Algibeira: A Terceira Mãe

04-07-2009
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Agora sim, levanta-se, chega o minuto M da maternidade. Pega na colher, enfia-me a colher cheia de leite e fibras na boca. Faço uma careta, mas acabo por ceder. A mãe imita-me o gesto por reflexo, a mão livre à volta do meu pescoço. Mergulha de novo a colher, sem afastar a tigela para não caírem pingos na toalha. Sem esforço, tiro-lhe a tigela da mão, nunca foi preciso muita força para a desapossar. Volto a sentar-me, vou tirando colheradas de leite e olhando para uma placa de bronze que representa um pescador dentro de um barco, pregada na parede. Um pescador dentro de um barco imóvel, o bronze imobiliza até o apelo marítimo. O bronze é capaz de imobilizar até o confronto com o desejo de viver."Alguma notícia?""Nada. Nenhuma mensagem, o telemóvel desligado.""O Diogo também não disse nada?""O Diogo, o Diogo. Só tu é que ainda acreditas naquele sonso."A mãe volta ao seu lugar atrás da janela. Parece uma partícula de luz sem velocidade, nada a perturba. Pernas cruzadas, cotovelo no parapeito, olhos no horizonte azul, um ventinho fresco a brincar-lhe nas pontas do cabelo. Fala comigo como se me admoestasse por fumar demais; sente qualquer dúvida sobre a bondade dos outros como a reprovação da sua própria inocência.Julieta Monginho nasceu em Lisboa, em 1958. É Licenciada em Direito.Em 1996 publicou o primeiro romance, "Juízo Perfeito" (D. Quixote), cuja 4.ª edição sairá em breve. Seguiram-se: "A Paixão Segundo os Infiéis" (D. Quixote, 1998), "À Tua Espera",(D. Quixote, 2000, Prémio Máxima de Literatura), "Dicionário dos Livros Sensíveis" (Campo das Letras, 2000), "Onde está J.?" (Campo das Letras, 2002) , "Dez Contos Com Livro Dentro" (co-autoria, Campo das Letras, 2004) e "A Construção da Noite" (Dom Quixote, 2005).Colabora regularmente em revistas literárias e jurídicas, bem como no blogue "Arte dos Dias", http://artedosdias.blogspot.comJohn Lennon - Mother


Agora sim, levanta-se, chega o minuto M da maternidade. Pega na colher, enfia-me a colher cheia de leite e fibras na boca. Faço uma careta, mas acabo por ceder. A mãe imita-me o gesto por reflexo, a mão livre à volta do meu pescoço. Mergulha de novo a colher, sem afastar a tigela para não caírem pingos na toalha. Sem esforço, tiro-lhe a tigela da mão, nunca foi preciso muita força para a desapossar. Volto a sentar-me, vou tirando colheradas de leite e olhando para uma placa de bronze que representa um pescador dentro de um barco, pregada na parede. Um pescador dentro de um barco imóvel, o bronze imobiliza até o apelo marítimo. O bronze é capaz de imobilizar até o confronto com o desejo de viver."Alguma notícia?""Nada. Nenhuma mensagem, o telemóvel desligado.""O Diogo também não disse nada?""O Diogo, o Diogo. Só tu é que ainda acreditas naquele sonso."A mãe volta ao seu lugar atrás da janela. Parece uma partícula de luz sem velocidade, nada a perturba. Pernas cruzadas, cotovelo no parapeito, olhos no horizonte azul, um ventinho fresco a brincar-lhe nas pontas do cabelo. Fala comigo como se me admoestasse por fumar demais; sente qualquer dúvida sobre a bondade dos outros como a reprovação da sua própria inocência.Julieta Monginho nasceu em Lisboa, em 1958. É Licenciada em Direito.Em 1996 publicou o primeiro romance, "Juízo Perfeito" (D. Quixote), cuja 4.ª edição sairá em breve. Seguiram-se: "A Paixão Segundo os Infiéis" (D. Quixote, 1998), "À Tua Espera",(D. Quixote, 2000, Prémio Máxima de Literatura), "Dicionário dos Livros Sensíveis" (Campo das Letras, 2000), "Onde está J.?" (Campo das Letras, 2002) , "Dez Contos Com Livro Dentro" (co-autoria, Campo das Letras, 2004) e "A Construção da Noite" (Dom Quixote, 2005).Colabora regularmente em revistas literárias e jurídicas, bem como no blogue "Arte dos Dias", http://artedosdias.blogspot.comJohn Lennon - Mother

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