Mãe, filha e neto na paragem do autocarro. Ao fundo uma estátua de pedra e pombos.A mãe continuara em tom amargo uma conversa iniciada não sei quando.- Quase dois contos, vê lá tu, dizia. Uma pessoa tem que andar vestida e calçada. E pronto, dá cá dois contos por uma porcaria de uns sapatos. Como havia de ser se não fosses tu, enfim, se eu não morasse contigo?- Ora, mãe, deixe-se disso, respondeu a filha enquanto ajeitava maquinalmente o cabelo do garotinho.- Claro que eu ajudo lá em casa. Mas quando eu não puder ajudar? Mas quando eu for um peso morto? Que dirá o teu marido? Já agora...- A mãe bem sabe que o José é seu amigo, tornou a filha levemente enfadada.- Para quem trabalhou toda a vida, ver-se com esta reforma miserável... Hás-de concordar que é duro. Ainda se vocês vivessem sem dificuldades, não digo. Mas assim...A bicha ia avançando. O garotinho, que tinha estado calado, olhando o mundo, viajando nos seus inquietantes pensamentos, perguntou a certa altura: - Como é que nascem as pombas? É nas mãos dos ilu... dos ilusi... dos ilusionistas?A avó disse: - Olha a ideia! Nascem dos ovos como os pintos. Este miúdo tem cada uma!E a mãe: - Às vezes até parece parvo.O menino embezerrou, e com toda a razão. Porque assim morrem tantos poetas. De uma espécie de mortalidade infantil.Maria Judite de Carvalho (18/9/21 - 18/1/98)in ‘Jornal de Letras Artes e Ideias’, nº 712, 10/2/98
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Mãe, filha e neto na paragem do autocarro. Ao fundo uma estátua de pedra e pombos.A mãe continuara em tom amargo uma conversa iniciada não sei quando.- Quase dois contos, vê lá tu, dizia. Uma pessoa tem que andar vestida e calçada. E pronto, dá cá dois contos por uma porcaria de uns sapatos. Como havia de ser se não fosses tu, enfim, se eu não morasse contigo?- Ora, mãe, deixe-se disso, respondeu a filha enquanto ajeitava maquinalmente o cabelo do garotinho.- Claro que eu ajudo lá em casa. Mas quando eu não puder ajudar? Mas quando eu for um peso morto? Que dirá o teu marido? Já agora...- A mãe bem sabe que o José é seu amigo, tornou a filha levemente enfadada.- Para quem trabalhou toda a vida, ver-se com esta reforma miserável... Hás-de concordar que é duro. Ainda se vocês vivessem sem dificuldades, não digo. Mas assim...A bicha ia avançando. O garotinho, que tinha estado calado, olhando o mundo, viajando nos seus inquietantes pensamentos, perguntou a certa altura: - Como é que nascem as pombas? É nas mãos dos ilu... dos ilusi... dos ilusionistas?A avó disse: - Olha a ideia! Nascem dos ovos como os pintos. Este miúdo tem cada uma!E a mãe: - Às vezes até parece parvo.O menino embezerrou, e com toda a razão. Porque assim morrem tantos poetas. De uma espécie de mortalidade infantil.Maria Judite de Carvalho (18/9/21 - 18/1/98)in ‘Jornal de Letras Artes e Ideias’, nº 712, 10/2/98