Octávio V. Gonçalves: Crato entrou em “choque com a realidade”. Com qual delas?

22-01-2012
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Antes de me ocupar com a tarefa árida de ensaiar uma curta dissecação da entrevista de Nuno Crato ao jornal Público, em vésperas de noite de Halloween (a rudeza e a banalidade arrepiantes do seu conteúdo também não predispõem para grandes análises), não dispenso a introdução de um questionamento inicial e quase arqueológico do pressuposto fundante que, no limite, iliba Crato do dever de explicação e de justificação de cortes e putativas reformas, escudando-se numa inevitabilidade ôntica ("a realidade"), justamente concebida para impor o que carecia de prova e de defesa, numa espécie de terrorismo argumentativo.
À semelhança de Passos Coelho, para quem a "realidade" se subsume aos ditames exclusivistas da "troika" (claro, a Banca já tem um estatuto mais etéreo e celestial e aí qualquer renegociação é possível), também Crato procura inativar a contra-argumentação e a consideração de alternativas, com base na apodítica da realidade unidimensional e do caminho único. Mesmo estranhando a asserção de que se está sob o efeito do "choque com a realidade", vinda de um divulgador da ciência, habituado à multidimensionalidade e à multivocidade do real, apesar de academicamente formatado como estatístico, não posso evitar a pergunta sobre, exatamente, a natureza da "realidade" contra a qual Nuno Crato colidiu.Entre outras possíveis, o Ministro da Educação refere-se a qual das seguintes realidades?- aquela que existia aquando da assinatura do memorando com a troika e que levou o PSD a impor a Sócrates a continuidade do par pedagógico de EVT ou que levou o líder do PSD a suspender o modelo de avaliação dos professores e a subscrever o "essencial" das teses de Santana Castilho para a Educação? Ocorreu alguma alteração colossal na "realidade" que tenha escapado às competências perscrutantes de uma troika, um Governo, um Parlamento, um Presidente da República, cinco partidos da oposição e resmas de jornalistas, além das contas que Jardim escondeu?- a realidade de penúria do Estado para que Crato remete é a que se deve às despesas correntes na Educação ou resulta, antes, dos buracos do BPN, da Madeira, das empresas públicas e das Parcerias Público-Privadas [PPP]? Se o endividamento galopante do Estado não adveio da Educação, por que razão os cortes mais brutais incidem sobre esta e sobre os seus funcionários? Se o Estado cobrasse os impostos que é sua obrigação cobrar, se combatesse a corrupção que é sua obrigação combater, se responsabilizasse os políticos e os gestores irresponsáveis e se renegociasse as PPP, qual seria a "realidade" das contas do Estado?A "realidade" de que Crato se socorre tem contornos de obscenidade, de irresponsabilidade, de desresponsabilização, de encobrimento e de delapidação do Estado, mas também é esta: quanto mais Crato cortar na Educação, mais sobrará para o Estado continuar a enterrar nos buracos atrás assinalados e para cevar "dinâmicos" gestores e empresários saídos das sedes e das elites partidárias, muitos dos quais sedentos por abrir as contas em paraísos fiscais, construir as habitações de luxo ou adquirir os automóveis de grande cilindrada que, à semelhança do que ocorreu com impulsos e negociatas passadas, continuarão a dinamizar a economia nacional.No essencial, serão estas as alternativas que os cortes na Educação devem socorrer.


Antes de me ocupar com a tarefa árida de ensaiar uma curta dissecação da entrevista de Nuno Crato ao jornal Público, em vésperas de noite de Halloween (a rudeza e a banalidade arrepiantes do seu conteúdo também não predispõem para grandes análises), não dispenso a introdução de um questionamento inicial e quase arqueológico do pressuposto fundante que, no limite, iliba Crato do dever de explicação e de justificação de cortes e putativas reformas, escudando-se numa inevitabilidade ôntica ("a realidade"), justamente concebida para impor o que carecia de prova e de defesa, numa espécie de terrorismo argumentativo.
À semelhança de Passos Coelho, para quem a "realidade" se subsume aos ditames exclusivistas da "troika" (claro, a Banca já tem um estatuto mais etéreo e celestial e aí qualquer renegociação é possível), também Crato procura inativar a contra-argumentação e a consideração de alternativas, com base na apodítica da realidade unidimensional e do caminho único. Mesmo estranhando a asserção de que se está sob o efeito do "choque com a realidade", vinda de um divulgador da ciência, habituado à multidimensionalidade e à multivocidade do real, apesar de academicamente formatado como estatístico, não posso evitar a pergunta sobre, exatamente, a natureza da "realidade" contra a qual Nuno Crato colidiu.Entre outras possíveis, o Ministro da Educação refere-se a qual das seguintes realidades?- aquela que existia aquando da assinatura do memorando com a troika e que levou o PSD a impor a Sócrates a continuidade do par pedagógico de EVT ou que levou o líder do PSD a suspender o modelo de avaliação dos professores e a subscrever o "essencial" das teses de Santana Castilho para a Educação? Ocorreu alguma alteração colossal na "realidade" que tenha escapado às competências perscrutantes de uma troika, um Governo, um Parlamento, um Presidente da República, cinco partidos da oposição e resmas de jornalistas, além das contas que Jardim escondeu?- a realidade de penúria do Estado para que Crato remete é a que se deve às despesas correntes na Educação ou resulta, antes, dos buracos do BPN, da Madeira, das empresas públicas e das Parcerias Público-Privadas [PPP]? Se o endividamento galopante do Estado não adveio da Educação, por que razão os cortes mais brutais incidem sobre esta e sobre os seus funcionários? Se o Estado cobrasse os impostos que é sua obrigação cobrar, se combatesse a corrupção que é sua obrigação combater, se responsabilizasse os políticos e os gestores irresponsáveis e se renegociasse as PPP, qual seria a "realidade" das contas do Estado?A "realidade" de que Crato se socorre tem contornos de obscenidade, de irresponsabilidade, de desresponsabilização, de encobrimento e de delapidação do Estado, mas também é esta: quanto mais Crato cortar na Educação, mais sobrará para o Estado continuar a enterrar nos buracos atrás assinalados e para cevar "dinâmicos" gestores e empresários saídos das sedes e das elites partidárias, muitos dos quais sedentos por abrir as contas em paraísos fiscais, construir as habitações de luxo ou adquirir os automóveis de grande cilindrada que, à semelhança do que ocorreu com impulsos e negociatas passadas, continuarão a dinamizar a economia nacional.No essencial, serão estas as alternativas que os cortes na Educação devem socorrer.

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