A maratona (breve relato que inclui a ascens„o e queda de um etÌope) Quando vejo um maratonista a passar, pouco importando sem vem ‡ frente ou atr·s do pelot„o, lembro-me que passei ao lado de uma grande carreira. H· poucos elementos que ajudem a convencer os outros desta entranhada convicÁ„o. SÛ ganhei uma medalha e j· nem sei onde a guardo. Nem sequer era uma corrida a sÈrio, daquelas que atraem os atletas federados mas apesar do amadorismo dos meus advers·rios, veraneantes interessados em beber copos e nas curvas da nÛrdica que dava aulas de ioga, apesar de eu ser na altura um puto de 12 ou 13 anos, seco de carnes, a destoar do bando de trintıes barrigudos que se alinhavam, apesar de tudo, sempre era uma corrida internacional, para mais em terras de Espanha, raz„o suficiente para fazer de qualquer vitÛria tambÈm uma conquista. A corrida era de meio fundo, talvez uns 3 km, percurso de ida e volta: da linha de partida atÈ um comiss·rio que nos carimbava a m„o e dali atÈ ‡ linha de chegada, de onde partÌramos. Se conto este episÛdio, expondo o narcisismo a cÈu aberto, n„o È por julgar que no fim, muito depois de se cortar a meta, h· uma liÁ„o de moral ou um ensinamento. Na corrida n„o entravam lebres nem tartarugas. Mas havia um senegalÍs. E da mesma forma que n„o era preciso pedir muito da imaginaÁ„o para ver no africano do Senegal um temÌvel etÌope, leve, aerodin‚mico e cheio de eritrÛcitos, tambÈm n„o custa transformar aquela prova de meio fundo ‡ beira mar numa maratona sobre o asfalto... A maratona È o mais nobre das provas, menos pelo peso histÛrico que pelo esforÁo exigido e aparente despojamento de tecnologia. … tambÈm das poucas provas em que os louros deviam ser irm„mente repartidos entre o primeiro classificado- pela vitÛria- e o ˙ltimo- pelo sacrifÌcio. Como tal partilha de mÈritos n„o pode ser institucionalizada, sob pena de corromper a corrida (ninguÈm quer ver um maratonista a correr para tr·s), um tÌtulo sem trofÈu, cuja atribuiÁ„o eternamente adiada vai percorrendo uma lista de corredores anÛnimos, simboliza o que a corrida tem de menos tangÌvel e de mais fascinante. No outro lado do espectro, a maratona È uma fonte inesgot·vel de herÛis e vilıes de estimaÁ„o- Carlos Lopes no asfalto de L.A. e o abomin·vel Castella atr·s dele, respectivamente ñ bem como uma fonte de inspiraÁ„o- a linha de chegada como motivaÁ„o e os 40 quilÛmetros para tr·s, como currÌculo. … claro que tudo isto s„o exercÌcios teÛricos. Nunca tentei uma maratona. Mas volto a insistir na minha paix„o pela corrida, que me fez rogar pragas ao grande Maradona por n„o ter sido outro o desporto que o consagraria. As manchetes que n„o daria:Maradona vence a maratona (simplÛrio), Mara(d/t)ona!!! (tÈcnico), Do mar de gente da maratona veio ‡ tona o Maradona (foleiro). Deve ser por tudo isto que ainda recordo o momento naquela corrida na praia em que me senti um maratonista. No percurso de volta, depois de ter deixado o etÌope para tr·s, durante umas dezenas de metros deixei de correr e comecei a planar; ou talvez voasse baixinho, como os p·ssaros. Juro que quase ouvi um Vangelis e que passei a ver tudo ao retardador, com destaque para as gotas que arrancava da baixa-mar e depois seguia com zoom, captando-lhes os reflexos e as subtis mudanÁas de forma. Juro que as poucas palmas dos banhistas eram um combustÌvel que alimentava os m˙sculos sem pedir licenÁa e que n„o reconhecia o corpo como meu. Foram sÛ umas dezenas de metros, mas valeu por todas as medalhas. Depois de cortar a meta e dos cinco minutos de glÛria, n„o demorei a recuperar todas as d˙vidas, mas voltei a sentir a embriaguez dos vitoriosos quando vi o etÌope ao longe, em contra-luz, curvado e de m„os nas coxas, ainda ofegante. Era um corpo esguio, que lentamente recuperava altivez. Quando passou por mim, felicitou-me com um ar grave.Naquela noite houve festa. Da janela do meu quarto conseguia ver quase toda a gente. O etÌope danÁava. RoÁava-se no corpo da professora de ioga e encharcava-se em ·lcool. Por momentos pensei tratar-se de outra pessoa. Mas era o mesmo, sÛ que alegre e descontraÌdo. Reparei tambÈm que tinha pneu e uma barriga que comeÁava a despontar. E receoso fui percebendo que o senegalÍs nunca tinha corrido na vida. Experimentara aquela corrida por capricho estival, nada mais. Foi com uma pesada frustraÁ„o que baixei a persiana. E È ainda alimentado pela mesma frustraÁ„o que agora me comprometo publicamente a tentar a inscriÁ„o na Maratona de Nova Iorque de 2004.Ivan
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A maratona (breve relato que inclui a ascens„o e queda de um etÌope) Quando vejo um maratonista a passar, pouco importando sem vem ‡ frente ou atr·s do pelot„o, lembro-me que passei ao lado de uma grande carreira. H· poucos elementos que ajudem a convencer os outros desta entranhada convicÁ„o. SÛ ganhei uma medalha e j· nem sei onde a guardo. Nem sequer era uma corrida a sÈrio, daquelas que atraem os atletas federados mas apesar do amadorismo dos meus advers·rios, veraneantes interessados em beber copos e nas curvas da nÛrdica que dava aulas de ioga, apesar de eu ser na altura um puto de 12 ou 13 anos, seco de carnes, a destoar do bando de trintıes barrigudos que se alinhavam, apesar de tudo, sempre era uma corrida internacional, para mais em terras de Espanha, raz„o suficiente para fazer de qualquer vitÛria tambÈm uma conquista. A corrida era de meio fundo, talvez uns 3 km, percurso de ida e volta: da linha de partida atÈ um comiss·rio que nos carimbava a m„o e dali atÈ ‡ linha de chegada, de onde partÌramos. Se conto este episÛdio, expondo o narcisismo a cÈu aberto, n„o È por julgar que no fim, muito depois de se cortar a meta, h· uma liÁ„o de moral ou um ensinamento. Na corrida n„o entravam lebres nem tartarugas. Mas havia um senegalÍs. E da mesma forma que n„o era preciso pedir muito da imaginaÁ„o para ver no africano do Senegal um temÌvel etÌope, leve, aerodin‚mico e cheio de eritrÛcitos, tambÈm n„o custa transformar aquela prova de meio fundo ‡ beira mar numa maratona sobre o asfalto... A maratona È o mais nobre das provas, menos pelo peso histÛrico que pelo esforÁo exigido e aparente despojamento de tecnologia. … tambÈm das poucas provas em que os louros deviam ser irm„mente repartidos entre o primeiro classificado- pela vitÛria- e o ˙ltimo- pelo sacrifÌcio. Como tal partilha de mÈritos n„o pode ser institucionalizada, sob pena de corromper a corrida (ninguÈm quer ver um maratonista a correr para tr·s), um tÌtulo sem trofÈu, cuja atribuiÁ„o eternamente adiada vai percorrendo uma lista de corredores anÛnimos, simboliza o que a corrida tem de menos tangÌvel e de mais fascinante. No outro lado do espectro, a maratona È uma fonte inesgot·vel de herÛis e vilıes de estimaÁ„o- Carlos Lopes no asfalto de L.A. e o abomin·vel Castella atr·s dele, respectivamente ñ bem como uma fonte de inspiraÁ„o- a linha de chegada como motivaÁ„o e os 40 quilÛmetros para tr·s, como currÌculo. … claro que tudo isto s„o exercÌcios teÛricos. Nunca tentei uma maratona. Mas volto a insistir na minha paix„o pela corrida, que me fez rogar pragas ao grande Maradona por n„o ter sido outro o desporto que o consagraria. As manchetes que n„o daria:Maradona vence a maratona (simplÛrio), Mara(d/t)ona!!! (tÈcnico), Do mar de gente da maratona veio ‡ tona o Maradona (foleiro). Deve ser por tudo isto que ainda recordo o momento naquela corrida na praia em que me senti um maratonista. No percurso de volta, depois de ter deixado o etÌope para tr·s, durante umas dezenas de metros deixei de correr e comecei a planar; ou talvez voasse baixinho, como os p·ssaros. Juro que quase ouvi um Vangelis e que passei a ver tudo ao retardador, com destaque para as gotas que arrancava da baixa-mar e depois seguia com zoom, captando-lhes os reflexos e as subtis mudanÁas de forma. Juro que as poucas palmas dos banhistas eram um combustÌvel que alimentava os m˙sculos sem pedir licenÁa e que n„o reconhecia o corpo como meu. Foram sÛ umas dezenas de metros, mas valeu por todas as medalhas. Depois de cortar a meta e dos cinco minutos de glÛria, n„o demorei a recuperar todas as d˙vidas, mas voltei a sentir a embriaguez dos vitoriosos quando vi o etÌope ao longe, em contra-luz, curvado e de m„os nas coxas, ainda ofegante. Era um corpo esguio, que lentamente recuperava altivez. Quando passou por mim, felicitou-me com um ar grave.Naquela noite houve festa. Da janela do meu quarto conseguia ver quase toda a gente. O etÌope danÁava. RoÁava-se no corpo da professora de ioga e encharcava-se em ·lcool. Por momentos pensei tratar-se de outra pessoa. Mas era o mesmo, sÛ que alegre e descontraÌdo. Reparei tambÈm que tinha pneu e uma barriga que comeÁava a despontar. E receoso fui percebendo que o senegalÍs nunca tinha corrido na vida. Experimentara aquela corrida por capricho estival, nada mais. Foi com uma pesada frustraÁ„o que baixei a persiana. E È ainda alimentado pela mesma frustraÁ„o que agora me comprometo publicamente a tentar a inscriÁ„o na Maratona de Nova Iorque de 2004.Ivan