fotografia de Judy W O rádio estava definitivamente avariado. Também para que precisava dele? A novela do Tide acabara há muito. Apreciou as mãos, presas aos botões da telefonia, pareciam os prolongamentos nodosos de dois pequenos troncos de árvore, secos e mirrados Não pareciam braços, braços tivera ela outrora, quando era gente. Olhou?os como se não fossem seus, recordando-se dos tempos antigos. Que confusão na sua cabeça, os tempos antigos eram flocos de algodão que corriam como nuvens passageiras. Recordava vozes, risos, viagens, passeios, os pais, os filhos, o intrigar murmurado das vizinhas, a Adélia enamorou-se do filho do carteiro... Luisinha separou-se de Antero... o tifo, é seguramente o tifo que faz arder em febre Cristiana, parece uma santa de cera, imóvel no leito... António Joaquim não está melhor que ela, vomita sangue todos os dias no Caramulo... Tércio e Fortunato bateram-se em duelo, um pela República, o outro pela Monarquia, e o Rei? Está morto, ou preso? Não, fugiu, conseguiu fugir a tempo, a República está aí, tudo grita nas ruas, é um mar de gente de garganta assanhada, todos com a boca cheia de Liberdade, vejam só, aonde é que isto vai parar... Passou a mão nos olhos aguados, a Adélia... a Luisinha... a Cristiana... o António Joaquim... o Antero... o Tércio... o Fortunato... o Rei D. Carlos... Rolou com esforço a cadeira de rodas entre a cama e a cómoda, ficando entre o vaso de avenca e o espelho que perdera o reflexo há muito. Afiou os olhos para as postas de bolor que empolavam a parede, e convocou-os um a um. Como estás, Adélia, já não te via há muito tempo. Olha, não ligues, Tércio, já sabes que o Fortunato é assim, ainda bem que não ficaram feridos que estupidez, essa ideia do duelo. Que dizes, a febre passou, Cristiana? Ainda bem, filha, estava tão preocupada... Não, Luisinha, não cedas a esse impulso, já viste que o Antero é falso como um postiço de cabelo, não recues, mulher; sê forte, haverá outros, há muitos outros e melhores... O grito de madeira estragada da porta cortou os ares, espantando os visitantes, que se dissolveram nas manchas da parede. Aninhas ainda gritou: Não fujam, não me deixem sozinha! O eco casa vazia devolveu-lhe a prece, com juros dobrados. – Cá está, minha linda. A mulher apressada da Segurança Social plantou-lhe a refeição em pequenas caixas de estanho em cima da mesa, e partiu com o mesmo sorriso forçado da véspera e da antevéspera. – Ora adeusinho, que ainda tenho muitas entregas para fazer. Aninhas respirou de alívio. Detestava interrupções. Estava desejosa por saber do Rei D. Carlos, de Antónia Prieto, regressada de Badajoz, e Cristiana, continuará sem febre? Teria sido verdadeiramente o tifo? E as árvores do jardim, terão resistido à praga dos gafanhotos? E a Alicinha, a Saudade e a Maria do Amparo, que será feito delas? E José Maria, terá regressado da emigração? Eliana, a roca e o gato, o almocreve, onde estão eles? O senhor Gervásio e os misteriosos embrulhos que enviava pelo recoveiro, estará ou não apaixonado pela viúva do Quintas? E o Dantas, a Nazaré, a Dona Júlia, porque demoram? O Carlos da farmácia, o senhor José da drogaria, o padre Zé e a rapariga que a toda gente sabia ser filha dele, a Zeza peixeira que anunciava chicharro vivo com voz fanhosa... Enclavinhou os dedos na cadeira de rodas, e rolou até à parede bolorenta, fechando os olhos com força, convocando-os outra vez. Miguel Mirandain "A mulher que usava o gato enrolado ao pescoço (e outros contos)",Edições Afrontamento, 2000.Jacques Brel - Les Vieux
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fotografia de Judy W O rádio estava definitivamente avariado. Também para que precisava dele? A novela do Tide acabara há muito. Apreciou as mãos, presas aos botões da telefonia, pareciam os prolongamentos nodosos de dois pequenos troncos de árvore, secos e mirrados Não pareciam braços, braços tivera ela outrora, quando era gente. Olhou?os como se não fossem seus, recordando-se dos tempos antigos. Que confusão na sua cabeça, os tempos antigos eram flocos de algodão que corriam como nuvens passageiras. Recordava vozes, risos, viagens, passeios, os pais, os filhos, o intrigar murmurado das vizinhas, a Adélia enamorou-se do filho do carteiro... Luisinha separou-se de Antero... o tifo, é seguramente o tifo que faz arder em febre Cristiana, parece uma santa de cera, imóvel no leito... António Joaquim não está melhor que ela, vomita sangue todos os dias no Caramulo... Tércio e Fortunato bateram-se em duelo, um pela República, o outro pela Monarquia, e o Rei? Está morto, ou preso? Não, fugiu, conseguiu fugir a tempo, a República está aí, tudo grita nas ruas, é um mar de gente de garganta assanhada, todos com a boca cheia de Liberdade, vejam só, aonde é que isto vai parar... Passou a mão nos olhos aguados, a Adélia... a Luisinha... a Cristiana... o António Joaquim... o Antero... o Tércio... o Fortunato... o Rei D. Carlos... Rolou com esforço a cadeira de rodas entre a cama e a cómoda, ficando entre o vaso de avenca e o espelho que perdera o reflexo há muito. Afiou os olhos para as postas de bolor que empolavam a parede, e convocou-os um a um. Como estás, Adélia, já não te via há muito tempo. Olha, não ligues, Tércio, já sabes que o Fortunato é assim, ainda bem que não ficaram feridos que estupidez, essa ideia do duelo. Que dizes, a febre passou, Cristiana? Ainda bem, filha, estava tão preocupada... Não, Luisinha, não cedas a esse impulso, já viste que o Antero é falso como um postiço de cabelo, não recues, mulher; sê forte, haverá outros, há muitos outros e melhores... O grito de madeira estragada da porta cortou os ares, espantando os visitantes, que se dissolveram nas manchas da parede. Aninhas ainda gritou: Não fujam, não me deixem sozinha! O eco casa vazia devolveu-lhe a prece, com juros dobrados. – Cá está, minha linda. A mulher apressada da Segurança Social plantou-lhe a refeição em pequenas caixas de estanho em cima da mesa, e partiu com o mesmo sorriso forçado da véspera e da antevéspera. – Ora adeusinho, que ainda tenho muitas entregas para fazer. Aninhas respirou de alívio. Detestava interrupções. Estava desejosa por saber do Rei D. Carlos, de Antónia Prieto, regressada de Badajoz, e Cristiana, continuará sem febre? Teria sido verdadeiramente o tifo? E as árvores do jardim, terão resistido à praga dos gafanhotos? E a Alicinha, a Saudade e a Maria do Amparo, que será feito delas? E José Maria, terá regressado da emigração? Eliana, a roca e o gato, o almocreve, onde estão eles? O senhor Gervásio e os misteriosos embrulhos que enviava pelo recoveiro, estará ou não apaixonado pela viúva do Quintas? E o Dantas, a Nazaré, a Dona Júlia, porque demoram? O Carlos da farmácia, o senhor José da drogaria, o padre Zé e a rapariga que a toda gente sabia ser filha dele, a Zeza peixeira que anunciava chicharro vivo com voz fanhosa... Enclavinhou os dedos na cadeira de rodas, e rolou até à parede bolorenta, fechando os olhos com força, convocando-os outra vez. Miguel Mirandain "A mulher que usava o gato enrolado ao pescoço (e outros contos)",Edições Afrontamento, 2000.Jacques Brel - Les Vieux