O CACIMBO: OS PUTOS DO MEU BAIRRO

08-07-2009
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O Pinguinhas da Junqueira E O balde de água com sabão O Pinguinhas era raiano. Nado e criado na fronteira do Calvário com Alcântara, cedo revelou vocação para sobreviver contra ventos e marés, à bolina, contrabandeando tempestades e bonanças. Filho de uma varina que às cinco da manhã comprava peixe aos pescadores da Cruz Quebrada, e calcorreava de canastra à cabeça o bairro da Junqueira apregoando: “Peiiixxxe freeeessco... há robaaaalllinhos e taaaííínhaaaas... ó linda, ó senhora, compre que está fresquinho” – ainda no ventre materno aprendeu a ganhar a vida dos pobres. Pois. Que a vida dos pobres é um mistério! Tanto maior quanto mais o desconhecemos; e, tão grande, que ninguém sabia o nome que lhe puseram na cédula pessoal, nem ele disso precisava. Era o Pinguinhas, desde que a mãe o começou a deixar na tasca do tio Adolfo, que aliciava os fregueses com o letreiro sobre a porta: “Lá fora chove, cá dentro só pinga”. E pingava mesmo: não só para os copos e cálices, como em cima do Pinguinhas, deitado na canastra em que a mãe o deixava, sob o velho balcão de madeira que mais parecia um passador do que outra coisa. E cada vez que o tio Adolfo enchia demasiado os copos, lá sobrava o derrame para o Pinguinhas. Aos sete anos iniciou-se nas artes da sobrevivência, surripiando da despensa do tio pevides que vendia, embrulhadas em papel de jornal, nas paragens do amarelo da carris, aos passageiros à espera de transporte. E quando os tios notavam a falta, não se desmanchava: - Ainda ontem vi um rato a saltar do saco das pevides... - Pois, pois, parece-me que este ratito só tem dois pés, e se o apanho na despensa dou-lhe uma vassourada – era ameaça que não o intimidava. No recreio da escola também angariava uns tostões jogando ao pião e ao berlinde com o desafio irrecusável: - Só jogo com os mais velhos. Mas por cada ano que tiverem a mais do que eu, se perderem, dão-me um tostão. Isto até completar a quarta classe, que depois passou a ajudar a mãe nas vendas, transportando um cabaz de peixe na mão, por não conseguir equilibrar a canastra com o seu passo gingão. Ou acompanhando-a nas visitas ao sanatório onde o pai morreu em pouco tempo. Até ao dia em que a viu debruçada à janela. Era a tal menina, que já avistara a caminho do Liceu, filha de uma das freguesas de sua mãe. E se bem a viu, melhor sentiu o coração aos saltos e decidiu: - Tenho de lhe dar um beijinho em cada sardita que ela deve gostar de mimitos. A partir desse dia, passava horas de plantão na rua olhando para a janela, sem resultado. Para passar o tempo feito de ansiosa espera, jogava o pião no passeio, atirando-o primeiro contra a parede, apanhando-o depois na palma da mão até o deixar rodopiar no chão, com truques de malabarista. A menina aparecia de vez em quando, observava-o divertida e sorria... mas não descia. Pinguinhas não desistia, que isso era coisa que não sabia nem queria aprender. Tamanha insistência, porém, acabou por chamar a atenção de três rapazes, vizinhos da menina que, certa tarde, se aproximaram com ar de poucos amigos. Pinguinhas mediu os calmeirões e, como se nada fosse consigo, apressou-se a atravessar a rua entre as buzinadelas dos automóveis, sem deixar que o seguissem. Tinha audácia mas não era temerário. Além disso, utilizava as armas de que dispunha, conforme as circunstâncias. Passados alguns dias, verteu a água da selha em que tomava banho para um balde e voltou à Junqueira. Desta vez sem o pião. Batendo palmas debaixo da janela fechada. Até aparecem os três galfarros correndo atrás dele. De balde na mão, cheio de água com sabão, Pinguinhas iniciou a retirada. Quando julgaram estar prestes a alcançá-lo, Pinguinhas exclamou: - Sabem patinar? Patinem, ou aprendam! E entornou o balde, parando a gozar o espectáculo, e rindo-se a bandeiras despregadas ao ver os três rivais estatelados no chão. Álvaro Fernandes


O Pinguinhas da Junqueira E O balde de água com sabão O Pinguinhas era raiano. Nado e criado na fronteira do Calvário com Alcântara, cedo revelou vocação para sobreviver contra ventos e marés, à bolina, contrabandeando tempestades e bonanças. Filho de uma varina que às cinco da manhã comprava peixe aos pescadores da Cruz Quebrada, e calcorreava de canastra à cabeça o bairro da Junqueira apregoando: “Peiiixxxe freeeessco... há robaaaalllinhos e taaaííínhaaaas... ó linda, ó senhora, compre que está fresquinho” – ainda no ventre materno aprendeu a ganhar a vida dos pobres. Pois. Que a vida dos pobres é um mistério! Tanto maior quanto mais o desconhecemos; e, tão grande, que ninguém sabia o nome que lhe puseram na cédula pessoal, nem ele disso precisava. Era o Pinguinhas, desde que a mãe o começou a deixar na tasca do tio Adolfo, que aliciava os fregueses com o letreiro sobre a porta: “Lá fora chove, cá dentro só pinga”. E pingava mesmo: não só para os copos e cálices, como em cima do Pinguinhas, deitado na canastra em que a mãe o deixava, sob o velho balcão de madeira que mais parecia um passador do que outra coisa. E cada vez que o tio Adolfo enchia demasiado os copos, lá sobrava o derrame para o Pinguinhas. Aos sete anos iniciou-se nas artes da sobrevivência, surripiando da despensa do tio pevides que vendia, embrulhadas em papel de jornal, nas paragens do amarelo da carris, aos passageiros à espera de transporte. E quando os tios notavam a falta, não se desmanchava: - Ainda ontem vi um rato a saltar do saco das pevides... - Pois, pois, parece-me que este ratito só tem dois pés, e se o apanho na despensa dou-lhe uma vassourada – era ameaça que não o intimidava. No recreio da escola também angariava uns tostões jogando ao pião e ao berlinde com o desafio irrecusável: - Só jogo com os mais velhos. Mas por cada ano que tiverem a mais do que eu, se perderem, dão-me um tostão. Isto até completar a quarta classe, que depois passou a ajudar a mãe nas vendas, transportando um cabaz de peixe na mão, por não conseguir equilibrar a canastra com o seu passo gingão. Ou acompanhando-a nas visitas ao sanatório onde o pai morreu em pouco tempo. Até ao dia em que a viu debruçada à janela. Era a tal menina, que já avistara a caminho do Liceu, filha de uma das freguesas de sua mãe. E se bem a viu, melhor sentiu o coração aos saltos e decidiu: - Tenho de lhe dar um beijinho em cada sardita que ela deve gostar de mimitos. A partir desse dia, passava horas de plantão na rua olhando para a janela, sem resultado. Para passar o tempo feito de ansiosa espera, jogava o pião no passeio, atirando-o primeiro contra a parede, apanhando-o depois na palma da mão até o deixar rodopiar no chão, com truques de malabarista. A menina aparecia de vez em quando, observava-o divertida e sorria... mas não descia. Pinguinhas não desistia, que isso era coisa que não sabia nem queria aprender. Tamanha insistência, porém, acabou por chamar a atenção de três rapazes, vizinhos da menina que, certa tarde, se aproximaram com ar de poucos amigos. Pinguinhas mediu os calmeirões e, como se nada fosse consigo, apressou-se a atravessar a rua entre as buzinadelas dos automóveis, sem deixar que o seguissem. Tinha audácia mas não era temerário. Além disso, utilizava as armas de que dispunha, conforme as circunstâncias. Passados alguns dias, verteu a água da selha em que tomava banho para um balde e voltou à Junqueira. Desta vez sem o pião. Batendo palmas debaixo da janela fechada. Até aparecem os três galfarros correndo atrás dele. De balde na mão, cheio de água com sabão, Pinguinhas iniciou a retirada. Quando julgaram estar prestes a alcançá-lo, Pinguinhas exclamou: - Sabem patinar? Patinem, ou aprendam! E entornou o balde, parando a gozar o espectáculo, e rindo-se a bandeiras despregadas ao ver os três rivais estatelados no chão. Álvaro Fernandes

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