Regionalização

02-07-2009
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Luis PereiraTrás-os-Montes está-me enraizado na pele. Nasci numa pequena aldeia banhada pelo rio Douro. Cresci na frescura das geadas e nos braseiros do xisto. Temperei-me de cansaços feitos de terra, da mesma terra onde semeava silenciosamente meus sonhos e colhia apenas sossego. E sempre me abundou esse contentamento solitário de paz, de tranquilidade e de pacatez.Desde muito cedo senti uma espécie de necessidade fatal de me misturar com a terra, de rebolar campos fora pelo frondoso centeio que eu quando menino baqueava numa alegria de ave. Depois, claro, depois do prejuízo feito, vinha o castigo de meu pai. Mas isso pouco importava, porque o importante era sentir-me terra e céu e água e rio. O importante era sentir-me livre! Acho que foi a partir deste substrato de liberdade, onde assentei a experiência vivencial da minha infância, que antes mesmo de qualquer “catequização democrática” ou aprendizagem teórica, aprendi a amar a liberdade. Na essência fundei-me como um bicho selvagem que sem campo aberto e horizonte livre, tristemente fenece.A aldeia e a região aferrou-se assim literalmente ao corpo, e a partir desses pequenos nadas criou raízes tentaculares como as do “rango” da vinha; infiltrou-se no sangue e tornou-se “doença”.Aos catorze anos abandonei o ninho. Mais tarde, pela necessidade de formação fui engrossar a gaiola acumulada de rostos pardos que habitam as cinzentas ruas da cidade onde o meu rio se perde em loucuras de espuma. E como o meu Douro, aí também eu desaguava diariamente num oceano imenso de solidão. E meu rosto tornou-se granito, duro e igual ao dos edifícios altos onde se projectava a minha soturna silhueta. Não era feliz. Precisava de me recolher novamente na terra, e quando a oportunidade chegou, regressei.Depois de quase vinte anos de ausências, este meu regressar de tempo inteiro encheu-me de renovado ânimo; meu rosto áspero fendeu-se e cuido que voltei a sorrir.Mais tarde, já aqui novamente instalado, com a esperança dos incautos e a utopia humanista dos seres naturalmente honestos, voltei a acreditar que a minha região podia ser salva, acreditei em promessas e depositei esperanças num desejado vento novo. Por duas vezes pensei e acreditei num país inteiro, porque acreditava que era possível mudar o rumo da agonia desta nossa terra árida de gente e de quase tudo. Acreditei na tal teoria da “descriminação positiva” que com algum descaramento e hipocrisia nos impingiam certos políticos.Mas agora, hoje, presentemente vejo com clareza o alcance dessa descriminação consubstanciada em algumas medidas governamentais impostas em nome de uma optimização de recursos e de uma qualidade de prestação de serviços que na verdade existem cada vez menos em Trás-os-Montes. Agora alcanço claramente o significado real dessa descriminação, que mais não é do que uma perfeita e sentida descriminação negativa.A morte da minha região começou e está em curso porque os senhores do poder não percebem ou fingem ignorar o verdadeiro significado da palavra vida. E porque a vida é apenas o direito de se viver condignamente onde se criou a raiz que nos liga à terra, é tempo de termos a insubmissa altivez do comportamento das árvores. E isto porque quando nos encerram escolas, quando nos fecham serviços essências, quando nos determinam o lugar onde nascer, quando nos anunciam a inevitabilidade da morte das nossas aldeias…ou quando nos excluem da educação do país o nosso melhor escritor, estes senhores querem apenas dizer: morrei!Mas eu que tenho um Marão inteiro de orgulho em ser transmontano e que não gosto que me imponham a morte por decreto, terei esse comportamento “selvagem” dos seres verdadeiramente livres. E morrer por morrer, hei-de morrer de pé, tal como a oliveira centenária que continua viçosa no quintal da casa que herdei de meus pais.

Luis PereiraTrás-os-Montes está-me enraizado na pele. Nasci numa pequena aldeia banhada pelo rio Douro. Cresci na frescura das geadas e nos braseiros do xisto. Temperei-me de cansaços feitos de terra, da mesma terra onde semeava silenciosamente meus sonhos e colhia apenas sossego. E sempre me abundou esse contentamento solitário de paz, de tranquilidade e de pacatez.Desde muito cedo senti uma espécie de necessidade fatal de me misturar com a terra, de rebolar campos fora pelo frondoso centeio que eu quando menino baqueava numa alegria de ave. Depois, claro, depois do prejuízo feito, vinha o castigo de meu pai. Mas isso pouco importava, porque o importante era sentir-me terra e céu e água e rio. O importante era sentir-me livre! Acho que foi a partir deste substrato de liberdade, onde assentei a experiência vivencial da minha infância, que antes mesmo de qualquer “catequização democrática” ou aprendizagem teórica, aprendi a amar a liberdade. Na essência fundei-me como um bicho selvagem que sem campo aberto e horizonte livre, tristemente fenece.A aldeia e a região aferrou-se assim literalmente ao corpo, e a partir desses pequenos nadas criou raízes tentaculares como as do “rango” da vinha; infiltrou-se no sangue e tornou-se “doença”.Aos catorze anos abandonei o ninho. Mais tarde, pela necessidade de formação fui engrossar a gaiola acumulada de rostos pardos que habitam as cinzentas ruas da cidade onde o meu rio se perde em loucuras de espuma. E como o meu Douro, aí também eu desaguava diariamente num oceano imenso de solidão. E meu rosto tornou-se granito, duro e igual ao dos edifícios altos onde se projectava a minha soturna silhueta. Não era feliz. Precisava de me recolher novamente na terra, e quando a oportunidade chegou, regressei.Depois de quase vinte anos de ausências, este meu regressar de tempo inteiro encheu-me de renovado ânimo; meu rosto áspero fendeu-se e cuido que voltei a sorrir.Mais tarde, já aqui novamente instalado, com a esperança dos incautos e a utopia humanista dos seres naturalmente honestos, voltei a acreditar que a minha região podia ser salva, acreditei em promessas e depositei esperanças num desejado vento novo. Por duas vezes pensei e acreditei num país inteiro, porque acreditava que era possível mudar o rumo da agonia desta nossa terra árida de gente e de quase tudo. Acreditei na tal teoria da “descriminação positiva” que com algum descaramento e hipocrisia nos impingiam certos políticos.Mas agora, hoje, presentemente vejo com clareza o alcance dessa descriminação consubstanciada em algumas medidas governamentais impostas em nome de uma optimização de recursos e de uma qualidade de prestação de serviços que na verdade existem cada vez menos em Trás-os-Montes. Agora alcanço claramente o significado real dessa descriminação, que mais não é do que uma perfeita e sentida descriminação negativa.A morte da minha região começou e está em curso porque os senhores do poder não percebem ou fingem ignorar o verdadeiro significado da palavra vida. E porque a vida é apenas o direito de se viver condignamente onde se criou a raiz que nos liga à terra, é tempo de termos a insubmissa altivez do comportamento das árvores. E isto porque quando nos encerram escolas, quando nos fecham serviços essências, quando nos determinam o lugar onde nascer, quando nos anunciam a inevitabilidade da morte das nossas aldeias…ou quando nos excluem da educação do país o nosso melhor escritor, estes senhores querem apenas dizer: morrei!Mas eu que tenho um Marão inteiro de orgulho em ser transmontano e que não gosto que me imponham a morte por decreto, terei esse comportamento “selvagem” dos seres verdadeiramente livres. E morrer por morrer, hei-de morrer de pé, tal como a oliveira centenária que continua viçosa no quintal da casa que herdei de meus pais.

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