Daniel Oliveira, 15.06.08
Há anos que dura este jogo. Já vários países chumbaram por referendo o tratado constitucional e a sua cópia simplificada. No entanto, os líderes europeus parecem não perceber a mensagem. Umas vezes atribuem o chumbo a problemas internos, outras a puro nacionalismo, outras a desconhecimento (como se quem o aprova o conhecesse em pormenor). E assim nunca tiram nenhuma conclusão dos resultados e insistem no erro: tentar construir a Europa sem a participação dos europeus. E essa é, na verdade, a principal razão da rejeição difusa do aprofundamento da União.
Partindo do princípio sempre um pouco paternalista de que a maioria dos que votam “não” e “sim” não o fazem pelo conteúdo do Tratado (eu sou contra este tratado pelo seu conteúdo e pelo seu método), há várias razões para o recorrente chumbo.
1 - Alguns europeus têm dificuldade em abandonar a soberania dos seus países. Esta seria, pelo menos para mim, uma péssima razão. Mas neste caso não o é. Uma coisa é perder soberania nacional em favor de órgãos supranacionais eleitos; outra é estar disposto a perder instrumentos políticos para instâncias sem legitimidade democrática ou com uma legitimidade demasiago mitigada. Quem quer contrapor ao nacionalismo a eurocracia está a prestar um péssimo serviço ao europeísmo e a fazer crescer o fantasma do nacionalismo na Europa.
2 - Muitos europeus, defendendo o projecto europeu, têm a legítima opinião de que uma coisa tão original e complexa exige passos cautelosos e lentos. E os factos têm-lhes dado razão. A união económica e monetária, tendo precedido à união política e à democratização das instituições europeias, criou autênticos abortos institucionais. Temos um Banco Central sem termos um verdadeiro governo europeu. O mal está feito e é agora difícil convencer os europeus de que mais aprofundamento europeu lhes vai trazer mais poder sobre os destinos da Europa. Ouvimos tantas vezes que temos de seguir caminhos inevitáveis (trilhados por entidades sem rosto), que o mal-estar é já quase irreversível.
3 - Não existe uma identidade europeia. Fingir que a Europa não é composta por um mosaico de culturas e de estados com interesses contraditórios (como se pode ver em muitas crises internacionais) é meter a cabeça debaixo da areia. A construção de uma identidade comum será sempre um processo de muitas décadas e de fim imprevisível. Só é possível através de uma longa e paciente legitimação democrática. Os atalhos apenas agravarão os problemas e darão força qo que de pior há na Europa.
4 - A Constituição Europeia, escrita por uns “sábios”, nasceu torta. A natureza deste tratado exige um Parlamento Europeu Constituinte e constituição de um Senado que garanta o equilíbrio de poderes entre Estados. Só este método dispensaria referendos. A forma de ratificação do tratado, nos parlamentos nacionais e sem um debate europeu, corresponde ao próprio espírito do tratado: uma Europa burocrática e inter-governamental em que os estados mais fracos são obrigados a aceitar as imposições dos restantes por via da chantagem. São mesmo obrigados a esquecer a opinião dos seus cidadãos. O problema é que estamos a tentar inventar uma entidade nova, com poderes que só costumamos dar a um Estado, mas queremos usar os métodos comuns para tratados internacionais. Os líderes europeus têm de se decidir: ou querem uma federação (ou algo aproximado) e dão aos cidadãos europeus os instrumentos de participação normais em federações, ou querem uma organização inter-estadual tradicional e não podem dar às instituições europeias os poderes tão reforçados. Por mim, defendo a primeira alternativa. Mas compreendo quem defenda a segunda. O que não aceito é que se seja arrojado nos objectivos e conservador no método.
A própria forma do Tratado é um excelente retrato desta construção europeia: ilegível e feito para que os cidadãos não o possam compreender e debater. Um tratado que quisesse mobilizar os europeus e não ser imposto aos europeus sem os ouvir nunca teria sido escrito desta forma.
5 - O Pacto de Estabilidade e Crescimento foi uma sentença de morte para o optimismo europeu. Ao querer avançar para união monetária sem união política impôs-se por muitos anos uma regra irracional que não sendo ideologicamente e programaticamente neutra exigia legitimação democrática. Muitas vezes diz-se a revolta das pessoas tem mais a ver com crises económicas domésticas. O problema é que as crises não são domésticas. É aliás mais injusto punir os governos nacionais pela crise do que punir a liderança europeia. O chumbo do tratado por causa da crise, quando o tratado insiste no caminho que aprofunda a crise, é mais do que legítimo. É lógico.
6 - As pessoas podem não conhecer profundamente o tratado. Mas nos países que o levaram a referendo, onde houve um profundo debate político, conhecem-o melhor do que nos países que o ratificaram nos parlamentos (é curioso ver a disparidade entre os resultados em conculta popular e votação parlamentar para perceber até onde vai o divórcio entre os cidadãos e a eleite política em matéria de política europeia). E pressentem o óbvio: o tratado é feito para concentrar em quatro ou cinco governos (que nós não elegemos) todos os poderes fundamentais.
7 - O debate do tratado não é só um debate sobre a orgânica institucional. É um debate sobre modelos de desenvolvimento, prioridades orçamentais e regras de mercado. Quem tenta esvaziar o debate sobre o tratado do seu próprio conteúdo (obsessão pelo défice e pela estabilidade monetária em detrimento de políticas sociais e de emprego, defesa absoluta da liberdade de mercado com menores instrumentos de intervenção estatal e instituição) empobrece o debate político.
8 - Em todos os referendos temos assistido a uma chantagem: ou isto ou nada e se disserem que não vão prejudicar-se a si próprios. Com a Irlanda é mesmo dito que não podem dizer que não porque beneficiaram com a Europa. Como se, devendo estar agradecidos, estivessem obrigados a ser cidadãos de segunda sem voto na matéria. Como se estivessem na Europa por favor. Os eleitores não gostam disto. E é um excelente sinal que não gostem.
9 - Uma das críticas que se faz a quem, à esquerda, se opõe ao tratado é de que se junta a uma federação de descontentamentos que incluem os sectores mais conservadores da Europa, onde está, claro, a extrema-direita. A crítica não tem qualquer sentido e está carregada de má-fé. Sempre que se vota contra qualquer coisa vota-se por razões muito diferentes. Na liberais, nacionalistas, uma grande parte da esquerda e ecologistas fizeram campanhas (bem diferentes) contra o Tratado. Os quatro tinham razões muito diferentes. O mesmo aconteceu aqui, por exemplo, quando foi o referendo da regionalização. Eu na altura fiz campanha pelo “sim” e não me passou pela cabeça acusar as pessoas de esquerda que estavam contra a regionalização por razões aceitáveis de serem aliados do discurso nacionalista que agitava o fantasma da desintegração da Nação. Exige-se o mínimo de honestidade. É natural que haja heterogeneidade no voto “não” a qualquer coisa. É do lado do “sim”, que apoia uma proposta concreta, que se espera alguma coesão.
A Europa que eu defendo é muito diferente da Europa defendida pelos nacionalistas de esquerda e de direita e seguramente oposta à das extremas-direitas europeias. Eu quero mais União Europeia, mais democracia europeia e mais cidadania europeia. E ao contrário dos que defendem este tratado não acho que ele seja um passo nesse sentido. Pelo contrário: acho que dando o passo errado ele é um recuo. Porque afasta ainda mais a Europa dos cidadãos.
10 - Se mais uma vez Bruxelas fingir que não percebe os repetidos sinais que lhe vão sendo enviados e avançar como se nada estivesse a acontecer poderá a estar a condenar o projecto europeu para sempre. Na verdade, o autismo de eurocratas e líderes europeus tem feito mais contra a União Europeia do que todos os eurocépticos juntos.
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Daniel Oliveira, 15.06.08
Há anos que dura este jogo. Já vários países chumbaram por referendo o tratado constitucional e a sua cópia simplificada. No entanto, os líderes europeus parecem não perceber a mensagem. Umas vezes atribuem o chumbo a problemas internos, outras a puro nacionalismo, outras a desconhecimento (como se quem o aprova o conhecesse em pormenor). E assim nunca tiram nenhuma conclusão dos resultados e insistem no erro: tentar construir a Europa sem a participação dos europeus. E essa é, na verdade, a principal razão da rejeição difusa do aprofundamento da União.
Partindo do princípio sempre um pouco paternalista de que a maioria dos que votam “não” e “sim” não o fazem pelo conteúdo do Tratado (eu sou contra este tratado pelo seu conteúdo e pelo seu método), há várias razões para o recorrente chumbo.
1 - Alguns europeus têm dificuldade em abandonar a soberania dos seus países. Esta seria, pelo menos para mim, uma péssima razão. Mas neste caso não o é. Uma coisa é perder soberania nacional em favor de órgãos supranacionais eleitos; outra é estar disposto a perder instrumentos políticos para instâncias sem legitimidade democrática ou com uma legitimidade demasiago mitigada. Quem quer contrapor ao nacionalismo a eurocracia está a prestar um péssimo serviço ao europeísmo e a fazer crescer o fantasma do nacionalismo na Europa.
2 - Muitos europeus, defendendo o projecto europeu, têm a legítima opinião de que uma coisa tão original e complexa exige passos cautelosos e lentos. E os factos têm-lhes dado razão. A união económica e monetária, tendo precedido à união política e à democratização das instituições europeias, criou autênticos abortos institucionais. Temos um Banco Central sem termos um verdadeiro governo europeu. O mal está feito e é agora difícil convencer os europeus de que mais aprofundamento europeu lhes vai trazer mais poder sobre os destinos da Europa. Ouvimos tantas vezes que temos de seguir caminhos inevitáveis (trilhados por entidades sem rosto), que o mal-estar é já quase irreversível.
3 - Não existe uma identidade europeia. Fingir que a Europa não é composta por um mosaico de culturas e de estados com interesses contraditórios (como se pode ver em muitas crises internacionais) é meter a cabeça debaixo da areia. A construção de uma identidade comum será sempre um processo de muitas décadas e de fim imprevisível. Só é possível através de uma longa e paciente legitimação democrática. Os atalhos apenas agravarão os problemas e darão força qo que de pior há na Europa.
4 - A Constituição Europeia, escrita por uns “sábios”, nasceu torta. A natureza deste tratado exige um Parlamento Europeu Constituinte e constituição de um Senado que garanta o equilíbrio de poderes entre Estados. Só este método dispensaria referendos. A forma de ratificação do tratado, nos parlamentos nacionais e sem um debate europeu, corresponde ao próprio espírito do tratado: uma Europa burocrática e inter-governamental em que os estados mais fracos são obrigados a aceitar as imposições dos restantes por via da chantagem. São mesmo obrigados a esquecer a opinião dos seus cidadãos. O problema é que estamos a tentar inventar uma entidade nova, com poderes que só costumamos dar a um Estado, mas queremos usar os métodos comuns para tratados internacionais. Os líderes europeus têm de se decidir: ou querem uma federação (ou algo aproximado) e dão aos cidadãos europeus os instrumentos de participação normais em federações, ou querem uma organização inter-estadual tradicional e não podem dar às instituições europeias os poderes tão reforçados. Por mim, defendo a primeira alternativa. Mas compreendo quem defenda a segunda. O que não aceito é que se seja arrojado nos objectivos e conservador no método.
A própria forma do Tratado é um excelente retrato desta construção europeia: ilegível e feito para que os cidadãos não o possam compreender e debater. Um tratado que quisesse mobilizar os europeus e não ser imposto aos europeus sem os ouvir nunca teria sido escrito desta forma.
5 - O Pacto de Estabilidade e Crescimento foi uma sentença de morte para o optimismo europeu. Ao querer avançar para união monetária sem união política impôs-se por muitos anos uma regra irracional que não sendo ideologicamente e programaticamente neutra exigia legitimação democrática. Muitas vezes diz-se a revolta das pessoas tem mais a ver com crises económicas domésticas. O problema é que as crises não são domésticas. É aliás mais injusto punir os governos nacionais pela crise do que punir a liderança europeia. O chumbo do tratado por causa da crise, quando o tratado insiste no caminho que aprofunda a crise, é mais do que legítimo. É lógico.
6 - As pessoas podem não conhecer profundamente o tratado. Mas nos países que o levaram a referendo, onde houve um profundo debate político, conhecem-o melhor do que nos países que o ratificaram nos parlamentos (é curioso ver a disparidade entre os resultados em conculta popular e votação parlamentar para perceber até onde vai o divórcio entre os cidadãos e a eleite política em matéria de política europeia). E pressentem o óbvio: o tratado é feito para concentrar em quatro ou cinco governos (que nós não elegemos) todos os poderes fundamentais.
7 - O debate do tratado não é só um debate sobre a orgânica institucional. É um debate sobre modelos de desenvolvimento, prioridades orçamentais e regras de mercado. Quem tenta esvaziar o debate sobre o tratado do seu próprio conteúdo (obsessão pelo défice e pela estabilidade monetária em detrimento de políticas sociais e de emprego, defesa absoluta da liberdade de mercado com menores instrumentos de intervenção estatal e instituição) empobrece o debate político.
8 - Em todos os referendos temos assistido a uma chantagem: ou isto ou nada e se disserem que não vão prejudicar-se a si próprios. Com a Irlanda é mesmo dito que não podem dizer que não porque beneficiaram com a Europa. Como se, devendo estar agradecidos, estivessem obrigados a ser cidadãos de segunda sem voto na matéria. Como se estivessem na Europa por favor. Os eleitores não gostam disto. E é um excelente sinal que não gostem.
9 - Uma das críticas que se faz a quem, à esquerda, se opõe ao tratado é de que se junta a uma federação de descontentamentos que incluem os sectores mais conservadores da Europa, onde está, claro, a extrema-direita. A crítica não tem qualquer sentido e está carregada de má-fé. Sempre que se vota contra qualquer coisa vota-se por razões muito diferentes. Na liberais, nacionalistas, uma grande parte da esquerda e ecologistas fizeram campanhas (bem diferentes) contra o Tratado. Os quatro tinham razões muito diferentes. O mesmo aconteceu aqui, por exemplo, quando foi o referendo da regionalização. Eu na altura fiz campanha pelo “sim” e não me passou pela cabeça acusar as pessoas de esquerda que estavam contra a regionalização por razões aceitáveis de serem aliados do discurso nacionalista que agitava o fantasma da desintegração da Nação. Exige-se o mínimo de honestidade. É natural que haja heterogeneidade no voto “não” a qualquer coisa. É do lado do “sim”, que apoia uma proposta concreta, que se espera alguma coesão.
A Europa que eu defendo é muito diferente da Europa defendida pelos nacionalistas de esquerda e de direita e seguramente oposta à das extremas-direitas europeias. Eu quero mais União Europeia, mais democracia europeia e mais cidadania europeia. E ao contrário dos que defendem este tratado não acho que ele seja um passo nesse sentido. Pelo contrário: acho que dando o passo errado ele é um recuo. Porque afasta ainda mais a Europa dos cidadãos.
10 - Se mais uma vez Bruxelas fingir que não percebe os repetidos sinais que lhe vão sendo enviados e avançar como se nada estivesse a acontecer poderá a estar a condenar o projecto europeu para sempre. Na verdade, o autismo de eurocratas e líderes europeus tem feito mais contra a União Europeia do que todos os eurocépticos juntos.