Rende-me uma ou duas páginas bem compactas cada uma de estas noites de trabalhopassadas em claro. De pé ou sentado, as palavras escorrem-me como uma monçãobangladeshiana no equador da minha sensibilidade à solta em tigre.Saio de casa entre as dez e as dez e meia da noite. Tomo um café num estabelecimento ainda aberto na granítica-grande cidade. Como aí uma coisita qualquer.E nunca mais torno a beber ou a comer seja o que for até chegar a casa,quando o azul mais intenso irrompe divino, mágico. Ao vê-lo, a esse azul intenso, penso sempre naquelas missas madrugadoras dos protocristãos.Ao vê-lo, recordo as minhas próprias missas madrugadoras,quando ardia de amor pela redescoberta em fogo da minha Igreja,pela centelha que me consumia de Esperança e de Cristo, na Sua Parusia, fulcro da minha história pessoal. Passei anos sob uma locução interior difícil de descrever sob esse influxo feliz, era um involuntário sussurro interior impossível de dar conta seja a quem for,por muito que ensaiasse explicá-lo. Sei como galvanizá-lo, reactivá-lo novamente.Mas ainda não é tempo.lkjÉ como ter de ir morrer, escrever.É simplesmente natural que uma geração voltada para o lazer,despreocupada por sistema, não escreva.Não sabe nem quer saber que ir morrer dá algum trabalho.Despedirmo-nos disto que nos aconteceu, nascer, dá trabalho e é como quem escava,e é solitário como um espirro irreprimível.lkjDe um jacto, encho uma, duas páginas.Beijo as palavras que me saem, saio eu mesmo de mim por causa delas.Não sei se é da esferográfica com anos de uso, uma Uni Ball Signo 0.5, tinta azul,se da folha aleatória de papel grossa, branca, acetinada, mas há um fazer amorsensualíssimo entre a minha mão que aperta e abraça este canal de tinta,mão que desliza macia no papel macio,e a palavra sémen que resulta.ljjMas que frio, aqui fora!Ontem recolhi-me com duas pedras de gelo em vez de pés.Minha avó querida, beijei a tua fronte fria e dura, naquele dia em que entraste na Pátria Celeste,ciente de essa Meta viva e do tempo intemporal da Ressurreição futura. Com efeito, estavas fria e isso doeu. Magoou mais que todo o antes, minha avó querida!ljjA sós, escrevo de ciência e senso, sondo assim o morrer feliz,neste doce desenhar do meu texto, meu trilho.Está tanto frio!Mas por que não trouxe vestidas as meias-calça, conforme determinei e depois esqueci?!Hipotermizo neste gelo! çljjPedi um adiantamento ao meu patrão part-timesco. Confesso que o homem é uma figuraverdadeiramente faceta, acho-o patusco, um tipo simpático, também lá com os seus apertos.Disse-lhe que seria a título excepcional.Nem hesitou. Acedeu. Já pedi dinheiro a A. a B. e a C. E só para financiar despesas com a minha profissão diurna e intermitente.Sou um precário, um provisório, um substituto, um suplente, o caralho!A escola onde lecciono, ao que consta, por trinta dias, é daquelas sobrelotadas,bem geridas e organizadas. Tem um regulamento interno aparentemente avançado que, entre outras coisas, obriga os professores fazerem constar percentagens nos testes,mesmo do 3.º Ciclo, estimulando assim a competitividade nas turmas, a corrida taco a taco às décimas.lkjPor contraste com o inferno comportamental e a desestruturação socialevidente na escola portuense onde leccionei no ano passado,com um espírito de clivagem estatutária inter-docentes(não todos, graças a Deus!, havia lá deus Aida e a austera Licínia de humanidade!),esta outra devolve-me alunos amorosos, caritas saudáveis, bem portuguesas e nortenhas,infinitamente mais dóceis e capazes de valorizar a pessoa dos seus professores.Não se padece ali agruras indescritíveis.Não se morre ali tantas vezes.Se fui alguma vez indescritivelmente feliz na docência foi na Trofa,noutra mega-escola, igualmente concentracionária, mas imensamente virgem e saudávelnas suas crianças e jovens,muito afectuosos e genuínos. Amam muito os professores que lhes querem bem e os respeitam,aceitando-os tal como são, transformando-os ainda melhor no que são na sua genuína originalidade. Aí, sim, reconciliei-me com o meu Norte Português. Reencontrei-me nele também.Mas está a sair-me bem caro amamentar a profissão.Não exagero se disser que nas actuais circunstâncias, estou a pagar para dar aulas,o que, a juntar à minha precaridade, poderia traduzir-se em desinvestimento e desânimo,mas não traduz. Às seis horas e quinze de cada manhã, estou pronto para devorar a estrada.Todos os dias verto doze euros bem contadinhos de combustível.Viajo para leste, ao encontro da aurora. É uma bênção estimulante assistir ao espectáculodo sol nascente. Sintonizar a RR ou a Nova Era, ouvir as notícias,a reflexão espiritual na RR e engolir a estrada deserta. No horizonte, linhas brancas multidireccionais rasgam o azul dourado dos céus,céus já congestionados de veículos e de beleza. Certamente que isto regularmente bebido me inspira e renova e reforça.É natural que me ponha para diante do que me dói, do que me tão magoa.[Quando o meu patrão começa a cantar, tenho de sorrir muito. A sua voz é cómica. O seu reportório é cómico. O seu inglês é cómico.Tenho até receio de ficar viciado na comicidade viciante de ouvir este homem, de sabê-lo ao piano.]lkjChegado à cidadezinha de destino, tento tomar um pequeno-almoço que me aguente o dia.Gasto um par de euros. Agora só lá para as três ou quatro.«Não sei. Nunca fui professor substituto.» O colega não diz por mal, mas di-lo demarcando-se higiénico de mim, enquanto se esforça por esclarecer uma informação que lhe peço relativamente à minha substituição.Mas só retenho o modo como se demarca de esta estranha condição subdocente, esta subcategoria ensinante,e tenta desexplicar-me o que será de mim, caso subitamentecesse a minha substituição, que era o que lhe inquirira. Só consigo pensar um dia de cada vez e estar inteiro com os meus alunos. Dar-lhes o melhor de mim, a minha herança escreventede apaixonado pela Língua Portuguesa.Não me peçam mais que isto e já é de mais! Não me onerem mais que isto!lkj[Três jovens britânicos assomam à porta. Mais três! Concedo-lhes a entrada. Há sempre britânicos onde houver pubs, estou a ver. Serão também os últimos a sair da casa?Igualmente bêbados como um cacho? Por quanto tempo simpáticos e correctos?Casa vazia, oferecem um último copo ao meu patrão: «Thank you, but I don't drink alcohol.»E logo um deles: «So, you must be gay.»Ou fez que não ouviu ou não ouviu de todo,mas mesmo que ouvisse, naquele seu jeito portuense lingrinhas,naquele seu corpo de Ribeirinho, homem manso e de paz,nunca nenhum mal viria ao mundo só por um bêbado lhe atirar um «So, you must be gay.»].
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Rende-me uma ou duas páginas bem compactas cada uma de estas noites de trabalhopassadas em claro. De pé ou sentado, as palavras escorrem-me como uma monçãobangladeshiana no equador da minha sensibilidade à solta em tigre.Saio de casa entre as dez e as dez e meia da noite. Tomo um café num estabelecimento ainda aberto na granítica-grande cidade. Como aí uma coisita qualquer.E nunca mais torno a beber ou a comer seja o que for até chegar a casa,quando o azul mais intenso irrompe divino, mágico. Ao vê-lo, a esse azul intenso, penso sempre naquelas missas madrugadoras dos protocristãos.Ao vê-lo, recordo as minhas próprias missas madrugadoras,quando ardia de amor pela redescoberta em fogo da minha Igreja,pela centelha que me consumia de Esperança e de Cristo, na Sua Parusia, fulcro da minha história pessoal. Passei anos sob uma locução interior difícil de descrever sob esse influxo feliz, era um involuntário sussurro interior impossível de dar conta seja a quem for,por muito que ensaiasse explicá-lo. Sei como galvanizá-lo, reactivá-lo novamente.Mas ainda não é tempo.lkjÉ como ter de ir morrer, escrever.É simplesmente natural que uma geração voltada para o lazer,despreocupada por sistema, não escreva.Não sabe nem quer saber que ir morrer dá algum trabalho.Despedirmo-nos disto que nos aconteceu, nascer, dá trabalho e é como quem escava,e é solitário como um espirro irreprimível.lkjDe um jacto, encho uma, duas páginas.Beijo as palavras que me saem, saio eu mesmo de mim por causa delas.Não sei se é da esferográfica com anos de uso, uma Uni Ball Signo 0.5, tinta azul,se da folha aleatória de papel grossa, branca, acetinada, mas há um fazer amorsensualíssimo entre a minha mão que aperta e abraça este canal de tinta,mão que desliza macia no papel macio,e a palavra sémen que resulta.ljjMas que frio, aqui fora!Ontem recolhi-me com duas pedras de gelo em vez de pés.Minha avó querida, beijei a tua fronte fria e dura, naquele dia em que entraste na Pátria Celeste,ciente de essa Meta viva e do tempo intemporal da Ressurreição futura. Com efeito, estavas fria e isso doeu. Magoou mais que todo o antes, minha avó querida!ljjA sós, escrevo de ciência e senso, sondo assim o morrer feliz,neste doce desenhar do meu texto, meu trilho.Está tanto frio!Mas por que não trouxe vestidas as meias-calça, conforme determinei e depois esqueci?!Hipotermizo neste gelo! çljjPedi um adiantamento ao meu patrão part-timesco. Confesso que o homem é uma figuraverdadeiramente faceta, acho-o patusco, um tipo simpático, também lá com os seus apertos.Disse-lhe que seria a título excepcional.Nem hesitou. Acedeu. Já pedi dinheiro a A. a B. e a C. E só para financiar despesas com a minha profissão diurna e intermitente.Sou um precário, um provisório, um substituto, um suplente, o caralho!A escola onde lecciono, ao que consta, por trinta dias, é daquelas sobrelotadas,bem geridas e organizadas. Tem um regulamento interno aparentemente avançado que, entre outras coisas, obriga os professores fazerem constar percentagens nos testes,mesmo do 3.º Ciclo, estimulando assim a competitividade nas turmas, a corrida taco a taco às décimas.lkjPor contraste com o inferno comportamental e a desestruturação socialevidente na escola portuense onde leccionei no ano passado,com um espírito de clivagem estatutária inter-docentes(não todos, graças a Deus!, havia lá deus Aida e a austera Licínia de humanidade!),esta outra devolve-me alunos amorosos, caritas saudáveis, bem portuguesas e nortenhas,infinitamente mais dóceis e capazes de valorizar a pessoa dos seus professores.Não se padece ali agruras indescritíveis.Não se morre ali tantas vezes.Se fui alguma vez indescritivelmente feliz na docência foi na Trofa,noutra mega-escola, igualmente concentracionária, mas imensamente virgem e saudávelnas suas crianças e jovens,muito afectuosos e genuínos. Amam muito os professores que lhes querem bem e os respeitam,aceitando-os tal como são, transformando-os ainda melhor no que são na sua genuína originalidade. Aí, sim, reconciliei-me com o meu Norte Português. Reencontrei-me nele também.Mas está a sair-me bem caro amamentar a profissão.Não exagero se disser que nas actuais circunstâncias, estou a pagar para dar aulas,o que, a juntar à minha precaridade, poderia traduzir-se em desinvestimento e desânimo,mas não traduz. Às seis horas e quinze de cada manhã, estou pronto para devorar a estrada.Todos os dias verto doze euros bem contadinhos de combustível.Viajo para leste, ao encontro da aurora. É uma bênção estimulante assistir ao espectáculodo sol nascente. Sintonizar a RR ou a Nova Era, ouvir as notícias,a reflexão espiritual na RR e engolir a estrada deserta. No horizonte, linhas brancas multidireccionais rasgam o azul dourado dos céus,céus já congestionados de veículos e de beleza. Certamente que isto regularmente bebido me inspira e renova e reforça.É natural que me ponha para diante do que me dói, do que me tão magoa.[Quando o meu patrão começa a cantar, tenho de sorrir muito. A sua voz é cómica. O seu reportório é cómico. O seu inglês é cómico.Tenho até receio de ficar viciado na comicidade viciante de ouvir este homem, de sabê-lo ao piano.]lkjChegado à cidadezinha de destino, tento tomar um pequeno-almoço que me aguente o dia.Gasto um par de euros. Agora só lá para as três ou quatro.«Não sei. Nunca fui professor substituto.» O colega não diz por mal, mas di-lo demarcando-se higiénico de mim, enquanto se esforça por esclarecer uma informação que lhe peço relativamente à minha substituição.Mas só retenho o modo como se demarca de esta estranha condição subdocente, esta subcategoria ensinante,e tenta desexplicar-me o que será de mim, caso subitamentecesse a minha substituição, que era o que lhe inquirira. Só consigo pensar um dia de cada vez e estar inteiro com os meus alunos. Dar-lhes o melhor de mim, a minha herança escreventede apaixonado pela Língua Portuguesa.Não me peçam mais que isto e já é de mais! Não me onerem mais que isto!lkj[Três jovens britânicos assomam à porta. Mais três! Concedo-lhes a entrada. Há sempre britânicos onde houver pubs, estou a ver. Serão também os últimos a sair da casa?Igualmente bêbados como um cacho? Por quanto tempo simpáticos e correctos?Casa vazia, oferecem um último copo ao meu patrão: «Thank you, but I don't drink alcohol.»E logo um deles: «So, you must be gay.»Ou fez que não ouviu ou não ouviu de todo,mas mesmo que ouvisse, naquele seu jeito portuense lingrinhas,naquele seu corpo de Ribeirinho, homem manso e de paz,nunca nenhum mal viria ao mundo só por um bêbado lhe atirar um «So, you must be gay.»].