Ramones - Today Your Love, Tomorrow The World
Golpe de Estado ?
http://jornal.publico.pt/noticia/11-06-2011/golpe-de-estado-22259294.htm
in Público 11-Jun-2011, São José Almeida
Até que ponto é legítima a gestão do país através de um documento que foi assinado por um Governo que não o sufragou?
Passos Coelho é o novo primeiro-ministro, depois de o PSD vencer eleições com um resultado expressivo de 38 por cento que o colocou dez pontos percentuais à frente do PS. Formando maioria absoluta no Parlamento com o CDS, que atingiu quase 12 por cento dos votos, Passos Coelho vai formar Governo com Paulo Portas. Um Governo eleito democraticamente, suportado parlamentarmente e legitimado pela força maior do voto. Este Governo foi eleito com um programa político que está, ele também, legitimado democraticamente pelas urnas. E, concorde-se ou discorde-se com as medidas propostas, duvide-se ou não da sua viabilidade e mérito, é a proposta que a maioria dos eleitores portugueses escolheu. É desse programa eleitoral do PSD e do CDS que sai o programa de Governo que consagra o acordo de governação entre os dois partidos. E segundo o qual é suposto o país ser governados nos próximos quatro anos. Para além do que é o programa que venha a ser apresentado pelo PSD e pelo CDS, há um guião de governação para Portugal - que foi negociado pelo anterior Governo e que mereceu a concordância oficial dos líderes do PSD e do CDS - que contém parâmetros de acção, linhas de actuação e medidas concretas que estão explicitados no Memorando deixado em Portugal pela troika que constitui a delegação da Comissão Europeia, do BCE e do FMI, e que serviu de garantia à viabilização de um empréstimo de 78 mil milhões de euros. Esse programa inclui medidas que colidem com a Constituição da República Portuguesa. É essa a opinião já manifestada por Gomes Canotilho e por Afonso d'Oliveira Martins, duas personalidades do Direito, cuja autoridade na matéria ninguém questiona. E ambos foram claros ao afirmá-lo, ao participar no colóquio Crise e Constituição, organizado pela Universidade Lusíada (PÚBLICO de 2/6/2011). Gomes Canotilho apontou mesmo dois exemplos de medidas contidas no Memorando que "poderão exigir alterações à Constituição": o alargamento do conceito de despedimento por justa causa e a revisão da lei de enquadramento orçamental. Canotilho afirmou ainda o que também ninguém contestou ou poderá contestar: "É preciso dois terços dos deputados, o que será muito difícil, debates na Assembleia da República e isto não é compatível com a celeridade e com o esquema temporal desenhado no próprio Memorando". E, segundo o relato feito por Raquel Martins, Canotilho alertava para que "a situação que se vive em 2011 é muito semelhante aos períodos de guerra civil com que Portugal se confrontou no final do século XIX. Por isso, receia que as soluções sejam semelhantes, adoptando-se novas versões dos decretos ditatoriais em que os governos assumiam determinadas medidas contra a CRP". E Canotilho previa: "O que se vai invocar é novamente a ideia de salvação pública. Qualquer que seja o Governo vai dizer o seguinte: há situações que não se compadecem com o adiamento exigido por um processo de revisão constitucional e por isso vamos adoptar essas medidas. (...) O Governo vai tomar as medidas - mesmo que o Tribunal Constitucional venha dizer a posteriori que são inconstitucionais - alegando que se um governo de gestão o pôde fazer [assinar o memorando de entendimento com a troika], com maioria de razão um governo legitimado as pode e deve tomar." O que decorre destas palavras levanta várias questões do ponto de vista da legitimidade democrática. E estas questões passam não só pelo que se vive hoje e que se vai viver nos próximos tempos, mas também em relação ao que já foi feito. Ou seja, não é só questionável como será possível avançar com mudanças na lei que são inconstitucionais, sem rever a Constituição e recorrendo a um regime de excepção. Mas é também a de saber como foi possível um Governo suportado por um partido político, o PS, assinar um documento aceitando como boas e viáveis soluções que colidem com a Constituição, do mesmo modo que o aceitaram e com ele se comprometeram os dois partidos então na oposição e agora no Governo, PSD e CDS. É certo que o argumento vai ser, como alerta Gomes Canotilho, o de que o respeito pela Constituição é um mero formalismo, que pode ser contornado em nome do interesse nacional e da urgência de encontrar saídas para o arranque das medidas a que Portugal se comprometeu para receber o dinheiro da troika. E é quase garantido que ninguém nos partidos políticos que vão decidir e que têm decidido sobre a governação em Portugal vai questionar a legitimidade democrática destas medidas e desta previsível aprovação de leis inconstitucionais. Apenas se advinha que o PCP e o BE venham a levantar a voz e a criticar tal situação. Sendo que o PCP se precipitou nas críticas que fez a Cavaco Silva, já que o Presidente não indigitou o primeiro-ministro, apenas recebeu o líder do partido vencedor das eleições e convidou-o a formar Governo. As audiências formais aos partidos, incluindo o PSD, e a indigitação irão ocorrer dentro da norma constitucional. Mas a questão de fundo é a de saber até que ponto é que este ultrapassar da Constituição, em nome de uma salvação nacional expedita, é aceitável em democracia. Até que ponto um sistema democrático pode pôr em causa e desrespeitar as suas regras básicas? A democracia vive do respeito pelas regras que garantem a igualdade do tratamento de todos os cidadãos pelo Estado. E um atentado a este princípio de respeito pelas regras formais em democracia é uma forma de golpe de Estado. Por isso se pergunta: até que ponto é legítima a gestão do país através de um documento que foi assinado por um Governo que não o sufragou nas urnas antes, pelo que não recebeu a legitimação dos eleitores para o fazer? O acto de assinatura em si do Memorando da troika e a sua concretização ao arrepio do que diz a Constituição é legítimo em democracia? Não estamos a falar de uma reconfiguração das características do modelo de organização da sociedade portuguesa por uma espécie de golpe de Estado constitucional?São José Almeida | Público | 11.06.2011
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http://jornal.publico.pt/noticia/11-06-2011/golpe-de-estado-22259294.htm
in Público 11-Jun-2011, São José Almeida
Até que ponto é legítima a gestão do país através de um documento que foi assinado por um Governo que não o sufragou?
Passos Coelho é o novo primeiro-ministro, depois de o PSD vencer eleições com um resultado expressivo de 38 por cento que o colocou dez pontos percentuais à frente do PS. Formando maioria absoluta no Parlamento com o CDS, que atingiu quase 12 por cento dos votos, Passos Coelho vai formar Governo com Paulo Portas. Um Governo eleito democraticamente, suportado parlamentarmente e legitimado pela força maior do voto. Este Governo foi eleito com um programa político que está, ele também, legitimado democraticamente pelas urnas. E, concorde-se ou discorde-se com as medidas propostas, duvide-se ou não da sua viabilidade e mérito, é a proposta que a maioria dos eleitores portugueses escolheu. É desse programa eleitoral do PSD e do CDS que sai o programa de Governo que consagra o acordo de governação entre os dois partidos. E segundo o qual é suposto o país ser governados nos próximos quatro anos. Para além do que é o programa que venha a ser apresentado pelo PSD e pelo CDS, há um guião de governação para Portugal - que foi negociado pelo anterior Governo e que mereceu a concordância oficial dos líderes do PSD e do CDS - que contém parâmetros de acção, linhas de actuação e medidas concretas que estão explicitados no Memorando deixado em Portugal pela troika que constitui a delegação da Comissão Europeia, do BCE e do FMI, e que serviu de garantia à viabilização de um empréstimo de 78 mil milhões de euros. Esse programa inclui medidas que colidem com a Constituição da República Portuguesa. É essa a opinião já manifestada por Gomes Canotilho e por Afonso d'Oliveira Martins, duas personalidades do Direito, cuja autoridade na matéria ninguém questiona. E ambos foram claros ao afirmá-lo, ao participar no colóquio Crise e Constituição, organizado pela Universidade Lusíada (PÚBLICO de 2/6/2011). Gomes Canotilho apontou mesmo dois exemplos de medidas contidas no Memorando que "poderão exigir alterações à Constituição": o alargamento do conceito de despedimento por justa causa e a revisão da lei de enquadramento orçamental. Canotilho afirmou ainda o que também ninguém contestou ou poderá contestar: "É preciso dois terços dos deputados, o que será muito difícil, debates na Assembleia da República e isto não é compatível com a celeridade e com o esquema temporal desenhado no próprio Memorando". E, segundo o relato feito por Raquel Martins, Canotilho alertava para que "a situação que se vive em 2011 é muito semelhante aos períodos de guerra civil com que Portugal se confrontou no final do século XIX. Por isso, receia que as soluções sejam semelhantes, adoptando-se novas versões dos decretos ditatoriais em que os governos assumiam determinadas medidas contra a CRP". E Canotilho previa: "O que se vai invocar é novamente a ideia de salvação pública. Qualquer que seja o Governo vai dizer o seguinte: há situações que não se compadecem com o adiamento exigido por um processo de revisão constitucional e por isso vamos adoptar essas medidas. (...) O Governo vai tomar as medidas - mesmo que o Tribunal Constitucional venha dizer a posteriori que são inconstitucionais - alegando que se um governo de gestão o pôde fazer [assinar o memorando de entendimento com a troika], com maioria de razão um governo legitimado as pode e deve tomar." O que decorre destas palavras levanta várias questões do ponto de vista da legitimidade democrática. E estas questões passam não só pelo que se vive hoje e que se vai viver nos próximos tempos, mas também em relação ao que já foi feito. Ou seja, não é só questionável como será possível avançar com mudanças na lei que são inconstitucionais, sem rever a Constituição e recorrendo a um regime de excepção. Mas é também a de saber como foi possível um Governo suportado por um partido político, o PS, assinar um documento aceitando como boas e viáveis soluções que colidem com a Constituição, do mesmo modo que o aceitaram e com ele se comprometeram os dois partidos então na oposição e agora no Governo, PSD e CDS. É certo que o argumento vai ser, como alerta Gomes Canotilho, o de que o respeito pela Constituição é um mero formalismo, que pode ser contornado em nome do interesse nacional e da urgência de encontrar saídas para o arranque das medidas a que Portugal se comprometeu para receber o dinheiro da troika. E é quase garantido que ninguém nos partidos políticos que vão decidir e que têm decidido sobre a governação em Portugal vai questionar a legitimidade democrática destas medidas e desta previsível aprovação de leis inconstitucionais. Apenas se advinha que o PCP e o BE venham a levantar a voz e a criticar tal situação. Sendo que o PCP se precipitou nas críticas que fez a Cavaco Silva, já que o Presidente não indigitou o primeiro-ministro, apenas recebeu o líder do partido vencedor das eleições e convidou-o a formar Governo. As audiências formais aos partidos, incluindo o PSD, e a indigitação irão ocorrer dentro da norma constitucional. Mas a questão de fundo é a de saber até que ponto é que este ultrapassar da Constituição, em nome de uma salvação nacional expedita, é aceitável em democracia. Até que ponto um sistema democrático pode pôr em causa e desrespeitar as suas regras básicas? A democracia vive do respeito pelas regras que garantem a igualdade do tratamento de todos os cidadãos pelo Estado. E um atentado a este princípio de respeito pelas regras formais em democracia é uma forma de golpe de Estado. Por isso se pergunta: até que ponto é legítima a gestão do país através de um documento que foi assinado por um Governo que não o sufragou nas urnas antes, pelo que não recebeu a legitimação dos eleitores para o fazer? O acto de assinatura em si do Memorando da troika e a sua concretização ao arrepio do que diz a Constituição é legítimo em democracia? Não estamos a falar de uma reconfiguração das características do modelo de organização da sociedade portuguesa por uma espécie de golpe de Estado constitucional?São José Almeida | Público | 11.06.2011