• Ferreira Fernandes, MERECER SER MERITÍSSIMO: “Um juiz que suspende julgamentos porque durante um julgamento se cometeu um crime, é um juiz que não acredita que os julgamentos servem para combater os crimes. E, já agora, do ponto de vista do criminoso: se um crime num julgamento acaba temporariamente com os julgamentos numa comarca, porque não mais crimes desses para prolongar a suspensão de julgamentos? E porque não estender a táctica a todos os tribunais portugueses?” • Nuno Brederode Santos, AS FACES DA LEI: “E vem de longe, do mais remoto da memória que ainda guardo. De tempos em que o juiz partilhava as dificuldades materiais da classe média e só dela sobressaía pelo prestígio social que a independência funcional lhe dava. Não seria, claro está, a independência que a democracia lhe confere: tinha por óbvio limite o que fosse caro à ditadura (num exemplo extremo, um juiz que aceitasse funções no Tribunal Plenário bem sabia o que vendia e a que preço). Mas, contido no crime ou no cível, ele pairava por sobre todas as cabeças da comarca, no pobre Portugal de então. Onde isto vai. Em bem menos de três décadas, julgando que os espíritos são linearmente tão mais livres quanto mais os corpos estiverem a salvo das contingências materiais do dia-a-dia, o regime democrático tomou a classe nos seus desvelos e deu-lhes um estatuto de excepção: os melhores ordenados do Estado e as mais singulares regalias (no activo e na reforma). E o que é mais: o silêncio das instituições, enquanto na classe iam grassando as piores ilusões - como a de a independência ser um direito seu (em vez de um dever para connosco), ou a de, substituindo a sujeição ao sufrágio por um rápido curso no Centro de Estudos Judiciários, se tornarem titulares de um órgão de soberania (em vez de estarem ao seu serviço). É verdade que muitos magistrados houve a alertar-nos para estes e outros riscos. Mas também o é que a vontade profissionalmente organizada e o desleixo do Estado democrático consentiram que se chegasse aos protagonismos que costumam prenunciar a república dos juízes. Com a singular agravante de, nem por aspirarem a ar fresco na cabeça, renunciarem aos pés devidamente aquecidos. E daí o permanente ziguezague - por vezes, numa sobreposição que nem sequer se interroga - entre o impulso de co-autoria das leis e a reivindicação corporativa dos seus direitos adquiridos.”
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• Ferreira Fernandes, MERECER SER MERITÍSSIMO: “Um juiz que suspende julgamentos porque durante um julgamento se cometeu um crime, é um juiz que não acredita que os julgamentos servem para combater os crimes. E, já agora, do ponto de vista do criminoso: se um crime num julgamento acaba temporariamente com os julgamentos numa comarca, porque não mais crimes desses para prolongar a suspensão de julgamentos? E porque não estender a táctica a todos os tribunais portugueses?” • Nuno Brederode Santos, AS FACES DA LEI: “E vem de longe, do mais remoto da memória que ainda guardo. De tempos em que o juiz partilhava as dificuldades materiais da classe média e só dela sobressaía pelo prestígio social que a independência funcional lhe dava. Não seria, claro está, a independência que a democracia lhe confere: tinha por óbvio limite o que fosse caro à ditadura (num exemplo extremo, um juiz que aceitasse funções no Tribunal Plenário bem sabia o que vendia e a que preço). Mas, contido no crime ou no cível, ele pairava por sobre todas as cabeças da comarca, no pobre Portugal de então. Onde isto vai. Em bem menos de três décadas, julgando que os espíritos são linearmente tão mais livres quanto mais os corpos estiverem a salvo das contingências materiais do dia-a-dia, o regime democrático tomou a classe nos seus desvelos e deu-lhes um estatuto de excepção: os melhores ordenados do Estado e as mais singulares regalias (no activo e na reforma). E o que é mais: o silêncio das instituições, enquanto na classe iam grassando as piores ilusões - como a de a independência ser um direito seu (em vez de um dever para connosco), ou a de, substituindo a sujeição ao sufrágio por um rápido curso no Centro de Estudos Judiciários, se tornarem titulares de um órgão de soberania (em vez de estarem ao seu serviço). É verdade que muitos magistrados houve a alertar-nos para estes e outros riscos. Mas também o é que a vontade profissionalmente organizada e o desleixo do Estado democrático consentiram que se chegasse aos protagonismos que costumam prenunciar a república dos juízes. Com a singular agravante de, nem por aspirarem a ar fresco na cabeça, renunciarem aos pés devidamente aquecidos. E daí o permanente ziguezague - por vezes, numa sobreposição que nem sequer se interroga - entre o impulso de co-autoria das leis e a reivindicação corporativa dos seus direitos adquiridos.”