Por ser o bastonário da minha Ordem profissional e porque, naturalmente, se trata de um debate público cujos contornos tangem, em todos os aspectos possíveis, a minha vida quotidiana bem como muito daquilo que venho abordando no Devaneios, não posso deixar de formular alguns comentários à celeuma que varre a Ordem dos Advogados e a Justiça portuguesa, ontem potenciada com (mais umas) declarações prestadas no programa "Grande Entrevista" da RTP1.
Não tenho particular simpatia pelo estilo necessariamente polémico e frontal de Marinho Pinto. Não aprecio uma certa irrazoabilidade e aparente necessidade de mediatismo a que sua mensagem tende a ser associada. Lamento, como advogado, as declarações acerca de um suposto "alarmismo extremista" da definição da política legislativa no que toca o crime de maus tratos conjugais. Deploro a sua defesa do cariz político da detenção de Mário Machado, símbolo do mais perigoso que os movimentos de extrema direita podem representar para a sociedade portuguesa. Mas, existem considerações que devem ser feitas aos assuntos que vem abordando, em particular aqueles que mais se relacionam com as quezílias internas da Justiça portuguesa. E nesse ponto - o seu a seu dono - reconheça-se o talento de Marinho Pinto em servir de atirador de pedra a um charco cada vez mais perigosamente pantanoso e lodosoE a verdade, quanto a mim, é que o Bastonário tem razão quando fala nas influências salazaristas na Justiça nacional. Naturalmente que o seu jeito pode ultrapassar as usuais regras de trato intercorporativo, diplomacia e protocolo que as elites da Justiça tanto apreciam e que, não nego, existem por alguma razão. Mas, quanto a mim, a acre verdade é bem mais extensa do que o discurso impulsivo e virado para a magistratura que MP vocifera. Com efeito, a dimensão corporativista da Justiça não é um problema exclusivo de (alguns) magistrados. É um vírus que infecta ainda todo o sistema - incluindo advogados, sim, porque é bom que se o reconheça- fruto de uma transição democrática que, ao bom e costumeiro jeito luso, preferiu a calma mudança na continuidade a uma certa lustração corporativa que o advento dos ideais de Abril exigia. Não houve um ajuste de contas com os métodos do passado, nem tão pouco uma efectiva condenação unânime das suas práticas. Subsistem, por exemplo, bolsas de operadores do sistema - e, de forma preocupante, mesmo nas faixas etárias mais jovens!- com as interpretações mais contrárias à consagração efectiva e límpida do império dos direitos humanos, defensores objectivos de visões objectiva e intencionalmente avessas a qualquer lógica garantística. Quem segue de perto este Devaneios bem saberá que aqui tenho, ocasionalmente, revelado alguns desses problemas na Justiça portuguesa. Mas, ao contrário do que jornalistas, sindicatos de Magistrados, de oficiais de Justiça, políticos e algumas correntes dentro da Ordem dos Advogados exigem, não é necessário dar exemplos. Nem tão pouco sugerir nomes de magistrados e advogados salazarentos ou oficiais de justiça corruptos. Não é mesmo preciso porque a questão é a de uma prática que amiúde se faz sentir, o que, no Portugal democrático, já não deveria suceder. Quem faz a vida de Tribunal sabe que a realidade existe por si mesma, sem necessidade de confirmação. Não se trata de meras "vozes públicas" ou "sapiência popular". E quem demandando a vida judiciária portuguesa, negue o seu conhecimento, mais não estará a fazer do que aproveitar - quiçá politicamente - a tempestade - obviamente não desinteressada nem tão pouco tão espontânea como se poderia imaginar- que varre a Ordem.A blindagem corporativa da Justiça, e sobretudo a sua insensibilidade social, faz-se sentir, por exemplo, no sistema de acesso ao Direito - o chamado apoio judiciário - criado para quem menos tem ou pode, e que não raras vezes tenho abordado neste Devaneios.Em jeito de declaração de interesses, desde já se tome por assente que, também eu e no meu estágio, assegurei as defesas oficiosas que me competiam. Com participação em centenas de processos, tomei e apreendi o pulsar necessário da dinâmica de tribunal. Naturalmente, ganhei dinheiro. E, obviamente que se fosse estagiário, custar-me-ia perder esse direito.Mas essa condição - como muitos dos meus mais próximos pares poderão corroborar - nunca me impediu de considerar uma certa estranheza no facto de as defesas oficiosas dos cidadãos de baixos rendimentos serem entregues a quem menos sabe. Porque é inegável que hoje, como advogado, sei mais e compreendo a dinâmica do sistema de forma muito melhor do que há anos quando me iniciei como advogado estagiário. Isso não decorre da maior ou menor capacidade técnica do estagiário, que pode ser - e não raras vezes assim sucede - excelente. Resulta, tão-somente, de uma costumeira regra da vida: a experiência é um conhecimento por si mesmo.Ora, e de facto, a aprendizagem da advocacia não pode ser feita à custa de quem menos tem. Não é compreensível nem aceitável que um cidadão seja defendido num julgamento em que pode ser preso até 5 anos por um estagiário cuja ingresso na Ordem poderá vir a ser, a jusante, negado, como não raras vezes sucede. Se aquele estagiário não pode ser advogado...porque raio pôde defender um cidadão sem posses? E não se diga que a defesa oficiosa compete a todos porque, na prática, a vasta maioria das nomeações oficiosas são atribuídas a estagiários, sobretudo no ramo do Direito onde mais pertinente se assume o cuidado com direitos, liberdades e garantias: o direito penal. A defesa oficiosa de quem não tem deveria ser assegurada por todos, do Dr Marinho Pinto ao Dr José Miguel Júdice, como responsabilidade social da classe.No entanto, não posso deixar de lamentar que os estagiários sejam vistos como bodes expiatórios de todos os males do sistema, o qual não lhes deve retirar aquilo que é actualmente a pedra basilar da sua formação. Antes de semelhante alteração, deveria ter sido estabelecido um novo sistema de formação que assegurasse a apreensão dos ditames da prática forense. De idêntico modo, tem que ser assegurada a remuneração efectiva dos estagiários, regulando-se uma situação presente que objectivamente se traduz, sobretudo nas áreas urbanas, numa exploração de mão de obra a baixo preço desprovida de qualquer direito ou remuneração condigna.
Categorias
Entidades
Por ser o bastonário da minha Ordem profissional e porque, naturalmente, se trata de um debate público cujos contornos tangem, em todos os aspectos possíveis, a minha vida quotidiana bem como muito daquilo que venho abordando no Devaneios, não posso deixar de formular alguns comentários à celeuma que varre a Ordem dos Advogados e a Justiça portuguesa, ontem potenciada com (mais umas) declarações prestadas no programa "Grande Entrevista" da RTP1.
Não tenho particular simpatia pelo estilo necessariamente polémico e frontal de Marinho Pinto. Não aprecio uma certa irrazoabilidade e aparente necessidade de mediatismo a que sua mensagem tende a ser associada. Lamento, como advogado, as declarações acerca de um suposto "alarmismo extremista" da definição da política legislativa no que toca o crime de maus tratos conjugais. Deploro a sua defesa do cariz político da detenção de Mário Machado, símbolo do mais perigoso que os movimentos de extrema direita podem representar para a sociedade portuguesa. Mas, existem considerações que devem ser feitas aos assuntos que vem abordando, em particular aqueles que mais se relacionam com as quezílias internas da Justiça portuguesa. E nesse ponto - o seu a seu dono - reconheça-se o talento de Marinho Pinto em servir de atirador de pedra a um charco cada vez mais perigosamente pantanoso e lodosoE a verdade, quanto a mim, é que o Bastonário tem razão quando fala nas influências salazaristas na Justiça nacional. Naturalmente que o seu jeito pode ultrapassar as usuais regras de trato intercorporativo, diplomacia e protocolo que as elites da Justiça tanto apreciam e que, não nego, existem por alguma razão. Mas, quanto a mim, a acre verdade é bem mais extensa do que o discurso impulsivo e virado para a magistratura que MP vocifera. Com efeito, a dimensão corporativista da Justiça não é um problema exclusivo de (alguns) magistrados. É um vírus que infecta ainda todo o sistema - incluindo advogados, sim, porque é bom que se o reconheça- fruto de uma transição democrática que, ao bom e costumeiro jeito luso, preferiu a calma mudança na continuidade a uma certa lustração corporativa que o advento dos ideais de Abril exigia. Não houve um ajuste de contas com os métodos do passado, nem tão pouco uma efectiva condenação unânime das suas práticas. Subsistem, por exemplo, bolsas de operadores do sistema - e, de forma preocupante, mesmo nas faixas etárias mais jovens!- com as interpretações mais contrárias à consagração efectiva e límpida do império dos direitos humanos, defensores objectivos de visões objectiva e intencionalmente avessas a qualquer lógica garantística. Quem segue de perto este Devaneios bem saberá que aqui tenho, ocasionalmente, revelado alguns desses problemas na Justiça portuguesa. Mas, ao contrário do que jornalistas, sindicatos de Magistrados, de oficiais de Justiça, políticos e algumas correntes dentro da Ordem dos Advogados exigem, não é necessário dar exemplos. Nem tão pouco sugerir nomes de magistrados e advogados salazarentos ou oficiais de justiça corruptos. Não é mesmo preciso porque a questão é a de uma prática que amiúde se faz sentir, o que, no Portugal democrático, já não deveria suceder. Quem faz a vida de Tribunal sabe que a realidade existe por si mesma, sem necessidade de confirmação. Não se trata de meras "vozes públicas" ou "sapiência popular". E quem demandando a vida judiciária portuguesa, negue o seu conhecimento, mais não estará a fazer do que aproveitar - quiçá politicamente - a tempestade - obviamente não desinteressada nem tão pouco tão espontânea como se poderia imaginar- que varre a Ordem.A blindagem corporativa da Justiça, e sobretudo a sua insensibilidade social, faz-se sentir, por exemplo, no sistema de acesso ao Direito - o chamado apoio judiciário - criado para quem menos tem ou pode, e que não raras vezes tenho abordado neste Devaneios.Em jeito de declaração de interesses, desde já se tome por assente que, também eu e no meu estágio, assegurei as defesas oficiosas que me competiam. Com participação em centenas de processos, tomei e apreendi o pulsar necessário da dinâmica de tribunal. Naturalmente, ganhei dinheiro. E, obviamente que se fosse estagiário, custar-me-ia perder esse direito.Mas essa condição - como muitos dos meus mais próximos pares poderão corroborar - nunca me impediu de considerar uma certa estranheza no facto de as defesas oficiosas dos cidadãos de baixos rendimentos serem entregues a quem menos sabe. Porque é inegável que hoje, como advogado, sei mais e compreendo a dinâmica do sistema de forma muito melhor do que há anos quando me iniciei como advogado estagiário. Isso não decorre da maior ou menor capacidade técnica do estagiário, que pode ser - e não raras vezes assim sucede - excelente. Resulta, tão-somente, de uma costumeira regra da vida: a experiência é um conhecimento por si mesmo.Ora, e de facto, a aprendizagem da advocacia não pode ser feita à custa de quem menos tem. Não é compreensível nem aceitável que um cidadão seja defendido num julgamento em que pode ser preso até 5 anos por um estagiário cuja ingresso na Ordem poderá vir a ser, a jusante, negado, como não raras vezes sucede. Se aquele estagiário não pode ser advogado...porque raio pôde defender um cidadão sem posses? E não se diga que a defesa oficiosa compete a todos porque, na prática, a vasta maioria das nomeações oficiosas são atribuídas a estagiários, sobretudo no ramo do Direito onde mais pertinente se assume o cuidado com direitos, liberdades e garantias: o direito penal. A defesa oficiosa de quem não tem deveria ser assegurada por todos, do Dr Marinho Pinto ao Dr José Miguel Júdice, como responsabilidade social da classe.No entanto, não posso deixar de lamentar que os estagiários sejam vistos como bodes expiatórios de todos os males do sistema, o qual não lhes deve retirar aquilo que é actualmente a pedra basilar da sua formação. Antes de semelhante alteração, deveria ter sido estabelecido um novo sistema de formação que assegurasse a apreensão dos ditames da prática forense. De idêntico modo, tem que ser assegurada a remuneração efectiva dos estagiários, regulando-se uma situação presente que objectivamente se traduz, sobretudo nas áreas urbanas, numa exploração de mão de obra a baixo preço desprovida de qualquer direito ou remuneração condigna.