor enológico de todas as quintas. A princípio, as suas ideias de reconduzir os vinhos a um perfil mais clássico que lhes privilegie a elegância, a finura e o equilíbrio, chocaram com a juventude dos outros enólogos, completamente imersos na moda de fazer vinhos muito intensos, carregados de cor e de fruta, fáceis de beber logo à nascença. Pouco a pouco, porém, vendo-o chegar do Instituto Superior de Agronomia (ISA) em Lisboa sempre com a mesma disponibilidade para conversar e partilhar o seu saber, para discutir com eles e aguentar os chistes e os desafios com um ar de patriarca boémio, começaram a considerá-lo um camarada de barbas brancas. Neste dia 1 de Outubro o professor chegou pelas 10h30, vindo de Lisboa. Passa por uma pequena reunião nos escritórios e desce à adega a tempo de ver chegar as poucas caixas de tinto cão que se apanharam naquela manhã de água na Quinta do Covão, em terrenos xistosos do vale do Rio Alva. Os olhos brilham-lhe ao mexer nos cachos. "Esta casta é a minha paixão", suspira: "Bago pequeno, pouca doçura aparente, quatro grainhas duras que lhe dão os ácidos, muitos taninos, uns 13º graus: é um corredor de fundo". Casimiro Gomes afasta-o daquele idílio. A mesa de provas está pronta e é necessário começar a assentar ideias, a tomar as primeiras opções sérias desta vindima. O grupo é variado: Casimiro e Carlos Lucas, para além de administradores, provam bem; Carlos Rodrigues veio da Bairrada para dar opiniões; está também João Santos, especialista em fito-sanidade e que em breve partirá para o Nordeste brasileiro para cuidar da futura vinha da mais recente sociedade da Dão Sul; e Sónia Martins e Catarina Simões, que acompanharam toda a vinificação em directo. A média de idades ronda os 35 anos. Avançam todos para a sala de provas em agradável tumulto, começando pelo caminho a provocarem-se uns aos outros com ironias certeiras. Adensa-se uma certa tensão que a informalidade atenua. Cada um tem as suas responsabilidades bem definidas no processo que se concluiu nesta vindima e, portanto, o seu desempenho vai ser agora avaliado. Para além disso há gostos - de regiões, de castas, de estilos - muitos deles contraditórios: os minutos seguintes vão ser fulcrais para determinar o futuro dos vinhos que enchem as cubas. Sobre a bancada branca há dezenas de copos de prova já cheios, apenas identificados com números. Começa-se pelos brancos que estão na primeira linha. Virgílio Loureiro cheira rápido, dedica muito pouco tempo a cada copo. "Aqui vinhos interessantes", murmura, "discretos, austeros... mas são bons". Carlos Lucas faz de irritador de serviço, lança farpas pequenas mas afiadas aos autores do que se está a provar. Vai fazendo elogios ao Douro, em cujos vinhos tem estado directamente envolvido, desvalorizando por comparação o que ali se está experimentando. Mas também ele se entusiasma com o encruzado: "Vai hoje para a barrica!", decide. Casimiro, mais reservado, começa a tomar notas depois de uma ronda discreta. Passa-se aos tintos, nos quais estão misturados alguns recém-vindimados da Bairrada e do Douro para servirem de termo de comparação. E então os enólogos mais novos começam a dar brados de júbilo: "Eh lá!! Ganda vinho..." E uma rajada de conversa incendeia a sala, com toda a gente a falar ao mesmo tempo dos vinhos que estão a provar. "É da Bairrada?", "A mim cheira-me a Dão", "É baga e touriga, das vinhas velhas", "Cheira a alecrim, a rosmaninho", "Atenção: já viste isto?", "Que linda cor". Também Virgílio Loureiro se sobressalta perante um dos copos - "Oh caramba!, este está bestial" Como reconhece certos vinhos através do que cheira, aproveita para atirar as suas piadas: "Este nº4 é o vinho mais vaidoso...". Lucas percebe pelo tom de voz que é com ele, certifica-se cheirando o mesmo copo, e confirma: "É à imagem do dono, professor". E, inspirado, lança uma proposta: porque é que não aproveitam estarem juntos e não vão ao Douro provar os vinhos do seu enlevo? "À Quinta das Tecedeiras!?", espantam-se todos. "Isso são pelo menos duas horas de caminho". Mas depois aceitam - e fica combinado. O ambiente distende-se. Não se trocam abraços nem parabéns, mas há mãos sobre os ombros uns dos outros como num balneário após a vitória. "Há aqui excelência", solta Casimiro com a sua típica indiferença feliz. "O que mais me impressiona é a homogeneidade dos vinhos", concorda Lucas. Virgílio está rendido: "Desde que faço vinhos no Dão nunca tive uma prova tão esmagadora como esta." Há ainda outra razão para a sua felicidade: o professor foi avô este ano e nada lhe agradaria mais do que fazer em 2003 o vinho da sua vida. Passa das 13h00 e vão almoçar ao restaurante da quinta, uma belíssima casa feita para provar vinhos mas onde a cozinha beirã não desmerece. Almoçam bem, mas sem vagares ou requintes. Estão todos um pouco pensativos, com intervalos de silêncio entre assaltos de conversa. Sopa de legumes, bacalhau no forno, ananás. Muita água, duas garrafas de Tinta Roriz 1999 bastam para dez pessoas. [O professor Virgílio cala-se e isola-se na observação daquele vinho: há quatro anos deu-o por perdido quando, no meio da vindima em Cabriz, o sistema de frio de uma cuba avariou. O mosto dessa cuba borbulhava em plena fermentação alcoólica e, sem arrefecimento, a sua temperatura rapidamente começou a subir. Passou os 30 graus, os 33, os 35... atingiu os 37 quando Casimiro Gomes entrava pela adega. Virgílio Loureiro, que desde os 30 graus entrara em profundo desespero, voltou então para ele uma cara medonha. Disse-lhe tudo: que assim era impossível trabalhar!! Que nenhuma empresa (e sublinhava: "empresa") digna desse nome trabalhava sem ter uma cuba de reserva!! O problema - atirava agora o professor com os olhos acesos - "o problema é que não é possível trabalhar como enólogo com gente que só pensa nos lucros!!" Casimiro, depois da surpresa inicial, passou a responder-lhe friamente apenas com acenos de cabeça. E foi mais para os empregados que declarou que a empresa não dispunha de dinheiro para "ter 30 mil contos parados, à espera de uma avaria". A seguir subiu, entrou no escritório e sentou-se em frente a Carlos Lucas: "Não fazes ideia como o professor Virgílio me tratou agora", disse-lhe. "Talvez o devamos despedir em Janeiro". Lucas franziu o sobrolho e quis saber o que se passara. E, depois de informado, em vez de correr à adega para ver milhares de contos de vinho a ferver sem futuro dentro da cuba avariada, filosofou com o seu sorriso irónico: "Tudo se resolve. Tem calma". A coisa passou. Mais tarde Carlos Rodrigues foi fazendo trasfegas, compondo os lotes que as provas determinavam, e, um dia, chegou-se discretamente a Casimiro: "Olha, temos de provar a tinta roriz". Este, porém, cortou-lhe o pio: "Não me fales nesse vinho!". E Carlos assim fez. Meses mais tarde, realizou-se uma prova cega para formar opiniões sobre os diferentes vinhos, escolher os monocastas e definir as suas quantidades, lotear os topos de gama. À medida que se ia cheirando e provando um copo sobressaía. "Há aqui um vinho distinto", opinava o professor. "É o melhor vinho da prova", corroboravam os outros. Quando Carlos disse que aquela era a roriz da desgraça, não queriam acreditar. Nem os administradores, nem o professor. Afinal, um pico de calor não acarretava automaticamente a perda por evaporação dos aromas mais delicados. Nem sequer era fatal que as leveduras parassem, deixando de desdobrar os açúcares em álcool e libertando péssimos cheiros ao morrer. A mostos que fermentam a temperaturas baixas pode fazer-lhes bem um aquecimento súbito, desde que não muito prolongado. É uma questão de observar a evolução dos açúcares e - claro! - de provar, antes de decidir. As surpresas podem surgir onde menos se espera. "Não me digam nada!!", exigiu então Virgílio Loureiro, levantando as mãos, quando se viraram para ele a cobrar o seu ataque de mau feitio. E é como se parte disto lhe ocorresse agora, quando momentaneamente alheado daquele almoço de vindima mergulha o nariz no copo e, depois, se demora a rodá-lo com um olhar vago.] Tomados os cafés, regressa o frenesim. É como se dissessem: "Cuidado com a monotonia, é o maior de todos os pecados mortais". Dois carros cheios lançam-se então a alta velocidade em direcção ao norte: Nelas, Mangualde, Penalva do Castelo, Sernancelhe, chuva e mais chuva até Penedono. Só à vista de S. João da Pesqueira o negrume se começa a adelgaçar. No Douro o dia está perfeito. Luminoso, morno, com uma brisa do norte que empurrava tufos de nuvens brancas por cima das arribas. Lá em baixo o rio, um pouco turvo, lança brilhos de metal escuro. António, da família que antes detinha a quinta e que agora participa na sociedade, vem com um jipe enorme buscar as visitas aos últimos vestígios de alcatrão. Lança-se depois em direcção à adega, aos ziguezagues pela encosta lamacenta abaixo, a uma velocidade insensata. Lá no fundo está Carlos Moura à espera da comitiva. Entram todos pela adega, sobem ao piso superior e, sem delongas nem cerimónias, abeiram-se da mesa de provas. São poucos os copos. Três para um lado, oito para o outro. Lucas aproxima-se dos três primeiros - numerados com 12, 13 e 1 - como se os reconhecesse só de olhar. E é a vez de ele, sempre tão exuberante, tão irónico, ficar calado, expectante. Virgílio Loureiro passa esses copos com rapidez e, antes de voltar a cheirá-los, vai observar os outros. Lucas desespera com a indiferença: "Já pôs o vinho na boca, professor?" E este, impassível, a castigá-lo pelas provocações da manhã: "Não, estou a ganhar coragem". Casimiro, esse sim, cheira-os, prova-os, troca um olhar cúmplice com Carlos Moura e fica de sorriso nos lábios, braços cruzados, imperturbável, a aguardar o juízo do professor. E ele dá-o: "Estes três, para mim, são os melhores à data de hoje". Casimiro sublinha esta opinião com um "indiscutivelmente". E Lucas abre-se num sorriso e bate as mãos sem barulho. Foi assim que decidiram fazer um topo de gama, o "Quinta Sá de Baixo Superior 2003", que deverá chegar ao mercado no Natal de 2005, ou pouco depois. Avançam logo a seguir para os outros copos, já com premência. "O 7 e o 3 estão excelentes em termos de acidez"; "Estes dois têm taninos a mais e há o risco do sulfídrico, é preciso trasfegá-los com frequência"; "O ideal era filtrá-los"; "Há que fazer a maloláctica rapidamente, dá-me a impressão de que têm mais ácido málico do que o normal". Dois vinhos são postos de parte: um deles, talvez por ainda estar em fermentação, cheira a borracha. Mas todos os outros são divididos em lotes, em contas apontadas a esferográfica na toalha de papel onde estão poisados os copos: seis mil litros "deste", com quatro mil "daquele" e dois mil do "outro". Os conteúdos das cubas de armazenamento vão sendo definidos. Em meia hora todas as decisões estão tomadas. Uma volta pelas vinhas e são horas de regressar ao Dão. A noite aproxima-se e, em redor, o céu começa a nublar-se. No dia seguinte o sol voltou, macio e morno, ao Outono português. Em Santar, com a maior parte da tinta roriz por vindimar, com a touriga nacional ainda toda na vinha, Pedro de Vasconcellos e Souza gozava o seu triunfo. Nada perturba a saúde das suas uvas. Tem a aposta ganha e quer dar a sensação de que ficaria igualmente sereno se a tivesse perdido. As uvas adoçam-se durante o dia e, à noite, a brisa de frio serrano concentra-lhe todos os compostos fenólicos. O que vai vindimando entra-lhe na adega pela manhã a uns 12º centígrados, uma temperatura deliciosa para iniciar a fermentação. Os mostos saem gordos, com graduações a rondar os 13º. "Nunca fiz uma vindima com tanta tranquilidade", sorri. "Este ano só me apetece continuar a vindimar durante mais um mês". Nas adegas de onde sai o Quinta de Cabriz o ritmo é outro, há uma essência de oficina. Prosseguem engarrafamentos de vindimas anteriores, operações de rotulagem, rotações de stocks enquanto, ao lado, a vindima de 2003 principia o seu sossego dentro das cubas. Casimiro Gomes continua a velar por tudo desde as horas altas da manhã, porque "não há nada pior do que perder na adega o que se ganhou na vinha". Sobretudo num ano destes, excepcional. A hora alquímica de criar os "blend" ainda vem longe, não se calcula sequer quando é que a madeira receberá a colheita. Ele também não arrisca: "Vamos ver o que é que o vinho quer que a gente lhe faça". OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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