Há poucos dias ouvimos o Dr. Almeida Santos, presidente da Assembleia da República, pronunciar-se contra a "super-normativização" da vida portuguesa, inócua e ineficaz, pois, como reconhece o Presidente da AR, há inúmeros diplomas aprovados que não chegam a entrar em vigor, há inúmeros outros diplomas legais que por diversas razões nunca chegaram a ser aplicados.No mesmo sentido falou recentemente o novo Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. António Pires de Lima.Nada há de mais correcto - e é de aplaudir esta preocupação dos responsáveis.O problema é que as declarações públicas não são seguidas de acções eficazes no terreno.Na mesma semana em que o Presidente da AR manifestava estas preocupações a mesma Assembleia da República publicava a Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, a qual, segundo o Diário da República desse dia "Aprova a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (altera a Lei nº 38/87, de 23.12)".Todavia essa mesma Lei nº 3/99 estabelece no seu artº 150º que é revogada a Lei nº 38/87...Alterar uma lei é produzir-lhe modificações e manter em vigor o conjunto de normas resultantes dessa modificação; revogar uma lei é fazê-la desaparecer do ordenamento jurídico; são realidades completamente distintas.Todavia a dita Lei nº 3/99 consegue alterar uma lei no princípio e revogá-la no fim...Não é que do ponto de vista interpretativo a lei tenha saído especialmente "chamuscada" por tal desatenção, é a própria desatenção que provoca preocupação, pois reflecte um certo posicionamento "nonchalant" sobre a legiferação, designadamente sobre a falta de um controle de qualidade da mesma.Na senda dessa orientação desatenta, a mesma Lei 3/99 faz uma alteração ao artº 462º do Código de Processo Civil, e uma segunda alteração ao mesmo Código, no artº 792º, indicando-se que as alterações ao artº 462º só poderão ser efectivas em determinadas condições; isto é: faz-se uma alteração a um artigo de um Código e remete-se parte da sua interpretação e aplicação para uma zona do mesmo Código deslocada 330 artigos para a frente, o que representa uma técnica legislativa perfeitamente desastrosa.Um Código está para uma lei avulsa vulgar como um palacete está para um apartamento de 3 assoalhadas; um Código é um grande edifício, acabado, coerente, com soluções integradas e cuidadosamente engendradas; a alteração de uma única norma de um Código pode ser devastadora em termos de compreensão geral da sua lógica, dadas as múltiplas remissões internas que tem; daí que seja natural esperar do legislador um cuidado acrescido quando altera Códigos.O que não aconteceu agora.São as leis feitas à pressa que originam prescrições inesperadas e alimentam querelas doutrinárias e jurisprudencias intermináveis, cativando o tempo e atenção dos profissionais de direito para questões processuais em desfavor da reflexão e aprofundamento das verdadeiras questões jurídicas de fundo, vulgo questões substantivas - e em última análise contribuindo em boa parte para a menor produtividade dos Tribunais, com os consequentes atrasos que muito contribuem para o descrédito do sistema jurídico.Mas o panorama adensa-se:O mesmo legislador parlamentar, desta feita por iniciativa social-democrata, está a preparar um projecto para a aceleração do processo judicial atrasado, visando a criação de mecanismos tendentes a acelerar a tramitação de alguns processos judiciais atrasados.Não vemos inconveniente em que se criem mecanismos visando conferir ao sistema judicial uma melhor capacidade de resposta, mas vemos com apreensão a criação de expedientes processuais que indiciam que os políticos portugueses estão a chegar à conclusão de que não têm soluções para fazer face à crise da justiça, mas querem manter uma forma de "alguns processos" (aqueles que contendem com interesses mais poderosos) sejam rapidamente resolvidos, deixando para trás todos os outros; contemporiza-se com o estado desastroso da justiça, salvaguardando os casos que mais interessam aos sectores poderosos.Nessa perspectiva, o caso do Banco, da seguradora ou de qualquer grande empresa será sempre muito mais importante do que o da velhota à espera da pensão de sobrevivência ou a do sinistrado em acidente de viação à espera da indemnização.Somos todos iguais, claro (está na Constituição), mas tudo indica que uns são mais iguais do que outros... daqui até se começar a falar no "direito à indignação", vai um passo.Em vez de se criarem expedientes processuais seria mais lógico e mais aceitável que se criassem as condições para que os atrasos dos processos deixassem de existir, o que passa por uma reflexão conjunta de todos os intervenientes do mundo do direito, pela criação de um clima de diálogo e de pacificação e pela criação de um projecto comum, realista, mobilizador de vontades, com visão estratégica.Não passa certamente pela feitura de leis descuidadas e pela atitude de "posso-quero-e-mando" que o legislador e a administração, ainda muito influenciados pelo pensamento napoleónico, frequentemente adoptam.Nem passa decerto pela desconfiança sistemática dos políticos pelas magistraturas, pendendo mais para as posições desta ou daquela, consoante a conveniência política de momento, ou pelas recriminações destes entre si e relativamente aos legisladores.Políticos, Juízes, Magistrados do Ministério Público, Advogados e todos os outros intervenientes do mundo do Direito têm de compreender que estão "condenados a entenderem-se", por mais desconfianças que entre eles se tenham instalado, por mais acusações mútuas, justificadas ou não, que uns tenham contra os outros, por mais discordâncias que existam entre eles.Essa "condenação" é ditada pelas condições sociais objectivas em que vivemos, que demonstram que só projectos assumidamente comuns de todos os interessados podem vingar e produzir os resultados desejados.Uma nota final: o projecto de "aceleração processual" acima referido vem do PSD, partido que acaba de celebrar com o PP uma coligação eleitoral; nos Princípios Constitutivos da Alternativa Democrática (ponto 6 da declaração) faz-se uma acerba crítica ao estado da Justiça, aliás certeira, mas de alguma forma, injusta: é que se a gestão socialista da Justiça tem deixado muito a desejar, a gestão feita pelo mesmo PSD durante 10 anos foi tão medíocre como a actual, se excluirmos duas ou três iniciativas do Dr. Fernando Nogueira, daí que uma crítica como a que AD faz do estado actual da Justiça seja também, e principalmente, uma profunda auto-crítica.Embora não pareça, os cidadãos têm memória.
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Há poucos dias ouvimos o Dr. Almeida Santos, presidente da Assembleia da República, pronunciar-se contra a "super-normativização" da vida portuguesa, inócua e ineficaz, pois, como reconhece o Presidente da AR, há inúmeros diplomas aprovados que não chegam a entrar em vigor, há inúmeros outros diplomas legais que por diversas razões nunca chegaram a ser aplicados.No mesmo sentido falou recentemente o novo Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. António Pires de Lima.Nada há de mais correcto - e é de aplaudir esta preocupação dos responsáveis.O problema é que as declarações públicas não são seguidas de acções eficazes no terreno.Na mesma semana em que o Presidente da AR manifestava estas preocupações a mesma Assembleia da República publicava a Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, a qual, segundo o Diário da República desse dia "Aprova a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (altera a Lei nº 38/87, de 23.12)".Todavia essa mesma Lei nº 3/99 estabelece no seu artº 150º que é revogada a Lei nº 38/87...Alterar uma lei é produzir-lhe modificações e manter em vigor o conjunto de normas resultantes dessa modificação; revogar uma lei é fazê-la desaparecer do ordenamento jurídico; são realidades completamente distintas.Todavia a dita Lei nº 3/99 consegue alterar uma lei no princípio e revogá-la no fim...Não é que do ponto de vista interpretativo a lei tenha saído especialmente "chamuscada" por tal desatenção, é a própria desatenção que provoca preocupação, pois reflecte um certo posicionamento "nonchalant" sobre a legiferação, designadamente sobre a falta de um controle de qualidade da mesma.Na senda dessa orientação desatenta, a mesma Lei 3/99 faz uma alteração ao artº 462º do Código de Processo Civil, e uma segunda alteração ao mesmo Código, no artº 792º, indicando-se que as alterações ao artº 462º só poderão ser efectivas em determinadas condições; isto é: faz-se uma alteração a um artigo de um Código e remete-se parte da sua interpretação e aplicação para uma zona do mesmo Código deslocada 330 artigos para a frente, o que representa uma técnica legislativa perfeitamente desastrosa.Um Código está para uma lei avulsa vulgar como um palacete está para um apartamento de 3 assoalhadas; um Código é um grande edifício, acabado, coerente, com soluções integradas e cuidadosamente engendradas; a alteração de uma única norma de um Código pode ser devastadora em termos de compreensão geral da sua lógica, dadas as múltiplas remissões internas que tem; daí que seja natural esperar do legislador um cuidado acrescido quando altera Códigos.O que não aconteceu agora.São as leis feitas à pressa que originam prescrições inesperadas e alimentam querelas doutrinárias e jurisprudencias intermináveis, cativando o tempo e atenção dos profissionais de direito para questões processuais em desfavor da reflexão e aprofundamento das verdadeiras questões jurídicas de fundo, vulgo questões substantivas - e em última análise contribuindo em boa parte para a menor produtividade dos Tribunais, com os consequentes atrasos que muito contribuem para o descrédito do sistema jurídico.Mas o panorama adensa-se:O mesmo legislador parlamentar, desta feita por iniciativa social-democrata, está a preparar um projecto para a aceleração do processo judicial atrasado, visando a criação de mecanismos tendentes a acelerar a tramitação de alguns processos judiciais atrasados.Não vemos inconveniente em que se criem mecanismos visando conferir ao sistema judicial uma melhor capacidade de resposta, mas vemos com apreensão a criação de expedientes processuais que indiciam que os políticos portugueses estão a chegar à conclusão de que não têm soluções para fazer face à crise da justiça, mas querem manter uma forma de "alguns processos" (aqueles que contendem com interesses mais poderosos) sejam rapidamente resolvidos, deixando para trás todos os outros; contemporiza-se com o estado desastroso da justiça, salvaguardando os casos que mais interessam aos sectores poderosos.Nessa perspectiva, o caso do Banco, da seguradora ou de qualquer grande empresa será sempre muito mais importante do que o da velhota à espera da pensão de sobrevivência ou a do sinistrado em acidente de viação à espera da indemnização.Somos todos iguais, claro (está na Constituição), mas tudo indica que uns são mais iguais do que outros... daqui até se começar a falar no "direito à indignação", vai um passo.Em vez de se criarem expedientes processuais seria mais lógico e mais aceitável que se criassem as condições para que os atrasos dos processos deixassem de existir, o que passa por uma reflexão conjunta de todos os intervenientes do mundo do direito, pela criação de um clima de diálogo e de pacificação e pela criação de um projecto comum, realista, mobilizador de vontades, com visão estratégica.Não passa certamente pela feitura de leis descuidadas e pela atitude de "posso-quero-e-mando" que o legislador e a administração, ainda muito influenciados pelo pensamento napoleónico, frequentemente adoptam.Nem passa decerto pela desconfiança sistemática dos políticos pelas magistraturas, pendendo mais para as posições desta ou daquela, consoante a conveniência política de momento, ou pelas recriminações destes entre si e relativamente aos legisladores.Políticos, Juízes, Magistrados do Ministério Público, Advogados e todos os outros intervenientes do mundo do Direito têm de compreender que estão "condenados a entenderem-se", por mais desconfianças que entre eles se tenham instalado, por mais acusações mútuas, justificadas ou não, que uns tenham contra os outros, por mais discordâncias que existam entre eles.Essa "condenação" é ditada pelas condições sociais objectivas em que vivemos, que demonstram que só projectos assumidamente comuns de todos os interessados podem vingar e produzir os resultados desejados.Uma nota final: o projecto de "aceleração processual" acima referido vem do PSD, partido que acaba de celebrar com o PP uma coligação eleitoral; nos Princípios Constitutivos da Alternativa Democrática (ponto 6 da declaração) faz-se uma acerba crítica ao estado da Justiça, aliás certeira, mas de alguma forma, injusta: é que se a gestão socialista da Justiça tem deixado muito a desejar, a gestão feita pelo mesmo PSD durante 10 anos foi tão medíocre como a actual, se excluirmos duas ou três iniciativas do Dr. Fernando Nogueira, daí que uma crítica como a que AD faz do estado actual da Justiça seja também, e principalmente, uma profunda auto-crítica.Embora não pareça, os cidadãos têm memória.