NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: Fradique Mendes, a pele... o casaco, a palavra...

27-01-2012
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«Lisboa, Abril.A E. STURMM, ALFAIATEMeu bom Sturmm. – A sua sobrecasaca é perfeitamente insensata. Ali a tenho,arejando à janela, nas costas de uma cadeira; e assenta tão bem nessas costas de pau,como assentaria nas do comandante das Guardas Municipais, nas do Patriarca, nas deum piloto da barra ou nas de um filósofo, se o houvesse nestes remos. Quero, pois,severamente dizer que ela não possui individualidade.Se V., bom Sturmm, fosse apenas um algibebe, embrulhando a multidão em panoSedan para lhe tapar a nudez – eu não faria à sua obra esta crítica tão alta e exigente.Mas V. é alemão, e de Conisberga, cidade metafísica. A sua tesoura tem parentesco coma pena de Emanuel Kant, e legitimamente me surpreende que V. não a use com a mesmasagacidade psicológica.Não ignora V., decerto, que ao lado da filosofia da história e de outras filosofias,há ainda mais uma, importante e vasta, que se chama a filosofia do vestuário; e menosignora, decerto, que aí se aprende, entre tanta coisa profunda, esta, de superiorprofundidade: que o casaco está para o homem como a palavra está para a ideia.Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a ideia perceptível etransmissível nas relações humanas – como o casaco serve para tornar o homemapresentável e viável através das ocupações sociais. Mas é a palavra empregada sempreem rigorosa concordância de valor com a ideia? Não, meu Sturmm.Quando a ideia é chata ou trivial, alteia-se, revestindo-a de palavras gordas eaparatosas – como todas as que se usam em política.Quando a ideia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se, recobrindo-a depalavras macias, afagantes, canoras – como todas as que se usam em amor.Por outro lado, escolhem-se palavras de uma retumbância especial para reforçar aveemência da ideia – como nos rasgos à Mirabeau – ou rebuscam-se as que pelaestranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual – como nos versosde Baudelaire.Temos pois que a palavra opera sobre a ideia, ou disfarçando-a ou acentuando-a.Vai-me V. seguindo, perspicaz Sturmm?Tudo isto se aplica exactamente às conexões do casaco com o homem.Para que talham os alfaiates ingleses certas sobrecasacas longas, rectas, rígidas,com um debrum de austeridade e ressudando virtude por todas as costuras? Paraesconder a velhacaria de quem as veste. Você encontra em Londres essas sobrecasacas,nos meetings religiosos, nas sociedades promotoras da moralização dos pequenospatagónios e nos romances de Dickens. E para que talham eles esses fraques audazes,bem acolchoados de ombros, quebrados e cavados de cinta, dando relevo aos quadris –sede da força amorosa? Para acentuar os corpos robustos e voluptuosos a que se colam.Você vê desses fraques aos Lovelaces, aos caçadores de dotes e a toda a legião dos entretenus.Disfarçando-o ou acentuando-o, o casaco deve ser a expressão visível do carácter ou do tipo que, cada um, pretende representar entre os seus concidadãos.Quem lhe encomenda pois um casaco, digno Sturmm, encomenda-lhe na realidadeum prospecto. E nem precisa o alfaiate que aprofundou a sua arte, de receber aconfissão do freguês. As ligeiras recomendações que escapam, inquietas e tímidas, nahora atribulada da «prova», bastam para que ele compreenda o uso social a que o clientedestina a sua farpela... Assim, se um cavalheiro de luvas pretas, com uma luneta de ouroentalada entre dois botões do colete, que move os passos com lentidão e reflexão, e, aoentrar, pousou sobre a mesa um número do Jornal do Economista, lhe diz, num tom demansa reprovação, ao provar o casaco: «Está curto e justo de cinta» – V. deve logodeduzir que ele deseja aquelas abas bem fornidas, flutuantes, que demonstramabundância de princípios, circunspecção, amor sólido da ordem e conhecimento miúdodas pautas da Alfândega... Vai-me V. penetrando, bom Sturmm?Ora, que lhe murmurei eu, em mau alemão, ao provar a sobrecasaca infausta? Estafugidia indicação: «Que cinja bem!» Isto bastava para V. entender que eu desejava,através dessa veste, mostrar-me a Lisboa, onde a ia usar, sinceramente como sou –reservado, cingido comigo mesmo, frio, céptico e inacessível aos pedidos de meiaslibras... E, no entanto, que me manda V., Sturmm, num embrulho de papel pardo? V.manda-me a sobrecasaca que talha para toda a gente em Portugal, desgraçadamente: asobrecasaca do conselheiro!Digo «desgraçadamente» – porque vestindo-nos todos pelo mesmo molde, V.leva-nos todos a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar. Nada influencia maisprofundamente o sentir do homem, do que a fatiota que o cobre. O mais ríspido profeta,se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir os encantosdos decotes e da valsa; e o mais extraviado mundano, dentro de uma robe de chambre,sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão.Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre o pensar. Não é possívelconceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins de baile, e umjaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a ideiasconservadoras.Você, pondo no dorso de toda a sociedade essa casaca de conselheiro, lisa,insípida, rotineira, pesabunda – está simplesmente criando um país de conselheiros!Dentro dessa confecção banalizadora e achatante, o poeta perde a fantasia, o dândiperde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde asagacidade, o padre perde a fé – e, perdendo cada um o relevo e a saliência própria, ficatudo reduzido a esse cepo moral que se chama o conselheiro! A sua tesoura está assimmesquinhamente aparando a originalidade do país! Você corta, em cada casaco, amortalha de um temperamento. E se Camões ainda vivesse – e V. o vestisse – tínhamosem lugar dos Sonetos, artigos do Comércio do Porto.»(Cartas Inéditas de Fradique Mendes)


«Lisboa, Abril.A E. STURMM, ALFAIATEMeu bom Sturmm. – A sua sobrecasaca é perfeitamente insensata. Ali a tenho,arejando à janela, nas costas de uma cadeira; e assenta tão bem nessas costas de pau,como assentaria nas do comandante das Guardas Municipais, nas do Patriarca, nas deum piloto da barra ou nas de um filósofo, se o houvesse nestes remos. Quero, pois,severamente dizer que ela não possui individualidade.Se V., bom Sturmm, fosse apenas um algibebe, embrulhando a multidão em panoSedan para lhe tapar a nudez – eu não faria à sua obra esta crítica tão alta e exigente.Mas V. é alemão, e de Conisberga, cidade metafísica. A sua tesoura tem parentesco coma pena de Emanuel Kant, e legitimamente me surpreende que V. não a use com a mesmasagacidade psicológica.Não ignora V., decerto, que ao lado da filosofia da história e de outras filosofias,há ainda mais uma, importante e vasta, que se chama a filosofia do vestuário; e menosignora, decerto, que aí se aprende, entre tanta coisa profunda, esta, de superiorprofundidade: que o casaco está para o homem como a palavra está para a ideia.Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a ideia perceptível etransmissível nas relações humanas – como o casaco serve para tornar o homemapresentável e viável através das ocupações sociais. Mas é a palavra empregada sempreem rigorosa concordância de valor com a ideia? Não, meu Sturmm.Quando a ideia é chata ou trivial, alteia-se, revestindo-a de palavras gordas eaparatosas – como todas as que se usam em política.Quando a ideia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se, recobrindo-a depalavras macias, afagantes, canoras – como todas as que se usam em amor.Por outro lado, escolhem-se palavras de uma retumbância especial para reforçar aveemência da ideia – como nos rasgos à Mirabeau – ou rebuscam-se as que pelaestranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual – como nos versosde Baudelaire.Temos pois que a palavra opera sobre a ideia, ou disfarçando-a ou acentuando-a.Vai-me V. seguindo, perspicaz Sturmm?Tudo isto se aplica exactamente às conexões do casaco com o homem.Para que talham os alfaiates ingleses certas sobrecasacas longas, rectas, rígidas,com um debrum de austeridade e ressudando virtude por todas as costuras? Paraesconder a velhacaria de quem as veste. Você encontra em Londres essas sobrecasacas,nos meetings religiosos, nas sociedades promotoras da moralização dos pequenospatagónios e nos romances de Dickens. E para que talham eles esses fraques audazes,bem acolchoados de ombros, quebrados e cavados de cinta, dando relevo aos quadris –sede da força amorosa? Para acentuar os corpos robustos e voluptuosos a que se colam.Você vê desses fraques aos Lovelaces, aos caçadores de dotes e a toda a legião dos entretenus.Disfarçando-o ou acentuando-o, o casaco deve ser a expressão visível do carácter ou do tipo que, cada um, pretende representar entre os seus concidadãos.Quem lhe encomenda pois um casaco, digno Sturmm, encomenda-lhe na realidadeum prospecto. E nem precisa o alfaiate que aprofundou a sua arte, de receber aconfissão do freguês. As ligeiras recomendações que escapam, inquietas e tímidas, nahora atribulada da «prova», bastam para que ele compreenda o uso social a que o clientedestina a sua farpela... Assim, se um cavalheiro de luvas pretas, com uma luneta de ouroentalada entre dois botões do colete, que move os passos com lentidão e reflexão, e, aoentrar, pousou sobre a mesa um número do Jornal do Economista, lhe diz, num tom demansa reprovação, ao provar o casaco: «Está curto e justo de cinta» – V. deve logodeduzir que ele deseja aquelas abas bem fornidas, flutuantes, que demonstramabundância de princípios, circunspecção, amor sólido da ordem e conhecimento miúdodas pautas da Alfândega... Vai-me V. penetrando, bom Sturmm?Ora, que lhe murmurei eu, em mau alemão, ao provar a sobrecasaca infausta? Estafugidia indicação: «Que cinja bem!» Isto bastava para V. entender que eu desejava,através dessa veste, mostrar-me a Lisboa, onde a ia usar, sinceramente como sou –reservado, cingido comigo mesmo, frio, céptico e inacessível aos pedidos de meiaslibras... E, no entanto, que me manda V., Sturmm, num embrulho de papel pardo? V.manda-me a sobrecasaca que talha para toda a gente em Portugal, desgraçadamente: asobrecasaca do conselheiro!Digo «desgraçadamente» – porque vestindo-nos todos pelo mesmo molde, V.leva-nos todos a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar. Nada influencia maisprofundamente o sentir do homem, do que a fatiota que o cobre. O mais ríspido profeta,se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir os encantosdos decotes e da valsa; e o mais extraviado mundano, dentro de uma robe de chambre,sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão.Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre o pensar. Não é possívelconceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins de baile, e umjaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a ideiasconservadoras.Você, pondo no dorso de toda a sociedade essa casaca de conselheiro, lisa,insípida, rotineira, pesabunda – está simplesmente criando um país de conselheiros!Dentro dessa confecção banalizadora e achatante, o poeta perde a fantasia, o dândiperde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde asagacidade, o padre perde a fé – e, perdendo cada um o relevo e a saliência própria, ficatudo reduzido a esse cepo moral que se chama o conselheiro! A sua tesoura está assimmesquinhamente aparando a originalidade do país! Você corta, em cada casaco, amortalha de um temperamento. E se Camões ainda vivesse – e V. o vestisse – tínhamosem lugar dos Sonetos, artigos do Comércio do Porto.»(Cartas Inéditas de Fradique Mendes)

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