Literatura Portuguesa do Século XX: Poemas de um Orfeu Rebelde em 1958

04-07-2009
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* **CÂMARA ESCURADevagar,Hora a hora,Dia a dia,Como se o tempo fosse um banho de acidez,Vou vendo com mais funda nitidezO negativo da fotografia.E o que eu sou por detrás do que pareço!Que seguida traição desde o começo,Em cada gesto,Em cada grito,Em cada verso!Sincero sempre, mas obstinadoNuma sinceridadeQue vende ao mesmo preçoO direito e o avessoDa verdade.Dois homens num só rosto!Uma espécie de Jano sobreposto,Inocente,Impotente,E condenadoA este assombro de se ver forradoDum pano de negrura que desmenteA nua claridade do outro lado.BIOGRAFIASonho, mas não parece.Nem quero que pareça.É por dentro que eu gosto que aconteçaA minha vida.Íntima, funda, como um sentimentoDe que se tem pudor.Vulcão de exteriorTão apagado,Que um pastorPossa sobre ele apascentar o gado.Mas os versos, depois,Frutos do sonho e dessa mesma vida,É quase à queima-roupa que os atiroContra a serenidade de quem passa.Então, já não sou eu que testemunhoA graçaDa poesia:É ela, prisioneira,Que, vendo a porta da prisão aberta,Como chispa que salta da fogueira,Numa agressiva fúria se liberta.Miguel TorgaOrfeu Rebelde, 1958** *


* **CÂMARA ESCURADevagar,Hora a hora,Dia a dia,Como se o tempo fosse um banho de acidez,Vou vendo com mais funda nitidezO negativo da fotografia.E o que eu sou por detrás do que pareço!Que seguida traição desde o começo,Em cada gesto,Em cada grito,Em cada verso!Sincero sempre, mas obstinadoNuma sinceridadeQue vende ao mesmo preçoO direito e o avessoDa verdade.Dois homens num só rosto!Uma espécie de Jano sobreposto,Inocente,Impotente,E condenadoA este assombro de se ver forradoDum pano de negrura que desmenteA nua claridade do outro lado.BIOGRAFIASonho, mas não parece.Nem quero que pareça.É por dentro que eu gosto que aconteçaA minha vida.Íntima, funda, como um sentimentoDe que se tem pudor.Vulcão de exteriorTão apagado,Que um pastorPossa sobre ele apascentar o gado.Mas os versos, depois,Frutos do sonho e dessa mesma vida,É quase à queima-roupa que os atiroContra a serenidade de quem passa.Então, já não sou eu que testemunhoA graçaDa poesia:É ela, prisioneira,Que, vendo a porta da prisão aberta,Como chispa que salta da fogueira,Numa agressiva fúria se liberta.Miguel TorgaOrfeu Rebelde, 1958** *

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