A biblioteca do sítio onde dou aulas, como sem dúvida muitas outras, recebeu algumas publicações de um grupo religioso estado-unidense que não vou nomear porque já tem fama que chegue (aparece logo à cabeça de qualquer consulta Google que contenha alguma das palavras da sua designação). São missivas enviadas pelos chefes do grupo (um dos quais está na cadeia) aos governos de muitos países. Em linguagem característica do Antigo Testamento apontam a estes governos e aos respectivos povos as iniquidades que andam a cometer e anunciam que a ira de deus os irá punir em breve. Apesar de já ter visto muitos filmes americanos e de já ter ouvido falar destes grupos, confesso que não estava preparado para o que li. Fiquei com mais medo ainda.
Sim, tenho muito medo dos Estados Unidos da América, sobretudo porque, para utilizar a linguagem do grupo, é um país do Mal. Esquecemos frequentemente que os Estados Unidos foram fundados não apenas pelos seus nobres Pais (os das liberdades) mas também por detestáveis Avós: os puritanos que deram início ao genocídio dos índios e à proibição do prazer. Com estes Avós aprenderam os Netos: os esclavagistas do Sul, as máfias, os gangs, as armas em casa de toda a gente, as "comunidades" que se odeiam. Os EUA unificaram-se como nação moderna através de uma das mais brutais e sangrentas guerras civis de sempre, a Guerra da Secessão (1861-1865). Cresceu lá uma cultura da violência pública e privada como nunca a história moderna teria imaginado que fosse possível e vigora uma "democracia" tão pervertida e perversora que se tornou quase impossível perceber a sua realidade: são sempre os mesmos a ganhar e os outros são eliminados a bem (pelo dinheiro) ou a mal (por "acidentes" judiciais ou policiais).
É claro que os EUA não são só isto: ele há o cinema, a literatura, a arte, a música, a ciência, os momentos e instituições de verdadeira democracia, etc., etc. Os EUA são o país mais genuinamente variado do mundo. Mas também isso faz medo, porque tudo pode acontecer. Apesar da vigilância exercida no quadro de um Estado policial mil vezes mais efectivo que os que existiram em qualquer dos antigos países "de Leste", o país tornou-se um explosivo à mercê de qualquer detonador.
O grupo cujas publicações li é protestante fundamentalista e este género de doutrina desempenha um papel crucial na possível deriva dos EUA para a catástrofe. Os fundamentalistas não advogam a conversão do mundo para abrir caminho ao triunfo do Bem. O seu alvo não são os infiéis. Funcionam no terreno ético mais que no religioso. Ao contrário dos muçulmanos ou hindus fundamentalistas, que acreditam na conversão ou na guerra santa, estes querem castigar os Maus, vêem-se como o instrumento do Castigo. Espalharam pelos nervos e o sangue dos estado-unidenses um conjunto de práticas sociais e culturais de correcção intolerante, reafirmação do ódio, reciclagem constante de ódios velhos. Há muito ódio e muita gente com armas nos EUA. Leiam e tremam.
Historiador
A biblioteca do sítio onde dou aulas, como sem dúvida muitas outras, recebeu algumas publicações de um grupo religioso estado-unidense que não vou nomear porque já tem fama que chegue (aparece logo à cabeça de qualquer consulta Google que contenha alguma das palavras da sua designação). São missivas enviadas pelos chefes do grupo (um dos quais está na cadeia) aos governos de muitos países. Em linguagem característica do Antigo Testamento apontam a estes governos e aos respectivos povos as iniquidades que andam a cometer e anunciam que a ira de deus os irá punir em breve. Apesar de já ter visto muitos filmes americanos e de já ter ouvido falar destes grupos, confesso que não estava preparado para o que li. Fiquei com mais medo ainda.
Sim, tenho muito medo dos Estados Unidos da América, sobretudo porque, para utilizar a linguagem do grupo, é um país do Mal. Esquecemos frequentemente que os Estados Unidos foram fundados não apenas pelos seus nobres Pais (os das liberdades) mas também por detestáveis Avós: os puritanos que deram início ao genocídio dos índios e à proibição do prazer. Com estes Avós aprenderam os Netos: os esclavagistas do Sul, as máfias, os gangs, as armas em casa de toda a gente, as "comunidades" que se odeiam. Os EUA unificaram-se como nação moderna através de uma das mais brutais e sangrentas guerras civis de sempre, a Guerra da Secessão (1861-1865). Cresceu lá uma cultura da violência pública e privada como nunca a história moderna teria imaginado que fosse possível e vigora uma "democracia" tão pervertida e perversora que se tornou quase impossível perceber a sua realidade: são sempre os mesmos a ganhar e os outros são eliminados a bem (pelo dinheiro) ou a mal (por "acidentes" judiciais ou policiais).
É claro que os EUA não são só isto: ele há o cinema, a literatura, a arte, a música, a ciência, os momentos e instituições de verdadeira democracia, etc., etc. Os EUA são o país mais genuinamente variado do mundo. Mas também isso faz medo, porque tudo pode acontecer. Apesar da vigilância exercida no quadro de um Estado policial mil vezes mais efectivo que os que existiram em qualquer dos antigos países "de Leste", o país tornou-se um explosivo à mercê de qualquer detonador.
O grupo cujas publicações li é protestante fundamentalista e este género de doutrina desempenha um papel crucial na possível deriva dos EUA para a catástrofe. Os fundamentalistas não advogam a conversão do mundo para abrir caminho ao triunfo do Bem. O seu alvo não são os infiéis. Funcionam no terreno ético mais que no religioso. Ao contrário dos muçulmanos ou hindus fundamentalistas, que acreditam na conversão ou na guerra santa, estes querem castigar os Maus, vêem-se como o instrumento do Castigo. Espalharam pelos nervos e o sangue dos estado-unidenses um conjunto de práticas sociais e culturais de correcção intolerante, reafirmação do ódio, reciclagem constante de ódios velhos. Há muito ódio e muita gente com armas nos EUA. Leiam e tremam.
Historiador