O município não teve meios para intervir ou controlar a dinâmica económica dos agentes privados e do próprio Estado, daí a completa dependência do município e dos seus planos neste domínio. O planeamento consistiu em criar as condições para o desenvolvimento das tendências locativas manifestadas pelos agentes privados (...). Estabeleceu uma hierarquia de áreas comerciais e de serviços, mas a título meramente indicativo.
Em relação aos serviços da administração central, verificou-se uma dependência completa da CML e toda a actuação do planeamento se condicionou às decisões daquela.
A reforma da lei das rendas não é a solução para todos os problemas de Lisboa. Mas parece-me urgente recolocar no mercado as dezenas de milhares de casas que estão de fora, se for preciso coercivamente; e não me parece que o Estado tenha autoridade moral para fazê-lo enquanto não resolver o problema das rendas antigas. E também não me parece que sem isso seja possível recuperar os prédios degradados num prazo razoável (10 anos, digamos, e não 20 ou 30, ou mais, como vai acontecer se se mantiver o ritmo actual).Era também preciso um grande plano para a consolidação das partes mais recentes da cidade e a reconversão das antigas áreas industriais, de modo a atrair pessoas e reduzir a desproporção actual entre a cidade e os subúrbios. E também lutar para que os subúrbios deixem de sê-lo ou pelo menos ganhem mais autonomia, e evitar que cresçam ainda mais. Se calhar isso só pode acontecer se for adoptado como objectivo político pelo Estado. A propósito disto, há dias deparei-me com esta passagem:(in Carlos Nunes Silva, 'Política Urbana em Lisboa, 1928-1974')Nunes Silva refere-se aqui à CML nas últimas décadas do salazarismo, mas podia muito bem estar a falar da CML do Abecasis, do João Soares ou da actual. Comvém recordar que os grandes planos de urbanização em Lisboa no século XX, como os de Alvalade e Olivais-Chelas, foram de iniciativa governamental. A breve passagem de Duarte Pacheco pela CML, em acumulação com o Ministério das Obras Públicas, terá dado um grande impulso a esses planos, mas o certo é que em ambos os casos a CML limitou-se a cumprir ordens.A CML, hoje, em vez de elaborar os planos de pormenor para as zonas industriais a reconverter (Alcântara, Braço de Prata, Boavista), como lhe competia e está estabelecido no PDM, limita-se a esperar que os respectivos donos lhes apresentem projectos e a aprová-los. O caso da Boavista é sintomático -- foi uma das bandeiras do PDM, no tempo do Sampaio, e nestes anos todos não foi elaborado qualquer plano de pormenor. Entretanto, os proprietários apresentam um projecto que respeita apenas a uma pequena parte do aterro, o que não impede a CML de apresentá-lo como se fosse 'o' plano da Boavista.O problema de se deixar o planeamento aos promotores não é a qualidade, em princípio. O que já está feito em Alcântara parece-me belíssimo. O problema é a quem é que se destinam essas urbanizações -- é à classe média-alta, claro. Nada contra, mas os outros também têm direito. Os planos do Estado Novo seguiam o princípio de construir habitações para diversos estratos sociais na mesma área -- o que me parece mais correcto e funcional que o princípio da segregação, tão do agrado de muitos sociólogos (e do PCP). Com a actual (e passada) política da CML o que vai acontecer, a médio prazo, é que vamos ter ilhas de ricos nos melhores terrenos disponíveis em Lisboa.Quanto à dependência da CML em relação à administração central, o que se prevê para Alcântara é também exemplar. O plano está feito para a agradar a gregos e troianos, sendo os gregos aqui os promotores imobiliários e os troianos a Administração do Porto de Lisboa, ou melhor, a APL ao serviço da Liscont, a concessionária privada do terminal de contentores: simultaneamente com a reconversão das fábricas em habitação de luxo, o plano prevê a ampliação do terminal. Isto apesar de, em Dezembro, ter sido noticiada a ida da Liscont para Santa Apolónia , por iniciativa do governo (mais uma vez), o que de resto faria todo o sentido.Mas a CML também se preocupa com a classe média, e acaba de anunciar um loteamento em Chelas para, segundo diz Carmona Rodrigues, "que a cidade continue a ter, como teve no passado, uma oferta de habitação para todas as classes sociais e económicas". Mais um exemplo da política tapa-buracos que tem dominado a CML nas últimas décadas.As coisas só vão melhorar neste campo quando a política urbana for assumida como objectivo governamental pelos partidos. E o facto de os movimentos cívicos urbanos se limitarem ao ambientalismo de meia tigela (ai as minhas arvorezinhas, mas nem uma palavra sobre a vedação do Tejo ou a degradação dos jardins) e ao patrimonialismo bacoco (ai a casinha do Garrett, enquanto a dois quilómetros daí se destroem bairros inteiros do século XIX) também não ajuda. E, já agora, o silêncio dos arquitectos, a quem os problemas da cidade parecem não dizer respeito, também não.
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O município não teve meios para intervir ou controlar a dinâmica económica dos agentes privados e do próprio Estado, daí a completa dependência do município e dos seus planos neste domínio. O planeamento consistiu em criar as condições para o desenvolvimento das tendências locativas manifestadas pelos agentes privados (...). Estabeleceu uma hierarquia de áreas comerciais e de serviços, mas a título meramente indicativo.
Em relação aos serviços da administração central, verificou-se uma dependência completa da CML e toda a actuação do planeamento se condicionou às decisões daquela.
A reforma da lei das rendas não é a solução para todos os problemas de Lisboa. Mas parece-me urgente recolocar no mercado as dezenas de milhares de casas que estão de fora, se for preciso coercivamente; e não me parece que o Estado tenha autoridade moral para fazê-lo enquanto não resolver o problema das rendas antigas. E também não me parece que sem isso seja possível recuperar os prédios degradados num prazo razoável (10 anos, digamos, e não 20 ou 30, ou mais, como vai acontecer se se mantiver o ritmo actual).Era também preciso um grande plano para a consolidação das partes mais recentes da cidade e a reconversão das antigas áreas industriais, de modo a atrair pessoas e reduzir a desproporção actual entre a cidade e os subúrbios. E também lutar para que os subúrbios deixem de sê-lo ou pelo menos ganhem mais autonomia, e evitar que cresçam ainda mais. Se calhar isso só pode acontecer se for adoptado como objectivo político pelo Estado. A propósito disto, há dias deparei-me com esta passagem:(in Carlos Nunes Silva, 'Política Urbana em Lisboa, 1928-1974')Nunes Silva refere-se aqui à CML nas últimas décadas do salazarismo, mas podia muito bem estar a falar da CML do Abecasis, do João Soares ou da actual. Comvém recordar que os grandes planos de urbanização em Lisboa no século XX, como os de Alvalade e Olivais-Chelas, foram de iniciativa governamental. A breve passagem de Duarte Pacheco pela CML, em acumulação com o Ministério das Obras Públicas, terá dado um grande impulso a esses planos, mas o certo é que em ambos os casos a CML limitou-se a cumprir ordens.A CML, hoje, em vez de elaborar os planos de pormenor para as zonas industriais a reconverter (Alcântara, Braço de Prata, Boavista), como lhe competia e está estabelecido no PDM, limita-se a esperar que os respectivos donos lhes apresentem projectos e a aprová-los. O caso da Boavista é sintomático -- foi uma das bandeiras do PDM, no tempo do Sampaio, e nestes anos todos não foi elaborado qualquer plano de pormenor. Entretanto, os proprietários apresentam um projecto que respeita apenas a uma pequena parte do aterro, o que não impede a CML de apresentá-lo como se fosse 'o' plano da Boavista.O problema de se deixar o planeamento aos promotores não é a qualidade, em princípio. O que já está feito em Alcântara parece-me belíssimo. O problema é a quem é que se destinam essas urbanizações -- é à classe média-alta, claro. Nada contra, mas os outros também têm direito. Os planos do Estado Novo seguiam o princípio de construir habitações para diversos estratos sociais na mesma área -- o que me parece mais correcto e funcional que o princípio da segregação, tão do agrado de muitos sociólogos (e do PCP). Com a actual (e passada) política da CML o que vai acontecer, a médio prazo, é que vamos ter ilhas de ricos nos melhores terrenos disponíveis em Lisboa.Quanto à dependência da CML em relação à administração central, o que se prevê para Alcântara é também exemplar. O plano está feito para a agradar a gregos e troianos, sendo os gregos aqui os promotores imobiliários e os troianos a Administração do Porto de Lisboa, ou melhor, a APL ao serviço da Liscont, a concessionária privada do terminal de contentores: simultaneamente com a reconversão das fábricas em habitação de luxo, o plano prevê a ampliação do terminal. Isto apesar de, em Dezembro, ter sido noticiada a ida da Liscont para Santa Apolónia , por iniciativa do governo (mais uma vez), o que de resto faria todo o sentido.Mas a CML também se preocupa com a classe média, e acaba de anunciar um loteamento em Chelas para, segundo diz Carmona Rodrigues, "que a cidade continue a ter, como teve no passado, uma oferta de habitação para todas as classes sociais e económicas". Mais um exemplo da política tapa-buracos que tem dominado a CML nas últimas décadas.As coisas só vão melhorar neste campo quando a política urbana for assumida como objectivo governamental pelos partidos. E o facto de os movimentos cívicos urbanos se limitarem ao ambientalismo de meia tigela (ai as minhas arvorezinhas, mas nem uma palavra sobre a vedação do Tejo ou a degradação dos jardins) e ao patrimonialismo bacoco (ai a casinha do Garrett, enquanto a dois quilómetros daí se destroem bairros inteiros do século XIX) também não ajuda. E, já agora, o silêncio dos arquitectos, a quem os problemas da cidade parecem não dizer respeito, também não.