Viver com Medo
Por GRAÇA BARBOSA RIBEIRO
Sábado, 19 de Outubro de 2002
No Centro de Apoio a Mulheres em Risco da Fundação Bissaya Barreto, de Coimbra, as vítimas de violência aproveitam a protecção para reorganizar as suas vidas.
Tocam à porta. Na sala de estar, Luísa ergue no colo um bebé de 11 meses e alerta-o: "Vem aí a mamã!" O bebé sorri para Paula, a menina de 14 anos que tira a mochila da escola e estende os braços para o filho. "Ainda tem febre? A que horas lhe deste o remédio?", pergunta, a apertar o filho contra o rosto. Ao lado, Sílvia almoça, à pressa, para regressar ao trabalho: é auxiliar de acção educativa.
São 13h00 e a rotina cumpre-se naquela casa onde todas as ocupantes têm em comum o facto de terem sido vítimas de violência doméstica. Luísa foi violentamente espancada, durante anos, pelo companheiro, que, mesmo depois da separação, continuou persegui-la e a agredi-la. Paula, que abandonou a escola no 2º ano, foi vítima de uma outra forma de violência: cresceu sujeita ao "abandono, dentro de casa", de uma mãe promíscua, e engravidou, ainda menina, de um homem de 58 anos. Sílvia suportou dez anos de agressões psicológicas e físicas por parte do marido, até que um dia, sem informar absolutamente ninguém, pegou na filha de dez anos, e fugiu. Coragem? "Não, desespero, muito desespero", responde Sílvia, com um ar grave.
Hoje, estas três mulheres (cujos verdadeiros nomes são outros) ocupam uma vivenda que não se distingue de uma outra qualquer casa familiar, onde funciona o Centro de Apoio a Mulheres em Risco da Fundação Bissaya Barreto, de Coimbra. O facto de a localização desta casa ser mantida secreta pela instituição desvela o lado oculto de uma vida aparentemente normal: estas mulheres - que hoje têm os seus empregos, que regressaram às aulas, cujos filhos estão em escolas ou infantários, que são apoiadas a nível jurídico e também por assistentes sociais e psicólogos na construção de um novo projecto de vida - têm medo. Têm medo de serem descobertas.
"Tou feita"
Luísa sobe a escada da vivenda e vai abrindo, uma a uma, as portas dos quartos, que têm decorações alegres e objectos pessoais das ocupantes. No que lhe pertence, caminha até à mesa de cabeceira e mostra a fotografia da filha, que está no infantário: "No início foi muito difícil. Fartava-se de chorar, de pedir para regressar a casa da avó. Como é que se explica a uma criança de três anos que é principalmente por ela que estou aqui? Que também eu tenho saudades?" Luísa não chora, tem apenas um sorriso amargo quando conta que, há dias, a filha surpreendeu-lhe um "estou feita" que se lhe escapou, ao ver um carro parecido com o do ex-companheiro. A criança descansou-a: "Tás com medo do pai? Deixa lá. Se ele vier eu dou-lhe um 'tantapé'!"
"O que mais contribuiu para que eu fugisse foi a minha filha", explica, também, Sílvia. A menina, que hoje tem dez anos e frequenta uma nova escola, sabia que só ela podia acalmar as fúrias do pai - "Ia dar uma volta de bicicleta, mas regressava sempre a tempo. Para me proteger, para se pôr entre mim e o pai", diz Sílvia. Não chegou a conhecer bem aquele que viria a ser seu marido e de quem começou a apanhar as primeiras bofetadas ainda grávida. "Namorámos às escondidas. Depois apercebi-me de que ele bebia. Aguentei dez anos, pedi ajuda ao médico de família, que tentou que ele fizesse uma desintoxicação e, quando senti que não aguentava mais, pedi o divórcio. Em resposta ele apertou-me o pescoço e disse que tratava do divórcio com as próprias mãos. Fugi."
Sílvia nunca teve coragem de apresentar queixa. Luísa fê-lo. "Muitas, muitas vezes, tantas que lhes perdi a conta. Mas ele só pagava multas e eu, de cada vez que o fazia, apanhava pancada a dobrar", desabafa, enquanto abre a porta do quarto de Paula, a menina de 14 anos. Ali, as paredes estão cheias de fotografias. Da criança e do pai, o tal homem de 58 anos. "O pai do meu filho nunca me fez mal", diria Paula, mais tarde. A psicóloga confirma que ele se preocupa com a Paula e com o bebé: "Claro que tem problemas, deveria ser tratado." Mas o homem das fotos não foi tratado. Foi condenado a prisão efectiva, por ter engravidado uma menor.
13h00. No centro, que tem capacidade para 10 mulheres e outras tantas crianças, o movimento não é muito maior ou diferente do de uma casa de família grande, à hora de almoço. Desde que foi inaugurado, em 1996, passaram por ali apenas 48 mulheres e respectivas crianças. Não por falta de espaço, mas porque ninguém é posto fora até ter capacidade de reorganizar a sua vida. "Este tipo de apoio, que visa a reinserção social, devia ser um recurso de fim de linha. Infelizmente, às vezes, é o único", comenta psicóloga Cristina Cunha. Fala a andar de um lado para o outro: como se estivesse numa casa de família, passeia o bebé de Paula, que, febril, está muito rabujento.
Categorias
Entidades
Viver com Medo
Por GRAÇA BARBOSA RIBEIRO
Sábado, 19 de Outubro de 2002
No Centro de Apoio a Mulheres em Risco da Fundação Bissaya Barreto, de Coimbra, as vítimas de violência aproveitam a protecção para reorganizar as suas vidas.
Tocam à porta. Na sala de estar, Luísa ergue no colo um bebé de 11 meses e alerta-o: "Vem aí a mamã!" O bebé sorri para Paula, a menina de 14 anos que tira a mochila da escola e estende os braços para o filho. "Ainda tem febre? A que horas lhe deste o remédio?", pergunta, a apertar o filho contra o rosto. Ao lado, Sílvia almoça, à pressa, para regressar ao trabalho: é auxiliar de acção educativa.
São 13h00 e a rotina cumpre-se naquela casa onde todas as ocupantes têm em comum o facto de terem sido vítimas de violência doméstica. Luísa foi violentamente espancada, durante anos, pelo companheiro, que, mesmo depois da separação, continuou persegui-la e a agredi-la. Paula, que abandonou a escola no 2º ano, foi vítima de uma outra forma de violência: cresceu sujeita ao "abandono, dentro de casa", de uma mãe promíscua, e engravidou, ainda menina, de um homem de 58 anos. Sílvia suportou dez anos de agressões psicológicas e físicas por parte do marido, até que um dia, sem informar absolutamente ninguém, pegou na filha de dez anos, e fugiu. Coragem? "Não, desespero, muito desespero", responde Sílvia, com um ar grave.
Hoje, estas três mulheres (cujos verdadeiros nomes são outros) ocupam uma vivenda que não se distingue de uma outra qualquer casa familiar, onde funciona o Centro de Apoio a Mulheres em Risco da Fundação Bissaya Barreto, de Coimbra. O facto de a localização desta casa ser mantida secreta pela instituição desvela o lado oculto de uma vida aparentemente normal: estas mulheres - que hoje têm os seus empregos, que regressaram às aulas, cujos filhos estão em escolas ou infantários, que são apoiadas a nível jurídico e também por assistentes sociais e psicólogos na construção de um novo projecto de vida - têm medo. Têm medo de serem descobertas.
"Tou feita"
Luísa sobe a escada da vivenda e vai abrindo, uma a uma, as portas dos quartos, que têm decorações alegres e objectos pessoais das ocupantes. No que lhe pertence, caminha até à mesa de cabeceira e mostra a fotografia da filha, que está no infantário: "No início foi muito difícil. Fartava-se de chorar, de pedir para regressar a casa da avó. Como é que se explica a uma criança de três anos que é principalmente por ela que estou aqui? Que também eu tenho saudades?" Luísa não chora, tem apenas um sorriso amargo quando conta que, há dias, a filha surpreendeu-lhe um "estou feita" que se lhe escapou, ao ver um carro parecido com o do ex-companheiro. A criança descansou-a: "Tás com medo do pai? Deixa lá. Se ele vier eu dou-lhe um 'tantapé'!"
"O que mais contribuiu para que eu fugisse foi a minha filha", explica, também, Sílvia. A menina, que hoje tem dez anos e frequenta uma nova escola, sabia que só ela podia acalmar as fúrias do pai - "Ia dar uma volta de bicicleta, mas regressava sempre a tempo. Para me proteger, para se pôr entre mim e o pai", diz Sílvia. Não chegou a conhecer bem aquele que viria a ser seu marido e de quem começou a apanhar as primeiras bofetadas ainda grávida. "Namorámos às escondidas. Depois apercebi-me de que ele bebia. Aguentei dez anos, pedi ajuda ao médico de família, que tentou que ele fizesse uma desintoxicação e, quando senti que não aguentava mais, pedi o divórcio. Em resposta ele apertou-me o pescoço e disse que tratava do divórcio com as próprias mãos. Fugi."
Sílvia nunca teve coragem de apresentar queixa. Luísa fê-lo. "Muitas, muitas vezes, tantas que lhes perdi a conta. Mas ele só pagava multas e eu, de cada vez que o fazia, apanhava pancada a dobrar", desabafa, enquanto abre a porta do quarto de Paula, a menina de 14 anos. Ali, as paredes estão cheias de fotografias. Da criança e do pai, o tal homem de 58 anos. "O pai do meu filho nunca me fez mal", diria Paula, mais tarde. A psicóloga confirma que ele se preocupa com a Paula e com o bebé: "Claro que tem problemas, deveria ser tratado." Mas o homem das fotos não foi tratado. Foi condenado a prisão efectiva, por ter engravidado uma menor.
13h00. No centro, que tem capacidade para 10 mulheres e outras tantas crianças, o movimento não é muito maior ou diferente do de uma casa de família grande, à hora de almoço. Desde que foi inaugurado, em 1996, passaram por ali apenas 48 mulheres e respectivas crianças. Não por falta de espaço, mas porque ninguém é posto fora até ter capacidade de reorganizar a sua vida. "Este tipo de apoio, que visa a reinserção social, devia ser um recurso de fim de linha. Infelizmente, às vezes, é o único", comenta psicóloga Cristina Cunha. Fala a andar de um lado para o outro: como se estivesse numa casa de família, passeia o bebé de Paula, que, febril, está muito rabujento.