bajja: Da ética na prática

22-06-2005
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“Há homem hábil que ensina a muita gente, mas que é inútil para si mesmo. E há sábio que com as suas palavras se torna odioso e é excluído de tudo. (...) Há sábio que é sábio para si mesmo, e o fruto da sua sabedoria é digno de confiança. O sábio instrui o seu povo e os frutos da sua sabedoria são duradoiros.” (Eclesiástico, 37, vs.19 a 23)1. Não consigo evitar ficar estarrecido quando oiço um crítico ou membro de um júri declararem que não comentam, ou deliberam (conforme o caso), sobre um concerto, projecto, etc, porque “são parte interessada”, “fazem parte dos corpos gerentes”, ou qualquer outra situação similar. O tom nestes casos transpira geralmente uma indisfarçável auto-satisfação, própria de quem sente estar assim a ter um comportamento ético de grande dignidade... (aliás, a palavra “ética” é frequentemente evocada neste tipo de circunstâncias). Estas são situações que, precisamente de um ponto de vista ético, são repugnantes. Particularmente no caso do crítico (de música ou seja do que for), seria sem dúvida preferível declarar que é parte interessada e, embora o texto crítico pudesse perder parte do seu alcance, permitir ao público posicionar devidamente o ponto de vista do autor. Outra atitude possível seria não escrever sobre o assunto, sem comentários. Mas, sejamos sérios, a única atitude digna, de um ponto de vista ético, seria pura e simplesmente optar: quem abraça a nobre e moralmente exigente actividade da crítica jornalística (no caso é de música, mas seja do que for) deveria abster-se de fazer parte de corpos gerentes de orquestras, receber encomendas desse tipo de instituições, etc. Assim, quando se afirma que “não faço a crítica a este concerto porque sou parte interessada” está-se, no fundo, a querer transmitir ao público que “eu queria dizer bem, mas devido aos meus altos pruridos éticos, morais e deontológicos, não posso...”. Este comentário vem a propósito de recentes polémicas na blogosfera, precisamente sobre um episódio deste tipo. É claro que este é um meio de comunicação mais propício a este tipo de situação já que (e apesar da pretensão de quem até aspira a “criticar a crítica”) por vezes se trata de colunas, que se reivindicam de "crítica musical", não sendo sujeitas a um editor, e que não fazem crítica, mas antes muito subjectiva opinião (ainda por cima misturada com tiradas moralistas), escrita por autores que parecem esquecer que, para lá de alguma cultura geral sobre o assunto a que nos queremos dedicar, existem sérios e delicados princípios deontológicos e éticos, que são fundamentais a uma crítica jornalística isenta e produtiva, que possa aspirar a produzir mais do que ressaibiadas tiradas arrogantes sem direito de resposta, embora embaladas em sonantes embrulhos de pretensa e imodesta superioridade moral e ideológica.2. Num domínio diferente, embora com alguns pontos de contacto com o que atrás fica dito, os órgãos de comunicação dos países anglo-saxónicos dão um exemplo assinalável: em épocas eleitorais, os principais jornais e revistas de referência indicam em editorial a sua orientação de voto. Embora possa limitar o alcance das tomadas de posição, esta atitude permite aos leitores contextualizar correctamente o artigo que estão a ler. Aliás, é corrente nas cadeias informativas destes países a identificação da orientação partidária de cada comentador. Recentemente, entre nós, o diário “Público” resolveu passar a não colocar apenas o nome dos colaboradores das colunas de opinião: assim, por “respeito pelo leitor”, passou a ser fornecida uma identificação complementar de cada autor. Em teoria seria um passo no bom sentido, mas, quando lemos um artigo de opinião do Fernando Rosas, a identificação que surge é “professor universitário”! E o artigo não é sobre História Contemporânea nem autonomia universitária; trata-se de comentários políticos e partidários. A única identificação que traduziria um verdadeiro respeito pelo leitor seria, além do que lá está, acrescentar: dirigente do Bloco de Esquerda. (O Fernando Rosas é um exemplo apenas, entre muitos, de todos os quadrantes). Desta maneira estamos, no fundo, apenas a colocar um título semi-nobiliário: os comentadores não pertencem a partidos nem a sua escolha para essa função teve a ver com isso; não, são todos professores universitários, sociólogos, advogados... Continuamos a ser o país dos dê-érres.3. Ainda a propósito da tão usada e abusada ética, nos recentes casos envolvendo dirigentes do CDS em decisões ambíguas tomadas, não só num governo de gestão mas, pasme-se, depois das eleições, o que mais me choca não é a legalidade ou não das decisões em si, já que pode sempre invocar-se (mesmo que desvairadamente) o “superior interesse nacional”. O que me choca profundamente é o facto de um ministro da República ter a ousadia de falsificar a data de um documento público. Por mais escandaloso que tudo o resto seja, trata-se de questões judiciais que hão-de seguir o seu trajecto (ou não...). Aqui, trata-se de uma torpe traição aos fundamentos mais cruciais de um estado que se pretende governado por leis (o chamado estado de direito...) e não por princípios "iluminados" de justiça ou moral.A democracia não é, de todo, um dado adquirido. São estas talvez as mais eficazes formas de a pôr em causa.

“Há homem hábil que ensina a muita gente, mas que é inútil para si mesmo. E há sábio que com as suas palavras se torna odioso e é excluído de tudo. (...) Há sábio que é sábio para si mesmo, e o fruto da sua sabedoria é digno de confiança. O sábio instrui o seu povo e os frutos da sua sabedoria são duradoiros.” (Eclesiástico, 37, vs.19 a 23)1. Não consigo evitar ficar estarrecido quando oiço um crítico ou membro de um júri declararem que não comentam, ou deliberam (conforme o caso), sobre um concerto, projecto, etc, porque “são parte interessada”, “fazem parte dos corpos gerentes”, ou qualquer outra situação similar. O tom nestes casos transpira geralmente uma indisfarçável auto-satisfação, própria de quem sente estar assim a ter um comportamento ético de grande dignidade... (aliás, a palavra “ética” é frequentemente evocada neste tipo de circunstâncias). Estas são situações que, precisamente de um ponto de vista ético, são repugnantes. Particularmente no caso do crítico (de música ou seja do que for), seria sem dúvida preferível declarar que é parte interessada e, embora o texto crítico pudesse perder parte do seu alcance, permitir ao público posicionar devidamente o ponto de vista do autor. Outra atitude possível seria não escrever sobre o assunto, sem comentários. Mas, sejamos sérios, a única atitude digna, de um ponto de vista ético, seria pura e simplesmente optar: quem abraça a nobre e moralmente exigente actividade da crítica jornalística (no caso é de música, mas seja do que for) deveria abster-se de fazer parte de corpos gerentes de orquestras, receber encomendas desse tipo de instituições, etc. Assim, quando se afirma que “não faço a crítica a este concerto porque sou parte interessada” está-se, no fundo, a querer transmitir ao público que “eu queria dizer bem, mas devido aos meus altos pruridos éticos, morais e deontológicos, não posso...”. Este comentário vem a propósito de recentes polémicas na blogosfera, precisamente sobre um episódio deste tipo. É claro que este é um meio de comunicação mais propício a este tipo de situação já que (e apesar da pretensão de quem até aspira a “criticar a crítica”) por vezes se trata de colunas, que se reivindicam de "crítica musical", não sendo sujeitas a um editor, e que não fazem crítica, mas antes muito subjectiva opinião (ainda por cima misturada com tiradas moralistas), escrita por autores que parecem esquecer que, para lá de alguma cultura geral sobre o assunto a que nos queremos dedicar, existem sérios e delicados princípios deontológicos e éticos, que são fundamentais a uma crítica jornalística isenta e produtiva, que possa aspirar a produzir mais do que ressaibiadas tiradas arrogantes sem direito de resposta, embora embaladas em sonantes embrulhos de pretensa e imodesta superioridade moral e ideológica.2. Num domínio diferente, embora com alguns pontos de contacto com o que atrás fica dito, os órgãos de comunicação dos países anglo-saxónicos dão um exemplo assinalável: em épocas eleitorais, os principais jornais e revistas de referência indicam em editorial a sua orientação de voto. Embora possa limitar o alcance das tomadas de posição, esta atitude permite aos leitores contextualizar correctamente o artigo que estão a ler. Aliás, é corrente nas cadeias informativas destes países a identificação da orientação partidária de cada comentador. Recentemente, entre nós, o diário “Público” resolveu passar a não colocar apenas o nome dos colaboradores das colunas de opinião: assim, por “respeito pelo leitor”, passou a ser fornecida uma identificação complementar de cada autor. Em teoria seria um passo no bom sentido, mas, quando lemos um artigo de opinião do Fernando Rosas, a identificação que surge é “professor universitário”! E o artigo não é sobre História Contemporânea nem autonomia universitária; trata-se de comentários políticos e partidários. A única identificação que traduziria um verdadeiro respeito pelo leitor seria, além do que lá está, acrescentar: dirigente do Bloco de Esquerda. (O Fernando Rosas é um exemplo apenas, entre muitos, de todos os quadrantes). Desta maneira estamos, no fundo, apenas a colocar um título semi-nobiliário: os comentadores não pertencem a partidos nem a sua escolha para essa função teve a ver com isso; não, são todos professores universitários, sociólogos, advogados... Continuamos a ser o país dos dê-érres.3. Ainda a propósito da tão usada e abusada ética, nos recentes casos envolvendo dirigentes do CDS em decisões ambíguas tomadas, não só num governo de gestão mas, pasme-se, depois das eleições, o que mais me choca não é a legalidade ou não das decisões em si, já que pode sempre invocar-se (mesmo que desvairadamente) o “superior interesse nacional”. O que me choca profundamente é o facto de um ministro da República ter a ousadia de falsificar a data de um documento público. Por mais escandaloso que tudo o resto seja, trata-se de questões judiciais que hão-de seguir o seu trajecto (ou não...). Aqui, trata-se de uma torpe traição aos fundamentos mais cruciais de um estado que se pretende governado por leis (o chamado estado de direito...) e não por princípios "iluminados" de justiça ou moral.A democracia não é, de todo, um dado adquirido. São estas talvez as mais eficazes formas de a pôr em causa.

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