PALAVROSSAVRVS REX: SCORPIA PEÇONHA

23-05-2009
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Clara, quando lhe perguntam o que faz, desaba e chora.Ontem contaram-me dela. Contou-me ela, na verdade, por meio de quem mo contou, que as lojas dos centros comerciais lhe conhecem os braços e as pernas impensáveis de laboriosas, vertendo lixívias, passando abrasivos panos, panos macios, polindo doirados,abordando as sanitas que filhos displicentes (de pais fartos e ausentes) usaram pelo fim da noite antes durante ou depois do tédio de um filme mais muito aclamado pelo sistema das aclamações fílmicas e ainda mais badalado pelas TVs e agora nessas salas de cinema que já não enchem.lkj Vai ela e vão todas em enxame as mulheresque limpam os centros comerciais, quando a madrugada acabou de ceder o seu lugar a mais luz e podem, mais escondidas caso o desejem, limpar dia-a-dia. Clara é somente mais uma professora de Biologia entre as lixívias e derivados, naquela corrida higiénica às alcatifas e aos pavimentos lisos e brilhantes dos imensos centros comerciais, onde há menos beatas e cinza fora de acondicionamento:«teve de ser», diz ela, ao parir a frase. «É mais um part-time.» Sem colocação desde há um ano e com o T1 atrasado, apertada pela euriboreal aurora opressiva.lkjMulher só, moça, com três ou quatro amigos,que lhe alternam gratuitos a cama indecisa no indeciso trimestre que sucede ao trimestre, bebem-lha, a frase parida, os amigos que cativou pelo acaso de uma hora mais derreada e deprimida no condomínio, alguém que passa e levanta a desfalecente desfalecida: a reformada azeda do terceiro esquerdo, tísicauriculariana,o casal estéril do rés do chão direito in-vitrodesistente,a estrábica com o caniche do duplex lantejoulada e Chanel 5.lkjMostra os calos. Abre as palmas. Diz que estudou de mais para ter de aceitar isto.E agora compete para ser a melhor e a mais enérgicaagarrada à vassoura e umbilicada à esfregona, de joelhos no lustro,dentre o enxame de roliças portuguesas e afrodescendentes agarradas ao carrinho de apetrechos para o efeito.lkjA Clara, trinta anos, loura, esbelta, esclarece os ouvintes sobre si, cada qual pela sua vez ocasional: «Sou muito independente.» e eles aconchegam-se consolados dentro de si mesmos por não terem aquela peçonha de vidamarchetada de lágrimas profissionais e mudança de carreira. Viciaram-se na professora que chora e limpa, é a verdade,são adictos na mulher de limpezas professora endividada, com casa para pagar, talvez leviana, talvez fácil.lkjViciaram-se nela, percebam vocês aí isto, ó campeões da merda. Ligam-lhe muito para lhe fingirem condescendência e interesse puro,telefonam-lhe para existirem para ela,invejando-lhe a cama concorrida e a juventude, a miséria que vibra e se sente e se rebela pujante de vida pungente, invejam-lhe o génio oposto às lágrimas com que catarseia o íntimo, génio bipolar que lhe é scorpiocauda, ferrete e acicate para sobreviver.lkjViciaram-se nela. Um desejo de estar perto e não ajudar em nada,só para lhe derramarem palavras omissas e sornas: «Vai melhorar. Isso passa.»Nem uma cenoura partilharam com ela, nem um rabanete, nas suas barbas carentes.Viciaram-se nela somente e na sua história sem final.E consideram-se seus amigos!


Clara, quando lhe perguntam o que faz, desaba e chora.Ontem contaram-me dela. Contou-me ela, na verdade, por meio de quem mo contou, que as lojas dos centros comerciais lhe conhecem os braços e as pernas impensáveis de laboriosas, vertendo lixívias, passando abrasivos panos, panos macios, polindo doirados,abordando as sanitas que filhos displicentes (de pais fartos e ausentes) usaram pelo fim da noite antes durante ou depois do tédio de um filme mais muito aclamado pelo sistema das aclamações fílmicas e ainda mais badalado pelas TVs e agora nessas salas de cinema que já não enchem.lkj Vai ela e vão todas em enxame as mulheresque limpam os centros comerciais, quando a madrugada acabou de ceder o seu lugar a mais luz e podem, mais escondidas caso o desejem, limpar dia-a-dia. Clara é somente mais uma professora de Biologia entre as lixívias e derivados, naquela corrida higiénica às alcatifas e aos pavimentos lisos e brilhantes dos imensos centros comerciais, onde há menos beatas e cinza fora de acondicionamento:«teve de ser», diz ela, ao parir a frase. «É mais um part-time.» Sem colocação desde há um ano e com o T1 atrasado, apertada pela euriboreal aurora opressiva.lkjMulher só, moça, com três ou quatro amigos,que lhe alternam gratuitos a cama indecisa no indeciso trimestre que sucede ao trimestre, bebem-lha, a frase parida, os amigos que cativou pelo acaso de uma hora mais derreada e deprimida no condomínio, alguém que passa e levanta a desfalecente desfalecida: a reformada azeda do terceiro esquerdo, tísicauriculariana,o casal estéril do rés do chão direito in-vitrodesistente,a estrábica com o caniche do duplex lantejoulada e Chanel 5.lkjMostra os calos. Abre as palmas. Diz que estudou de mais para ter de aceitar isto.E agora compete para ser a melhor e a mais enérgicaagarrada à vassoura e umbilicada à esfregona, de joelhos no lustro,dentre o enxame de roliças portuguesas e afrodescendentes agarradas ao carrinho de apetrechos para o efeito.lkjA Clara, trinta anos, loura, esbelta, esclarece os ouvintes sobre si, cada qual pela sua vez ocasional: «Sou muito independente.» e eles aconchegam-se consolados dentro de si mesmos por não terem aquela peçonha de vidamarchetada de lágrimas profissionais e mudança de carreira. Viciaram-se na professora que chora e limpa, é a verdade,são adictos na mulher de limpezas professora endividada, com casa para pagar, talvez leviana, talvez fácil.lkjViciaram-se nela, percebam vocês aí isto, ó campeões da merda. Ligam-lhe muito para lhe fingirem condescendência e interesse puro,telefonam-lhe para existirem para ela,invejando-lhe a cama concorrida e a juventude, a miséria que vibra e se sente e se rebela pujante de vida pungente, invejam-lhe o génio oposto às lágrimas com que catarseia o íntimo, génio bipolar que lhe é scorpiocauda, ferrete e acicate para sobreviver.lkjViciaram-se nela. Um desejo de estar perto e não ajudar em nada,só para lhe derramarem palavras omissas e sornas: «Vai melhorar. Isso passa.»Nem uma cenoura partilharam com ela, nem um rabanete, nas suas barbas carentes.Viciaram-se nela somente e na sua história sem final.E consideram-se seus amigos!

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