Antologias: NAQUELES IDOS DE NOVA LISBOA DA DÉCADA DE 40

01-07-2011
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NAQUELES IDOS DE NOVA LISBOA DA DÉCADA DE 40 via MUKANDAS do Monte Estoril by Irdea on 4/29/10 Campo de futebol do Sporting Clube do Huambo actualmente OS BAILES DE FIM DE ANO NO SPORTING CLUBE DO HUAMBO(*) Numa cidade onde as sessões de cinema no Ruacaná, os piqueniques na barragem do Cuando e os desafios de futebol constituíam os únicos entretenimentos públicos, a comemoração da passagem do ano era ansio-samente esperada. O Sporting, o Ferrovia e o Atlético competiam entre si na realização do baile mais animado. Ainda Dezembro ia em meio, já cada uma das agremiações anunciava no Rádio Clube do Huambo e na Voz do Planalto o acontecimento, aceitando inscrições para o efeito. Talvez por simpatia clubista, ou por hábito adquirido, ou porque achava mesmo que não podia escolher melhor, Jota-Jota participava sempre nos reveillons do Sporting. Tinha razões para isso: a música não era aí, como se dizia, «de pick-up», mas executada por uma orquestra ao vivo, encarrapitada num estrado erguido à pressa e que tocava até de madrugada. Os passo-dobles, os tangos, as rumbas, as valsas não pro-vinham mais de discos estafados e defeituosos, mas do piano, do saxofone, do trompete, do acordeão, que atroavam o ar com as notas de cada peça. Havia lá comparações!... As famílias tomavam a seu cargo a confecção dos comes-e-bebes para a ceia. Com o empenho que não regateavam nunca, preparavam com antecedência as toalhas, os guardanapos, os talheres, uma ou duas jarras para encher de flores e decorar as mesas. Não querendo fazer má figura junto de amigos e conhecidos, Dona Maria Albertina esmerava-se nessa tarefa. Particularmente empenhada, lançava-se ao trabalho de véspera, logo na manhã do dia 30, quando punha o avental na cintura e se enfiava na cozinha. O cozinheiro Gunga franzia a testa e não gostava nada de ter a patroa tão perto de si durante aquelas horas. Numa roda viva, andava de um lado para o outro, sem conseguir dar conta de tantas ordens e repri-mendas («Aca!, muita chatice e compricação!...»). — Põe mais lenha no fogão! De que estás à espera? Anda lá, não durmas! Gunga obedecia sem um protesto. Punha a lenha no fogão, mas logo a seguir, à voz da «sinhora», descascava e cortava a cebola para os refogados, batia os ovos e a farinha para as massas, misturava com as mãos enormes o azeite, o sal, o alho e a pimenta para o tempero das carnes, espevitava o lume com o aba­no de palha entrançada. De faces rosadas pelo calor que andava no ar, Dona Maria Albertina seguia escrupulosamente a lista que elaborara uns dias antes: peru e leitão assados, pastéis de bacalhau e empadas de galinha, duas ou três sobremesas, pratinhos de leite-creme e arroz doce. Para beber à meia-noite, pedira ao marido para comprar numa mercearia da Baixa duas garrafas de espumoso («Da 'Raposeira', só da 'Raposeira', o mais caro, mas o melhor!»), porque a data era importante e devia ser dignamente festejada. Ana Isabel resolveu nesse ano ajudar a mãe. Cada vez mais apaixonada por Sebastião, já com o casamento marcado para breve, estava particu-larmente empenhada em que tudo corresse bem. *** As mesas eram postas durante a tarde. Com mais ou menos gosto, as senhoras distribuíam sobre as toalhas bordadas o que tinham trazido de casa: as travessas dos salgados, os pratos das sobremesas, as tacinhas dos frutos secos vindos de Portugal (os pinhões, as avelãs, as ameixas, os figos e as nozes). O cheiro compósito de tanta iguaria reunida começava de imediato a tomar conta do ar. O baile não principiava antes das dez horas, quando a orquestra subia para o estrado. Avisando que a música vinha aí, o baterista batia repeti-damente com as baquetas nos tambores, zurzia três ou quatro vezes os pratos, deixando depois que os companheiros arrancassem em conjunto a composição de abertura. Poucos pares resistiam a esse apelo: de mãos dadas, iam até à pista de dança; com mais ou menos jeito, rodopiavam então conforme o ritmo. Jota-Jota não disfarçava o seu contentamento. Numa ocorrência tão especial, tinha ali consigo todos aqueles que amava, e agora também Sebastião, seu genro daí a meses, que lhe dava continuamente provas de ser o marido apropriado para a filha. Que precisava mais ou poderia desejar para se sentir completamente feliz? Dona Maria Albertina é que não se conformara ainda com aquele casamento. Insistia: como é que uma rapariga tão prendada, bela e inte-ligente se deixava arrastar assim pela paixão? Que teimosia!... Tão feliz como o pai, Ana Isabel estava linda nessa noite. Não era só o vestido verde de seda que brilhava colado ao corpo, mas também o cabelo louro, os olhos azuis, os dentes cor de pérola, a pele coberta de sardas, toda ela radiante da cabeça aos pés. Disposta a não ficar sentada na cadeira um minuto sequer, fitou Se-bastião com ternura: — Vamos?... Levantou-se, estendeu o braço e insistiu: — Vamos?... Queria dançar, dançar, não importava o quê: ser levada nos braços fortes do seu par, que a apertava contra o peito e lhe segredava galanteios ao ouvido. Acompanhado pelo acordeão e o violino, o solista da orquestra cantava então um tango de Carlos Gardel. De mãos metidas nos bolsos das calças, esgalgava a cabeça de fuinha para o microfone, fechava os olhos romanticamente, estropiando a letra num espanhol carregado de sotaque: «Su boca que besa Borra la tristeza Calma la amargura...» Como dissera já a propósito dos passo-dobles, das rumbas e das valsas; como dissera antes a propósito de tudo o que dançara, Ana Isabel obser-vou: — Adoro um tango! Parecendo ter escutado o comentário, o solista esmerou-se na voz: «Su boca que besa Borra la tristeza Calma la amargura...» Ana Isabel repetiu: — Adoro!, adoro!, adoro! Perguntou: — E tu? Sebastião baixou a cabeça e respondeu que sim; em tom meloso, acres-centou: — Adoro sempre aquilo que danço contigo! Como um eco do que ouvira, imitou: — Adoro!, adoro!, adoro! Pouco antes da meia-noite, a orquestra parou de tocar. O Presidente do Clube subiu ao estrado e lembrou que 1946 se aproximava. À maneira de um discurso («Minhas senhoras e meus senhores!»), desejou a todos os presentes um Ano Novo cheio de paz e prosperidades. Olhou fixamente para o relógio de pulso: — Atenção!, atenção! Principiou a contagem regressiva: — Cinco, quatro, três, dois, um! Estouraram nas mesas as garrafas de champanhe, atravessaram o salão gritos e assobios, acenderam-se e apagaram-se no tecto as lâmpadas da iluminação, e a orquestra, toda de pé, atacou uma marcha militar. Andando de um lado para o outro, de taças cheias nas mãos, as famí-lias cumprimentavam-se efusivamente. Não escondiam a sua alegria e trocavam entre si as saudações da praxe. Aos beijos e abraços, ninguém conseguia resistir àquela euforia contagiante. Em bicos de pés, já sem qualquer relutância, Dona Maria Albertina beijou pela primeira vez o futuro genro: — Felicidades! Muitas felicidades! Ele comoveu-se e agradeceu: — Obrigado! Obrigado! __________ (*)Inácio Rebelo de Andrade in Na Babugem do Êxodo (romance), Nova Vega, Lisboa, 2005 (Colecção «Palavra Africana) (versão revista pelo autor).


NAQUELES IDOS DE NOVA LISBOA DA DÉCADA DE 40 via MUKANDAS do Monte Estoril by Irdea on 4/29/10 Campo de futebol do Sporting Clube do Huambo actualmente OS BAILES DE FIM DE ANO NO SPORTING CLUBE DO HUAMBO(*) Numa cidade onde as sessões de cinema no Ruacaná, os piqueniques na barragem do Cuando e os desafios de futebol constituíam os únicos entretenimentos públicos, a comemoração da passagem do ano era ansio-samente esperada. O Sporting, o Ferrovia e o Atlético competiam entre si na realização do baile mais animado. Ainda Dezembro ia em meio, já cada uma das agremiações anunciava no Rádio Clube do Huambo e na Voz do Planalto o acontecimento, aceitando inscrições para o efeito. Talvez por simpatia clubista, ou por hábito adquirido, ou porque achava mesmo que não podia escolher melhor, Jota-Jota participava sempre nos reveillons do Sporting. Tinha razões para isso: a música não era aí, como se dizia, «de pick-up», mas executada por uma orquestra ao vivo, encarrapitada num estrado erguido à pressa e que tocava até de madrugada. Os passo-dobles, os tangos, as rumbas, as valsas não pro-vinham mais de discos estafados e defeituosos, mas do piano, do saxofone, do trompete, do acordeão, que atroavam o ar com as notas de cada peça. Havia lá comparações!... As famílias tomavam a seu cargo a confecção dos comes-e-bebes para a ceia. Com o empenho que não regateavam nunca, preparavam com antecedência as toalhas, os guardanapos, os talheres, uma ou duas jarras para encher de flores e decorar as mesas. Não querendo fazer má figura junto de amigos e conhecidos, Dona Maria Albertina esmerava-se nessa tarefa. Particularmente empenhada, lançava-se ao trabalho de véspera, logo na manhã do dia 30, quando punha o avental na cintura e se enfiava na cozinha. O cozinheiro Gunga franzia a testa e não gostava nada de ter a patroa tão perto de si durante aquelas horas. Numa roda viva, andava de um lado para o outro, sem conseguir dar conta de tantas ordens e repri-mendas («Aca!, muita chatice e compricação!...»). — Põe mais lenha no fogão! De que estás à espera? Anda lá, não durmas! Gunga obedecia sem um protesto. Punha a lenha no fogão, mas logo a seguir, à voz da «sinhora», descascava e cortava a cebola para os refogados, batia os ovos e a farinha para as massas, misturava com as mãos enormes o azeite, o sal, o alho e a pimenta para o tempero das carnes, espevitava o lume com o aba­no de palha entrançada. De faces rosadas pelo calor que andava no ar, Dona Maria Albertina seguia escrupulosamente a lista que elaborara uns dias antes: peru e leitão assados, pastéis de bacalhau e empadas de galinha, duas ou três sobremesas, pratinhos de leite-creme e arroz doce. Para beber à meia-noite, pedira ao marido para comprar numa mercearia da Baixa duas garrafas de espumoso («Da 'Raposeira', só da 'Raposeira', o mais caro, mas o melhor!»), porque a data era importante e devia ser dignamente festejada. Ana Isabel resolveu nesse ano ajudar a mãe. Cada vez mais apaixonada por Sebastião, já com o casamento marcado para breve, estava particu-larmente empenhada em que tudo corresse bem. *** As mesas eram postas durante a tarde. Com mais ou menos gosto, as senhoras distribuíam sobre as toalhas bordadas o que tinham trazido de casa: as travessas dos salgados, os pratos das sobremesas, as tacinhas dos frutos secos vindos de Portugal (os pinhões, as avelãs, as ameixas, os figos e as nozes). O cheiro compósito de tanta iguaria reunida começava de imediato a tomar conta do ar. O baile não principiava antes das dez horas, quando a orquestra subia para o estrado. Avisando que a música vinha aí, o baterista batia repeti-damente com as baquetas nos tambores, zurzia três ou quatro vezes os pratos, deixando depois que os companheiros arrancassem em conjunto a composição de abertura. Poucos pares resistiam a esse apelo: de mãos dadas, iam até à pista de dança; com mais ou menos jeito, rodopiavam então conforme o ritmo. Jota-Jota não disfarçava o seu contentamento. Numa ocorrência tão especial, tinha ali consigo todos aqueles que amava, e agora também Sebastião, seu genro daí a meses, que lhe dava continuamente provas de ser o marido apropriado para a filha. Que precisava mais ou poderia desejar para se sentir completamente feliz? Dona Maria Albertina é que não se conformara ainda com aquele casamento. Insistia: como é que uma rapariga tão prendada, bela e inte-ligente se deixava arrastar assim pela paixão? Que teimosia!... Tão feliz como o pai, Ana Isabel estava linda nessa noite. Não era só o vestido verde de seda que brilhava colado ao corpo, mas também o cabelo louro, os olhos azuis, os dentes cor de pérola, a pele coberta de sardas, toda ela radiante da cabeça aos pés. Disposta a não ficar sentada na cadeira um minuto sequer, fitou Se-bastião com ternura: — Vamos?... Levantou-se, estendeu o braço e insistiu: — Vamos?... Queria dançar, dançar, não importava o quê: ser levada nos braços fortes do seu par, que a apertava contra o peito e lhe segredava galanteios ao ouvido. Acompanhado pelo acordeão e o violino, o solista da orquestra cantava então um tango de Carlos Gardel. De mãos metidas nos bolsos das calças, esgalgava a cabeça de fuinha para o microfone, fechava os olhos romanticamente, estropiando a letra num espanhol carregado de sotaque: «Su boca que besa Borra la tristeza Calma la amargura...» Como dissera já a propósito dos passo-dobles, das rumbas e das valsas; como dissera antes a propósito de tudo o que dançara, Ana Isabel obser-vou: — Adoro um tango! Parecendo ter escutado o comentário, o solista esmerou-se na voz: «Su boca que besa Borra la tristeza Calma la amargura...» Ana Isabel repetiu: — Adoro!, adoro!, adoro! Perguntou: — E tu? Sebastião baixou a cabeça e respondeu que sim; em tom meloso, acres-centou: — Adoro sempre aquilo que danço contigo! Como um eco do que ouvira, imitou: — Adoro!, adoro!, adoro! Pouco antes da meia-noite, a orquestra parou de tocar. O Presidente do Clube subiu ao estrado e lembrou que 1946 se aproximava. À maneira de um discurso («Minhas senhoras e meus senhores!»), desejou a todos os presentes um Ano Novo cheio de paz e prosperidades. Olhou fixamente para o relógio de pulso: — Atenção!, atenção! Principiou a contagem regressiva: — Cinco, quatro, três, dois, um! Estouraram nas mesas as garrafas de champanhe, atravessaram o salão gritos e assobios, acenderam-se e apagaram-se no tecto as lâmpadas da iluminação, e a orquestra, toda de pé, atacou uma marcha militar. Andando de um lado para o outro, de taças cheias nas mãos, as famí-lias cumprimentavam-se efusivamente. Não escondiam a sua alegria e trocavam entre si as saudações da praxe. Aos beijos e abraços, ninguém conseguia resistir àquela euforia contagiante. Em bicos de pés, já sem qualquer relutância, Dona Maria Albertina beijou pela primeira vez o futuro genro: — Felicidades! Muitas felicidades! Ele comoveu-se e agradeceu: — Obrigado! Obrigado! __________ (*)Inácio Rebelo de Andrade in Na Babugem do Êxodo (romance), Nova Vega, Lisboa, 2005 (Colecção «Palavra Africana) (versão revista pelo autor).

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