Não resisti a publicar este texto, que já saiu na altura da morte deste meu amigo no Jornal de Notícias ( edição de Lisboa,na rubrica Passeio Público), como uma homenagem a muitas das figuras de Moncorvo que vão desaparecendo. O texto é conhecido de algumas pessoas, mas gostaria que fosse conhecido por muitas mais, em nome do Manel que foi um homem notável. Gostaria também que para esta galeria de ausentes escrevessem outras pessoas. Por exemplo o Gil do Peredo merecia bem uma prosa e um lamento. Aqui fica a sugestão ou o desafio se quiserem.Morreu o ManelMal cheguei à terra, o olhar cheio de urzes e estevas floridas, de maias e giestas pujantes e flocos de sabugueiro, a primeira notícia que me deram soou a raios, trovões e águas turvas na memória: "Sabes?, o Manel morreu".Não ouvi o dobrar dos sinos do alto da torre por este meu amigo, um quasimodo franzino, com um curto respirar de pássaro."De que morreu?"A resposta é vaga, não sabem por inteiro."Talvez dos pulmões". O corpo deformado, a corcunda, iam-no asfixiando aos bocadinhos. É o que se diz sem nenhum rigor científico, apenas com alguma fatalidade poética.Há muitos anos entrei, já a noite ia longa, num bar, o primeiro que abrira na terra. Chamava-se o Noitibó.A um canto, numa espécie de aquário de vidro, um dj frágil, como um peixe triste, ia servindo música. Com o seu olhar, como que entendia as necessidades de momento de cada cliente. Era sábio na sua administração.Conheci então o Manel.Nas noites seguintes quando o bar fechava e no cheiro intenso a fumo flutuava uma suave melancolia, eu, o patrão e o Manel tomávamos a última bebida.Num gesto de ternura escondida, colocava o último lp, expressamente para mim, da Maria Bethânia a cantar, num álbum de parceria com Caetano Veloso, o "Leãozinho", o "Meu primeiro amor" e o "Adeus, meu tempo de chorar".Saíamos para a madrugada, havia silêncio na rua íngreme, da Cal se chama, e só muito ao longe se ouvia o ladrar de algum cão.Era um tempo sereno e medido.O Manel não conheceu a paixão e eram ignorados os seus subterrâneos de afecto.Mas um sonho houve que o acompanhou durante longos anos: cursar engenharia.Depois de muitas e inúmeras noites de dj num aquário de sons, num bar de rua estreita, conseguiu matricular-se em engenharia.Terminava este ano o curso.Faltavam poucos meses para realizar o sonho, o único que tinha de seu, além da casa herdada dos pais.Era a família que lhe custeava os estudos.Só agora soube que o Manel, o meu amigo quasimodo franzino, se chamava Manuel Mota e já tinha 43 anos.Nunca o vi sem gravata e duas mangas. Receava o vento e algum resfriado.O funeral passou ao lado do jardim. Mas no jardim já não havia amoras negras.Ontem à noite regressei ao Noitibó. O aquário já desapareceu. Estava o patrão, completamente sozinho. A um canto do balcão, velhos lp's amontoados. Comecei a procurar a Maria Bethânia. O patrão pôs o álbum no gira-discos e serviu três bebidas, para nós e para o ausente.A lágrima furtiva não se percebeu na penumbra do bar.Porra, o Manel morreu.Rogério Rodrigues.
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Não resisti a publicar este texto, que já saiu na altura da morte deste meu amigo no Jornal de Notícias ( edição de Lisboa,na rubrica Passeio Público), como uma homenagem a muitas das figuras de Moncorvo que vão desaparecendo. O texto é conhecido de algumas pessoas, mas gostaria que fosse conhecido por muitas mais, em nome do Manel que foi um homem notável. Gostaria também que para esta galeria de ausentes escrevessem outras pessoas. Por exemplo o Gil do Peredo merecia bem uma prosa e um lamento. Aqui fica a sugestão ou o desafio se quiserem.Morreu o ManelMal cheguei à terra, o olhar cheio de urzes e estevas floridas, de maias e giestas pujantes e flocos de sabugueiro, a primeira notícia que me deram soou a raios, trovões e águas turvas na memória: "Sabes?, o Manel morreu".Não ouvi o dobrar dos sinos do alto da torre por este meu amigo, um quasimodo franzino, com um curto respirar de pássaro."De que morreu?"A resposta é vaga, não sabem por inteiro."Talvez dos pulmões". O corpo deformado, a corcunda, iam-no asfixiando aos bocadinhos. É o que se diz sem nenhum rigor científico, apenas com alguma fatalidade poética.Há muitos anos entrei, já a noite ia longa, num bar, o primeiro que abrira na terra. Chamava-se o Noitibó.A um canto, numa espécie de aquário de vidro, um dj frágil, como um peixe triste, ia servindo música. Com o seu olhar, como que entendia as necessidades de momento de cada cliente. Era sábio na sua administração.Conheci então o Manel.Nas noites seguintes quando o bar fechava e no cheiro intenso a fumo flutuava uma suave melancolia, eu, o patrão e o Manel tomávamos a última bebida.Num gesto de ternura escondida, colocava o último lp, expressamente para mim, da Maria Bethânia a cantar, num álbum de parceria com Caetano Veloso, o "Leãozinho", o "Meu primeiro amor" e o "Adeus, meu tempo de chorar".Saíamos para a madrugada, havia silêncio na rua íngreme, da Cal se chama, e só muito ao longe se ouvia o ladrar de algum cão.Era um tempo sereno e medido.O Manel não conheceu a paixão e eram ignorados os seus subterrâneos de afecto.Mas um sonho houve que o acompanhou durante longos anos: cursar engenharia.Depois de muitas e inúmeras noites de dj num aquário de sons, num bar de rua estreita, conseguiu matricular-se em engenharia.Terminava este ano o curso.Faltavam poucos meses para realizar o sonho, o único que tinha de seu, além da casa herdada dos pais.Era a família que lhe custeava os estudos.Só agora soube que o Manel, o meu amigo quasimodo franzino, se chamava Manuel Mota e já tinha 43 anos.Nunca o vi sem gravata e duas mangas. Receava o vento e algum resfriado.O funeral passou ao lado do jardim. Mas no jardim já não havia amoras negras.Ontem à noite regressei ao Noitibó. O aquário já desapareceu. Estava o patrão, completamente sozinho. A um canto do balcão, velhos lp's amontoados. Comecei a procurar a Maria Bethânia. O patrão pôs o álbum no gira-discos e serviu três bebidas, para nós e para o ausente.A lágrima furtiva não se percebeu na penumbra do bar.Porra, o Manel morreu.Rogério Rodrigues.