O CACIMBO: Coisas de boa sorte

08-07-2009
marcar artigo


Do lado de lá da câmara, o Bairro Alto, um pedaço de Lisboa, sempre menina, sempre moça tenha os anos que tiver. Uma loja que não sei o que vende, mas certamente quem lá entra não sai igual ou, então, só convida a entrar quem procura o que é diferente ou variável. Do lado de cá, o interior de uma lugar fundado precisamente na sequência da revolução portuguesa que colocaria fim a anos e anos de combate à desigualdade e à ausência daquele ideal de cuja posse a humanidade não prescinde – a Liberdade.Pois foi pelas mãos e pela vontade de dois bons corações, sendo um deles, um dos homens de Abril, que tivemos o privilégio de visitar pela primeira vez a A25. Um espaço sóbrio, mas atraente que oferece conforto e bem-estar no minimalismo da decoração. O soalho a ressoar a tempo, os móveis de linhas simples e direitas, as várias pinturas e fotografias inspiradas pelos acontecimentos de Abril de 74, postadas nas paredes alvas.O almoço foi divertido, aconchegante, entremeado de crónicas da vida real, salpicado de risotas e escarninhos, regado com vinho tinto e completado com sobremesas de adoçar azedas e fruta ácida de cortar açúcar a mais no sangue. Com os sentidos baralhados e a noção do passar do tempo para lá da linha do Equador, não percebemos que o almoço se esparralhara para fora das horas e fomos, delicadamente, convidados a ir pregar para outra freguesia.À saída parámos para espreitar os livros, fotografar os cravos e recebermos das mãos dos nossos amigos e anfitriões, gente rara que sente a valer o enorme prazer da dádiva, uma fotobiografia de Salgueiro Maia.Foi assim que, num dia de quase Primavera à tardinha, descemos a Rua da Misericórdia, alegremente, gralhando, parando e rindo e fomos desembocar no Chiado onde, já estava sentado e à nossa espera o Fernando António. Sisudo, mas simpático, ali estava ele a dar autógrafos e a deixar-se fotografar por Lisboa inteira, pelos arredores e pelo resto do mundo. Desistimos do nosso encontro com o poeta que nos mandou passar por ali na semana seguinte, mas num dia útil para evitar enchentes e podermos conversar à vontade sobre a metafísica do não pensar em nada. Deixámo-lo, pois sabemos que, um homem de tal sensibilidade, quando se cansar de ser modelo apelará aos seus companheiros de espírito ou à pequena humanidade que fez nascer dentro de si. Um homem assim nunca estará só.Abalámos Garrett abaixo a espreitar as montras, a lamentar pontos e espaços que desapareceram, a percepcionar tanto silêncio e tanta gente naquela multiplicidade de gestos e de sons. Os passos, as asas, as vozes, as dores, os beijos, os abraços, os pestanejos, os motores, a música. No meio deste pulular das coisas invisíveis rasámos um cenário inédito. Uma rapariga acabara de estender em pleno passeio um pedaço de linóleo, daquele que imita tacos e faz lembrar o chão de algumas cozinhas de outros tempos. Mexia num saco e tinha a seu lado uma mala de cartão igual à que Linda de Suza transportava consigo quando emigrou para terras de França. Ficámos intrigados, pois era visível o contraste entre a vestimenta (saia de ganga, ténis, meias rendadas, cabelo preto, curto e meio esfarripado, tudo claramente dentro da moda actual) e a mala de cartão.Entretanto fomos interrompidos por uma vendedora ambulante de poemas caseiros e tive que, por momentos, fundamentar mais uma vez a Teoria da Bengala (pressuposto que assenta na capacidade mágica do cajado para evidenciar o carácter sedutor e atraente dos seres humanos).Foi assim que nos escapou o que estava a acontecer no camarim da Linda. Pois a rapariga tinha-se transformado em bailarina e estava neste momento a dançar o tango com um rapaz alto, moreno, de rosto mimado e olhar azul. Ela escondera o cabelo preto dentro de uma peruca loira, pusera um vestido e calçara sapatos de salto e atacadores. A mala de cartão era multifunções. Para além de ser o camião articulado onde transportava o camarim, o cenário e a aparelhagem servia também de bilheteira.No final deixámos a sala deleitados com a música, com os passos e a simpatia dos bailarinos que, para além de graciosos na arte de dançar o tango, fizeram questão de agradecer as palmas. Ela com variadas piscadelas de olhos por entre as longas pestanas postiças e ele mostrando ao público a língua comprida e cor-de-rosa. Não nos esqueceremos desta Linda e seu partenaire.Foi uma tarde de brisa suave, de à-vontade, de afirmação da amizade. Momentos sadios com amigos alegres e afectuosos. Estimas que não encontramos nas montras porque não são negociáveis. São coisas de boa sorte, dádivas que viajam no cerne do vento quente que sopra do quadrante Norte.__________________Fotografias de VCamiller


Do lado de lá da câmara, o Bairro Alto, um pedaço de Lisboa, sempre menina, sempre moça tenha os anos que tiver. Uma loja que não sei o que vende, mas certamente quem lá entra não sai igual ou, então, só convida a entrar quem procura o que é diferente ou variável. Do lado de cá, o interior de uma lugar fundado precisamente na sequência da revolução portuguesa que colocaria fim a anos e anos de combate à desigualdade e à ausência daquele ideal de cuja posse a humanidade não prescinde – a Liberdade.Pois foi pelas mãos e pela vontade de dois bons corações, sendo um deles, um dos homens de Abril, que tivemos o privilégio de visitar pela primeira vez a A25. Um espaço sóbrio, mas atraente que oferece conforto e bem-estar no minimalismo da decoração. O soalho a ressoar a tempo, os móveis de linhas simples e direitas, as várias pinturas e fotografias inspiradas pelos acontecimentos de Abril de 74, postadas nas paredes alvas.O almoço foi divertido, aconchegante, entremeado de crónicas da vida real, salpicado de risotas e escarninhos, regado com vinho tinto e completado com sobremesas de adoçar azedas e fruta ácida de cortar açúcar a mais no sangue. Com os sentidos baralhados e a noção do passar do tempo para lá da linha do Equador, não percebemos que o almoço se esparralhara para fora das horas e fomos, delicadamente, convidados a ir pregar para outra freguesia.À saída parámos para espreitar os livros, fotografar os cravos e recebermos das mãos dos nossos amigos e anfitriões, gente rara que sente a valer o enorme prazer da dádiva, uma fotobiografia de Salgueiro Maia.Foi assim que, num dia de quase Primavera à tardinha, descemos a Rua da Misericórdia, alegremente, gralhando, parando e rindo e fomos desembocar no Chiado onde, já estava sentado e à nossa espera o Fernando António. Sisudo, mas simpático, ali estava ele a dar autógrafos e a deixar-se fotografar por Lisboa inteira, pelos arredores e pelo resto do mundo. Desistimos do nosso encontro com o poeta que nos mandou passar por ali na semana seguinte, mas num dia útil para evitar enchentes e podermos conversar à vontade sobre a metafísica do não pensar em nada. Deixámo-lo, pois sabemos que, um homem de tal sensibilidade, quando se cansar de ser modelo apelará aos seus companheiros de espírito ou à pequena humanidade que fez nascer dentro de si. Um homem assim nunca estará só.Abalámos Garrett abaixo a espreitar as montras, a lamentar pontos e espaços que desapareceram, a percepcionar tanto silêncio e tanta gente naquela multiplicidade de gestos e de sons. Os passos, as asas, as vozes, as dores, os beijos, os abraços, os pestanejos, os motores, a música. No meio deste pulular das coisas invisíveis rasámos um cenário inédito. Uma rapariga acabara de estender em pleno passeio um pedaço de linóleo, daquele que imita tacos e faz lembrar o chão de algumas cozinhas de outros tempos. Mexia num saco e tinha a seu lado uma mala de cartão igual à que Linda de Suza transportava consigo quando emigrou para terras de França. Ficámos intrigados, pois era visível o contraste entre a vestimenta (saia de ganga, ténis, meias rendadas, cabelo preto, curto e meio esfarripado, tudo claramente dentro da moda actual) e a mala de cartão.Entretanto fomos interrompidos por uma vendedora ambulante de poemas caseiros e tive que, por momentos, fundamentar mais uma vez a Teoria da Bengala (pressuposto que assenta na capacidade mágica do cajado para evidenciar o carácter sedutor e atraente dos seres humanos).Foi assim que nos escapou o que estava a acontecer no camarim da Linda. Pois a rapariga tinha-se transformado em bailarina e estava neste momento a dançar o tango com um rapaz alto, moreno, de rosto mimado e olhar azul. Ela escondera o cabelo preto dentro de uma peruca loira, pusera um vestido e calçara sapatos de salto e atacadores. A mala de cartão era multifunções. Para além de ser o camião articulado onde transportava o camarim, o cenário e a aparelhagem servia também de bilheteira.No final deixámos a sala deleitados com a música, com os passos e a simpatia dos bailarinos que, para além de graciosos na arte de dançar o tango, fizeram questão de agradecer as palmas. Ela com variadas piscadelas de olhos por entre as longas pestanas postiças e ele mostrando ao público a língua comprida e cor-de-rosa. Não nos esqueceremos desta Linda e seu partenaire.Foi uma tarde de brisa suave, de à-vontade, de afirmação da amizade. Momentos sadios com amigos alegres e afectuosos. Estimas que não encontramos nas montras porque não são negociáveis. São coisas de boa sorte, dádivas que viajam no cerne do vento quente que sopra do quadrante Norte.__________________Fotografias de VCamiller

marcar artigo