PALAVROSSAVRVS REX: PRÓDIGOS (ABRAÇANDO D. MANUEL CLEMENTE, BISPO DO PORTO)

23-05-2009
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No mundo é perdido que se anda.Errância e desatino,trazemos quase cicatrizados os longínquos lanhos infantis de um amor recebido como pouco,mesmo se superabundou.Encontrar-se um homem no meio de este ruído e de esta massa pastosa das emoçõesdesmedidas, mal-medidas, natureza da emoção,é, por vezes, não haver como possa um homem encontrar-se.Século de pródigos, filhos da abundância das coisas e da indigência e precaridade dos afectos,rodeados das bolotas proibitivas do sentidoenquanto guardamos os porcos de toda a sorte de humilhações...E a herança dissipada é a do encontro pessoa a pessoasem os muros comparativos,sem os muros interpostos pelo medo de perder seja o que for nesse encontro.Penso na areia no caminho,nas voltas que as palavras dão até assentarem no Abraço por que se espera para além de tudo.Toda a ciência e toda a literatura convergem no maior acontecimento poético de sempre,tudo quanto se gritou,todo o ranho e toda a baba de dor desprendidospor um contorcido rosto humano apontam para o fulcro poético da História,de todas as histórias - que um pai assassinado, porque rejeitado em vida, se levante e vá ao encontro do filho mais novo, quando o pressente, ainda na longínqua curva do caminho, de regresso. Que um pai, que um coração ilimitadamente amoroso e paternomaternize o sobressalto de alegria por ver regressado, roto e sujo, lá longe ainda,aquele filho.Que se alegre, vá ao seu encontro, o abrace, o cubra de beijose ser isto tudo quanto precisamos saber de Deus, tudo também quanto precisamos imitar d'Ele.Pois que eu não queira outra prodigalidade senão a prodigalidade do enternecimento,do respeito absoluto pela mais radical liberdade de cada um, bem entendido em que consiste essa liberdade.O que decorre de amar muito é condescender muito - recolocarmo-nos precisamente onde o outro se encontra.Que eu não queira outra prodigalidade senão a prodigalidade da paciência, da misericórdiaem sentido etimologicamente puro: coração que se desdobra e sente o poço do outro, identificando-se com ele e sentindo as suas dores, que se aproxima para chorar e para sofrer com a emoção acesa, vela ardendo que nos humaniza. A inflexibilidade e a rejeição como modo de estar permanente magoaram-me num padre.Um padre miura afiado nas pontas, distribuidor de remoques e recados invasivos e brutos,Nunca mais quis sofrer com isso: que a aspereza e a exigência sem pedagogiasuperabundassem em detrimento da escuta e do acolhimento,que o remoque fosse mais e a delicadeza menos - perante isto, excluí-me, como Paulo, hiperbolizando, estaria disposto a todo se perder se assim ganhasse o seu povo judeu para Cristo.Afastei-me. Cortei. Quis preservar-me da estupidez e da brutalidade num padre desumano.Um dia tive um sonho. Era um homem, um novo padre que chegava não sei aonde e que, em vez de frieza e repelência, aquilo a que eu estava habituado a sentir, com que estava habituado a contar, acolhia-me caloroso, reintegrando-me na paz e na comunhão.Há sonhos e sonhos, mas este tinha materialidade e as marcas indeléveis da força símbólica: lembro-me do sorriso e das mãos que se me estenderam, francas, abertas, inspirando confiança plena. Lembro-me de o meu coraçãopassar de negro a luminoso só com esse gesto. Lembro a magreza e a calva de esse homem, padre, símbolo, alguém que nunca vi. E lembro ainda haver povo em torno dele, inundado de alegria.Sei que o olhar de Cristo,o modo como reparava em cada qual e reparava em cada qual o medo da rejeiçãoe toda a distorção íntima, sobretudo nos humildes, não nos altivos e ufanos, esse olhar foi a luz mais brilhante de todos os afectos já havidos nesta Terra.Quando penso nisso, não tenho dúvidas, só nostalgia e esperança:o olhar já ama e já acolhe e já salva e já integra e já prometequalquer coisa fabulosa, preparada para este mundo. Uma grande Páscoa,uma Páscoa Cósmica em que o género humano ascenda, finalmente, ao Olhar Amoroso que sobre ele desce.Entretanto, haja tempo para a clemência, D. Manuel Clemente, Bispo do meu Porto,e essa clemência feche as feridas abertas pelos brutais.


No mundo é perdido que se anda.Errância e desatino,trazemos quase cicatrizados os longínquos lanhos infantis de um amor recebido como pouco,mesmo se superabundou.Encontrar-se um homem no meio de este ruído e de esta massa pastosa das emoçõesdesmedidas, mal-medidas, natureza da emoção,é, por vezes, não haver como possa um homem encontrar-se.Século de pródigos, filhos da abundância das coisas e da indigência e precaridade dos afectos,rodeados das bolotas proibitivas do sentidoenquanto guardamos os porcos de toda a sorte de humilhações...E a herança dissipada é a do encontro pessoa a pessoasem os muros comparativos,sem os muros interpostos pelo medo de perder seja o que for nesse encontro.Penso na areia no caminho,nas voltas que as palavras dão até assentarem no Abraço por que se espera para além de tudo.Toda a ciência e toda a literatura convergem no maior acontecimento poético de sempre,tudo quanto se gritou,todo o ranho e toda a baba de dor desprendidospor um contorcido rosto humano apontam para o fulcro poético da História,de todas as histórias - que um pai assassinado, porque rejeitado em vida, se levante e vá ao encontro do filho mais novo, quando o pressente, ainda na longínqua curva do caminho, de regresso. Que um pai, que um coração ilimitadamente amoroso e paternomaternize o sobressalto de alegria por ver regressado, roto e sujo, lá longe ainda,aquele filho.Que se alegre, vá ao seu encontro, o abrace, o cubra de beijose ser isto tudo quanto precisamos saber de Deus, tudo também quanto precisamos imitar d'Ele.Pois que eu não queira outra prodigalidade senão a prodigalidade do enternecimento,do respeito absoluto pela mais radical liberdade de cada um, bem entendido em que consiste essa liberdade.O que decorre de amar muito é condescender muito - recolocarmo-nos precisamente onde o outro se encontra.Que eu não queira outra prodigalidade senão a prodigalidade da paciência, da misericórdiaem sentido etimologicamente puro: coração que se desdobra e sente o poço do outro, identificando-se com ele e sentindo as suas dores, que se aproxima para chorar e para sofrer com a emoção acesa, vela ardendo que nos humaniza. A inflexibilidade e a rejeição como modo de estar permanente magoaram-me num padre.Um padre miura afiado nas pontas, distribuidor de remoques e recados invasivos e brutos,Nunca mais quis sofrer com isso: que a aspereza e a exigência sem pedagogiasuperabundassem em detrimento da escuta e do acolhimento,que o remoque fosse mais e a delicadeza menos - perante isto, excluí-me, como Paulo, hiperbolizando, estaria disposto a todo se perder se assim ganhasse o seu povo judeu para Cristo.Afastei-me. Cortei. Quis preservar-me da estupidez e da brutalidade num padre desumano.Um dia tive um sonho. Era um homem, um novo padre que chegava não sei aonde e que, em vez de frieza e repelência, aquilo a que eu estava habituado a sentir, com que estava habituado a contar, acolhia-me caloroso, reintegrando-me na paz e na comunhão.Há sonhos e sonhos, mas este tinha materialidade e as marcas indeléveis da força símbólica: lembro-me do sorriso e das mãos que se me estenderam, francas, abertas, inspirando confiança plena. Lembro-me de o meu coraçãopassar de negro a luminoso só com esse gesto. Lembro a magreza e a calva de esse homem, padre, símbolo, alguém que nunca vi. E lembro ainda haver povo em torno dele, inundado de alegria.Sei que o olhar de Cristo,o modo como reparava em cada qual e reparava em cada qual o medo da rejeiçãoe toda a distorção íntima, sobretudo nos humildes, não nos altivos e ufanos, esse olhar foi a luz mais brilhante de todos os afectos já havidos nesta Terra.Quando penso nisso, não tenho dúvidas, só nostalgia e esperança:o olhar já ama e já acolhe e já salva e já integra e já prometequalquer coisa fabulosa, preparada para este mundo. Uma grande Páscoa,uma Páscoa Cósmica em que o género humano ascenda, finalmente, ao Olhar Amoroso que sobre ele desce.Entretanto, haja tempo para a clemência, D. Manuel Clemente, Bispo do meu Porto,e essa clemência feche as feridas abertas pelos brutais.

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