.: Esquina . do . Mundo :.: Antonino, o bombeiro subversivo

19-07-2005
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Chovia copiosamente. O bombeiro Antonino protegia-se como podia debaixo do guarda-chuva, enquanto caminhava pela rua deserta rumo à cave onde teria lugar mais uma reunião do "Comité de Bombeiros Subversivos".Enquanto andava, Antonino maldizia o telefonema que recebera às 3 da madrugada, a avisá-lo que a sua presença na reunião secreta era indispensável.- «Zinoiev, fala o camarada Karenski. Tens de vir ao encontro. Vão lá estar Lenine e Staline».- «Porra Celestino, tive o dia inteiro de serviço, salvei um gato da morte certa, levei três velhinhas ao Hospital e lavei o auto-tanque. "R’áis parta" se agora ainda me vens chatear com essa merda dos bombeiros subversivos! São três da manhã, foda-se!»- «Não me chames Celestino. Esqueceste as escutas? O meu nome é Karenski, e o teu é Zinoiev!»- «Eu nem sei quem é esse Zinoviev... O tipo não chegou a jogar no Porto?»- «És mesmo ignorante, pá! O Zinoiev foi um dos gajos do triunvirato que sucedeu a Lenine, lembras-te?»- «Não, não era vivo! Ouve lá, deixa-me dormir!»- «Zinoiev, não queiras que te confundam com Trotsky! Salta da cama, veste umas calcinhas, e vem ter à sede do Comité».Dito isto, o bombeiro Celestino, ou melhor, o "camarada Karenski", desligou o telefone. A simples alusão a Trotsky provocou suores frios a Antonino, que apesar de não saber muito de História, conhecia a "estória" do "camarada Trotsky", tão prestável, tão inteligente, e tão ferozmente expulso do "Comité dos Bombeiros Subversivos", após o "camarada Estaline" ter descoberto que Trotsky era nome de traidor, o que só poderia significar que o bombeiro Celso era isso mesmo, um traidor!Celso, o o "camarada Trotsky", bem tentara argumentar, dizendo que não era traidor nenhum e que a opção pelo nome resultara de uma noitada à frente do "Canal História", mas o certo é que Estaline não reconsiderara.- «Considera-te fora» dissera, naquele tom premptório que o conduzira à liderança do Comité.Estas reflexões tornavam ainda mais penosa a caminhada do bombeiro Antonino. - «"R’áis parta" a chuva», dizia, querendo dizer isso mesmo.Chegado finalmente à porta da cave que servia de sede ao Comité, o ensopado bombeiro Antonino foi barrado pelo "camarada Ceausescu", que servia de porteiro, e que não deixava ninguém passar sem primeiro pronunciar a contra-senha- «João Pinto»- «Fiteiro»- «Bem-vindo, "camarada Zivoie"»O bombeiro Leopoldo, ou antes o "camarada Ceausescu", sentia claras dificuldades em pronunciar nomes estrangeiros.Quando Antonino entrou na sala, já lá estavam Lenine e Estaline, sentados em cima de uma das mesas de bilhar. Karenski e Mao conversavam a um canto. Pol Pot encarregava-se de pôr as cervejas no frigorifico. Um grupo composto por Cunhal, Fidel, Tito e Hô Chi Minh jogava matraquilhos. Sentado em frente a uma parede, de costas para a sala, estava alguém que o bombeiro Antonino não reconheceu.- «"Camarada Zinoiev", bem aparecido seja»Quem assim se lhe dirigia era Estaline, à medida que se aproximava de Antonino com a mão estendida.- «Tenho apanhado uns serviços "lixados", noites inteiras, não tem dado para aparecer»- «Ainda bem que assim é, "tovarich". Já pensava que se tinha passado para o lado do "Trotsky"»Estaline aprendera alguns termos russos, tais como "tovarich", "perestroika" ou "Poljot", que gostava de utilizar para impressionar os restantes elementos do Comité.- «Venha, Zinoiev, está ali uma pessoa que gostaria que conhecesse»disse Estaline, agarrando o bombeiro Antonino pelo braço, conduzindo-o em direcção à parede do fundo, para onde a estranha figura na qual Zinoiev reparara quando entrara na sala continuava a olhar, imperturbável.- «"Tovarich Marx", quero apresentar-lhe o nosso "camarada Zinoiev", um tipo de coragem, defensor acérrimo da nossa causa»O homem virou-se para trás e Antonino estremeceu. Tinha à sua frente, e de mão estendida, o grande comandante, o homem que tudo sabia, o defensor dos pobres e oprimidos, o super bombeiro, o "camarada Marx". Antonino estendeu-lhe a mão suada- «É um prazer, eu não esperava vir a conhecê-lo assim, do pé para a mão...»-«Dah!»respondeu o "camarada Marx", voltando a virar-se para a parede, e recuperando a atitude contemplativa.Antonino ficou petrificado, tentando decifrar o sentido da expressão utilizada pelo homem que tudo sabia- «O "camarada Marx" deu-lhe as boas-vindas. Em húngaro».A explicação de Estaline convenceu Antonino. Tanta sapiência num homem só, pensou.Ao chegar próximo da mesa de matraquilhos, já liberto do incomodo braço de Estaline, Antonino ainda estava siderado.- «Tou "equipa a seguir"» disse, querendo dizer isso mesmo- «põe a moeda»respondeu Hô Chi Minh, mal humorado por estar a perder.- «não vai dar para jogar mais, a reunião já vai começar»afiançou Cunhal, companheiro de equipa de Hô Chi Minh. - «Foi a primeira vez que acertaste» disse-lhe Tito, virando-se, imediatamente para o meio da sala onde Estaline, ladeado por Lenine e Karenski, começara a falar- «Camaradas, quero apresentar-lhes aquele que tudo sabe, o presidente da Associação Portuguesa de Bombeiros Profissionais, o grande, super "camarada Marx"».Aplausos de entusiasmo encheram a cave. - « "Peço ao "camarada Marx" que se chegue junto de nós, e que diga algumas palavras de incentivo à luta que travamos».Mais aplausos. O "camarada Marx" levantara-se da cadeira onde estivera sentado, em atitude contemplativa. Calmamente, dirigia-se até ao centro da sala. Para aumentar a expectativa, baixou-se e apertou os atacadores da bota direita.Alguns membros do Comité suspiravam. Outros esfregavam as mãos, mostrando evidentes sinais de nervosismo. Eis o momento.- «Dah!» Disse, em alto em bom-som, o "camarada Marx"- «Quer dizer bem-vindo em húngaro», sussurrou Antonino, ao ouvido do "camarada Cunhal"»- «Como é que sabes?»-«Achas que eu não sei húngaro?»retorquiu Antonino, perante o olhar reprovador de Estaline, que se apercebera do diálogo e que fumava furiosamente um charuto dos Açores, hábito que adquirira ao descobrir que Fidel de Castro, afinal, era revolucionário.- «... temos de ir para a greve»continuava Marx- «temos de lutar até conseguir a propriedade das mangueiras, auto-tanques, escadas "magiro", pronto-socorros pesados e ligeiros. Temos de encostar os machados aos pescoços dessa canalha reaccionária e cortá-los, se preciso for»a voz de Marx era forte, bem colocada- «comecemos pela Ribeira Brava, terra dessa corja de viscondes»o bombeiro Antonino sentia suores frios- «continuemos em Santana, cidade de casebres de palha, símbolos evidentes da opressão a que foi sujeita a classe trabalhadora»o "camarada Hô Chi Minh" sentia cãibras- «sigamos o manual da subversão, e não se preocupem com o secretismo, pois já fomos descobertos. Os opressores descobriram o livro sagrado, aquele onde está escrito que as revoluções começam nos quartéis de bombeiros» um murmúrio de terror invadiu a cave. - «e agora?»perguntavam, em coro, os bombeiros subversivos- «e agora, interrogam-se vocês, ao que eu respondo: eles têm o Jornal da Madeira, mas nós temos os machados, os corta-fogos, as mangueiras e os auto-tanques. Coragem homens. Lembre-se: De pé, ou vítimas da fome, de pé famélicos da Terra»- «...de pé, ou vítimas da fome, de pé, famélicos da Terra»cantavam, em coro, os bombeiros subversivos- «...todos juntos lutamos, nesta luta final, por uma Terra sem amos, a Internacional»gritavam os mais entusiasmados, com lágrimas nos olhos.Passava das 06:00 horas quando Antonino, acompanhado pelo "camarada Karenski", abandonou a cave. Embora se sentisse estonteado devido às cervejas que bebera, e ao fumo dos charutos consumidos avidamente por Estaline, sentia-se confiante.A revolução não tardaria, acreditava. Os preparativos seriam denunciados, ferozmente, em editoriais do Jornal da Madeira, numa tentativa desesperada para manter o "staus quo", o que só contribuiria para acelerar o o rumo da História.Parara de chover e o "camarada Zinoiev" ainda tinha três horas para dormir. Combinara um café, às 10:00, com Natividade, a mulher com quem certamente casaria.O bombeiro Antonino, estava certo, sonharia com a revolução.Gonçalo Nuno Santos

Chovia copiosamente. O bombeiro Antonino protegia-se como podia debaixo do guarda-chuva, enquanto caminhava pela rua deserta rumo à cave onde teria lugar mais uma reunião do "Comité de Bombeiros Subversivos".Enquanto andava, Antonino maldizia o telefonema que recebera às 3 da madrugada, a avisá-lo que a sua presença na reunião secreta era indispensável.- «Zinoiev, fala o camarada Karenski. Tens de vir ao encontro. Vão lá estar Lenine e Staline».- «Porra Celestino, tive o dia inteiro de serviço, salvei um gato da morte certa, levei três velhinhas ao Hospital e lavei o auto-tanque. "R’áis parta" se agora ainda me vens chatear com essa merda dos bombeiros subversivos! São três da manhã, foda-se!»- «Não me chames Celestino. Esqueceste as escutas? O meu nome é Karenski, e o teu é Zinoiev!»- «Eu nem sei quem é esse Zinoviev... O tipo não chegou a jogar no Porto?»- «És mesmo ignorante, pá! O Zinoiev foi um dos gajos do triunvirato que sucedeu a Lenine, lembras-te?»- «Não, não era vivo! Ouve lá, deixa-me dormir!»- «Zinoiev, não queiras que te confundam com Trotsky! Salta da cama, veste umas calcinhas, e vem ter à sede do Comité».Dito isto, o bombeiro Celestino, ou melhor, o "camarada Karenski", desligou o telefone. A simples alusão a Trotsky provocou suores frios a Antonino, que apesar de não saber muito de História, conhecia a "estória" do "camarada Trotsky", tão prestável, tão inteligente, e tão ferozmente expulso do "Comité dos Bombeiros Subversivos", após o "camarada Estaline" ter descoberto que Trotsky era nome de traidor, o que só poderia significar que o bombeiro Celso era isso mesmo, um traidor!Celso, o o "camarada Trotsky", bem tentara argumentar, dizendo que não era traidor nenhum e que a opção pelo nome resultara de uma noitada à frente do "Canal História", mas o certo é que Estaline não reconsiderara.- «Considera-te fora» dissera, naquele tom premptório que o conduzira à liderança do Comité.Estas reflexões tornavam ainda mais penosa a caminhada do bombeiro Antonino. - «"R’áis parta" a chuva», dizia, querendo dizer isso mesmo.Chegado finalmente à porta da cave que servia de sede ao Comité, o ensopado bombeiro Antonino foi barrado pelo "camarada Ceausescu", que servia de porteiro, e que não deixava ninguém passar sem primeiro pronunciar a contra-senha- «João Pinto»- «Fiteiro»- «Bem-vindo, "camarada Zivoie"»O bombeiro Leopoldo, ou antes o "camarada Ceausescu", sentia claras dificuldades em pronunciar nomes estrangeiros.Quando Antonino entrou na sala, já lá estavam Lenine e Estaline, sentados em cima de uma das mesas de bilhar. Karenski e Mao conversavam a um canto. Pol Pot encarregava-se de pôr as cervejas no frigorifico. Um grupo composto por Cunhal, Fidel, Tito e Hô Chi Minh jogava matraquilhos. Sentado em frente a uma parede, de costas para a sala, estava alguém que o bombeiro Antonino não reconheceu.- «"Camarada Zinoiev", bem aparecido seja»Quem assim se lhe dirigia era Estaline, à medida que se aproximava de Antonino com a mão estendida.- «Tenho apanhado uns serviços "lixados", noites inteiras, não tem dado para aparecer»- «Ainda bem que assim é, "tovarich". Já pensava que se tinha passado para o lado do "Trotsky"»Estaline aprendera alguns termos russos, tais como "tovarich", "perestroika" ou "Poljot", que gostava de utilizar para impressionar os restantes elementos do Comité.- «Venha, Zinoiev, está ali uma pessoa que gostaria que conhecesse»disse Estaline, agarrando o bombeiro Antonino pelo braço, conduzindo-o em direcção à parede do fundo, para onde a estranha figura na qual Zinoiev reparara quando entrara na sala continuava a olhar, imperturbável.- «"Tovarich Marx", quero apresentar-lhe o nosso "camarada Zinoiev", um tipo de coragem, defensor acérrimo da nossa causa»O homem virou-se para trás e Antonino estremeceu. Tinha à sua frente, e de mão estendida, o grande comandante, o homem que tudo sabia, o defensor dos pobres e oprimidos, o super bombeiro, o "camarada Marx". Antonino estendeu-lhe a mão suada- «É um prazer, eu não esperava vir a conhecê-lo assim, do pé para a mão...»-«Dah!»respondeu o "camarada Marx", voltando a virar-se para a parede, e recuperando a atitude contemplativa.Antonino ficou petrificado, tentando decifrar o sentido da expressão utilizada pelo homem que tudo sabia- «O "camarada Marx" deu-lhe as boas-vindas. Em húngaro».A explicação de Estaline convenceu Antonino. Tanta sapiência num homem só, pensou.Ao chegar próximo da mesa de matraquilhos, já liberto do incomodo braço de Estaline, Antonino ainda estava siderado.- «Tou "equipa a seguir"» disse, querendo dizer isso mesmo- «põe a moeda»respondeu Hô Chi Minh, mal humorado por estar a perder.- «não vai dar para jogar mais, a reunião já vai começar»afiançou Cunhal, companheiro de equipa de Hô Chi Minh. - «Foi a primeira vez que acertaste» disse-lhe Tito, virando-se, imediatamente para o meio da sala onde Estaline, ladeado por Lenine e Karenski, começara a falar- «Camaradas, quero apresentar-lhes aquele que tudo sabe, o presidente da Associação Portuguesa de Bombeiros Profissionais, o grande, super "camarada Marx"».Aplausos de entusiasmo encheram a cave. - « "Peço ao "camarada Marx" que se chegue junto de nós, e que diga algumas palavras de incentivo à luta que travamos».Mais aplausos. O "camarada Marx" levantara-se da cadeira onde estivera sentado, em atitude contemplativa. Calmamente, dirigia-se até ao centro da sala. Para aumentar a expectativa, baixou-se e apertou os atacadores da bota direita.Alguns membros do Comité suspiravam. Outros esfregavam as mãos, mostrando evidentes sinais de nervosismo. Eis o momento.- «Dah!» Disse, em alto em bom-som, o "camarada Marx"- «Quer dizer bem-vindo em húngaro», sussurrou Antonino, ao ouvido do "camarada Cunhal"»- «Como é que sabes?»-«Achas que eu não sei húngaro?»retorquiu Antonino, perante o olhar reprovador de Estaline, que se apercebera do diálogo e que fumava furiosamente um charuto dos Açores, hábito que adquirira ao descobrir que Fidel de Castro, afinal, era revolucionário.- «... temos de ir para a greve»continuava Marx- «temos de lutar até conseguir a propriedade das mangueiras, auto-tanques, escadas "magiro", pronto-socorros pesados e ligeiros. Temos de encostar os machados aos pescoços dessa canalha reaccionária e cortá-los, se preciso for»a voz de Marx era forte, bem colocada- «comecemos pela Ribeira Brava, terra dessa corja de viscondes»o bombeiro Antonino sentia suores frios- «continuemos em Santana, cidade de casebres de palha, símbolos evidentes da opressão a que foi sujeita a classe trabalhadora»o "camarada Hô Chi Minh" sentia cãibras- «sigamos o manual da subversão, e não se preocupem com o secretismo, pois já fomos descobertos. Os opressores descobriram o livro sagrado, aquele onde está escrito que as revoluções começam nos quartéis de bombeiros» um murmúrio de terror invadiu a cave. - «e agora?»perguntavam, em coro, os bombeiros subversivos- «e agora, interrogam-se vocês, ao que eu respondo: eles têm o Jornal da Madeira, mas nós temos os machados, os corta-fogos, as mangueiras e os auto-tanques. Coragem homens. Lembre-se: De pé, ou vítimas da fome, de pé famélicos da Terra»- «...de pé, ou vítimas da fome, de pé, famélicos da Terra»cantavam, em coro, os bombeiros subversivos- «...todos juntos lutamos, nesta luta final, por uma Terra sem amos, a Internacional»gritavam os mais entusiasmados, com lágrimas nos olhos.Passava das 06:00 horas quando Antonino, acompanhado pelo "camarada Karenski", abandonou a cave. Embora se sentisse estonteado devido às cervejas que bebera, e ao fumo dos charutos consumidos avidamente por Estaline, sentia-se confiante.A revolução não tardaria, acreditava. Os preparativos seriam denunciados, ferozmente, em editoriais do Jornal da Madeira, numa tentativa desesperada para manter o "staus quo", o que só contribuiria para acelerar o o rumo da História.Parara de chover e o "camarada Zinoiev" ainda tinha três horas para dormir. Combinara um café, às 10:00, com Natividade, a mulher com quem certamente casaria.O bombeiro Antonino, estava certo, sonharia com a revolução.Gonçalo Nuno Santos

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