Açores 2010: O sótão, a cave e os lugares da memória

29-09-2009
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Escutando o sótão em “The Birds” de Alfred HitchcockO sótão de “Sweeney Todd” de Tim BurtonHá locais que facilmente podemos associar à memória. Nas casas, falo no arquétipo da casa e não no apartamento, os sótãos e as caves são um arquivo das lembranças familiares. É no sótão ou na cave que, por entre recantos e recessos, se arrumam velhos móveis, antigas fotografias e todo o tipo de utensílios com muito gasto ou pouco uso.No imaginário cinematográfico estes são espaços envoltos numa qualquer penumbra de pouca mas expressiva luz, guardando objectos, histórias e segredos esquecidos. Alguns são verdadeiros labirintos, como as caves de Metrópolis (de Fritz Lang), outros são espaços mais contidos, como os sótãos de Tim Burton, mas são sempre locais de maior densidade onde com fascínio ou receio, ainda que ocasionalmente, nos demoramos por mais tempo.Na casa, a clausura e o afastamento da rotina diária aparta-os do quotidiano e transforma-os em lugares à margem de um uso corrente. São depósitos de algo que se exclui do dia-a-dia e se remete para uma posição secundária, escondida no esconso da cobertura ou debaixo do pavimento. São espaços que aguardam na periferia do quotidiano, mas que retêm a nossa memória e talvez por isso, regressando ao imaginário cinematográfico, são os locais de eleição da redescoberta.É igualmente curiosa a forma como deles nos aproximamos, pois o acesso pelo alçapão ou pela íngreme e estreita escada convida a um contacto individual. Embora conhecendo o que está do outro lado, é ao percorrer sozinho a escada do sótão ou da cave que estas se tornam numa passagem para um mundo mágico. É nesse lugar que a penumbra, ao esbater o contorno e a posição das coisas afasta a mensurabilidade do olhar e exalta a imaginação, e é aí que se desenha a necessária complementaridade à cada vez mais luminosa higienização dos restantes compartimentos.Quando Le Corbusier, no início do século passado, introduziu o terraço jardim e elevou a construção do solo (através dos pilotis), reinventou-se o espaço à luz da eficácia e da salubridade do projecto moderno, mas suprimiu-se os lugares de memória e mistério que desde sempre existiram. A ambição moderna pela clareza mecânica homogeneizou a luz e retirou espessura à sombra e por vezes, tratando a luz mais em quantidade do que em qualidade, uniformizou a sua intensidade, mas também o próprio espaço.A casa de hoje tende a ser, cada vez mais, uma engrenagem de eficiências, mas isso não implica que a continuemos a olhar apenas como uma máquina de habitar de ambiente liofilizado. Um desafio estimulante e necessário continua assim a ser o da reinvenção destes espaços, menos óbvios, mas mais expressivos.Agora, na época do ritmo veloz e das coisas descartáveis, o tempo dos objectos é outro, e mudando o uso ou a durabilidade, muda-se a relação que com eles se estabelece. Já não se guarda o antigo porque este é mais caro de recuperar que a compra do novo e, da mesma maneira que muita roupa já não dura uma vida mas sim uma estação, os objectos afastam-se cada vez mais cedo. Então o acto de guardar pode ter hoje outro sentido, pois se o que se guarda se transforma, também a necessidade e a maneira de o fazer se altera.Alterar a maneira como se guarda implica repensar o local onde isso ocorre e, se a reinvenção do espaço doméstico pede hoje essa transformação, continua a ser importante garantir lugares de memória e suspense, ou talvez de reencontro, que evitem deslocar a casa para uma lógica meramente funcional.Se a casa evolui para uma maior clareza e operatividade face às necessidades da vida actual, o que importa não é teimosamente continuar a propor caves e sótãos vazios, mas sim perceber a capacidade de romance que estes e outros locais detêm, e elege-los também como matéria de trabalho. O que importa é talvez, face à pouca densidade de muitos ambientes, continuar a desenhar pequenos esconderijos da imaginação e da memória, hipóteses menos obvias, imediatas ou previsíveis, que cumprindo à mesma os requisitos do seu tempo, sejam capazes de tornar o espaço aliciante e humanizado.Seja sob o formato de caves ou sótãos, refúgios ou esconderijos, passagens ocultas ou caminhos elaborados, o que a casa de hoje carece é de algum romance e fantasia, sonhos próprios de um espaço menos utilitário mas muito mais útil.SFR..Publicado_Açoriano Oriental_2009.01.18


Escutando o sótão em “The Birds” de Alfred HitchcockO sótão de “Sweeney Todd” de Tim BurtonHá locais que facilmente podemos associar à memória. Nas casas, falo no arquétipo da casa e não no apartamento, os sótãos e as caves são um arquivo das lembranças familiares. É no sótão ou na cave que, por entre recantos e recessos, se arrumam velhos móveis, antigas fotografias e todo o tipo de utensílios com muito gasto ou pouco uso.No imaginário cinematográfico estes são espaços envoltos numa qualquer penumbra de pouca mas expressiva luz, guardando objectos, histórias e segredos esquecidos. Alguns são verdadeiros labirintos, como as caves de Metrópolis (de Fritz Lang), outros são espaços mais contidos, como os sótãos de Tim Burton, mas são sempre locais de maior densidade onde com fascínio ou receio, ainda que ocasionalmente, nos demoramos por mais tempo.Na casa, a clausura e o afastamento da rotina diária aparta-os do quotidiano e transforma-os em lugares à margem de um uso corrente. São depósitos de algo que se exclui do dia-a-dia e se remete para uma posição secundária, escondida no esconso da cobertura ou debaixo do pavimento. São espaços que aguardam na periferia do quotidiano, mas que retêm a nossa memória e talvez por isso, regressando ao imaginário cinematográfico, são os locais de eleição da redescoberta.É igualmente curiosa a forma como deles nos aproximamos, pois o acesso pelo alçapão ou pela íngreme e estreita escada convida a um contacto individual. Embora conhecendo o que está do outro lado, é ao percorrer sozinho a escada do sótão ou da cave que estas se tornam numa passagem para um mundo mágico. É nesse lugar que a penumbra, ao esbater o contorno e a posição das coisas afasta a mensurabilidade do olhar e exalta a imaginação, e é aí que se desenha a necessária complementaridade à cada vez mais luminosa higienização dos restantes compartimentos.Quando Le Corbusier, no início do século passado, introduziu o terraço jardim e elevou a construção do solo (através dos pilotis), reinventou-se o espaço à luz da eficácia e da salubridade do projecto moderno, mas suprimiu-se os lugares de memória e mistério que desde sempre existiram. A ambição moderna pela clareza mecânica homogeneizou a luz e retirou espessura à sombra e por vezes, tratando a luz mais em quantidade do que em qualidade, uniformizou a sua intensidade, mas também o próprio espaço.A casa de hoje tende a ser, cada vez mais, uma engrenagem de eficiências, mas isso não implica que a continuemos a olhar apenas como uma máquina de habitar de ambiente liofilizado. Um desafio estimulante e necessário continua assim a ser o da reinvenção destes espaços, menos óbvios, mas mais expressivos.Agora, na época do ritmo veloz e das coisas descartáveis, o tempo dos objectos é outro, e mudando o uso ou a durabilidade, muda-se a relação que com eles se estabelece. Já não se guarda o antigo porque este é mais caro de recuperar que a compra do novo e, da mesma maneira que muita roupa já não dura uma vida mas sim uma estação, os objectos afastam-se cada vez mais cedo. Então o acto de guardar pode ter hoje outro sentido, pois se o que se guarda se transforma, também a necessidade e a maneira de o fazer se altera.Alterar a maneira como se guarda implica repensar o local onde isso ocorre e, se a reinvenção do espaço doméstico pede hoje essa transformação, continua a ser importante garantir lugares de memória e suspense, ou talvez de reencontro, que evitem deslocar a casa para uma lógica meramente funcional.Se a casa evolui para uma maior clareza e operatividade face às necessidades da vida actual, o que importa não é teimosamente continuar a propor caves e sótãos vazios, mas sim perceber a capacidade de romance que estes e outros locais detêm, e elege-los também como matéria de trabalho. O que importa é talvez, face à pouca densidade de muitos ambientes, continuar a desenhar pequenos esconderijos da imaginação e da memória, hipóteses menos obvias, imediatas ou previsíveis, que cumprindo à mesma os requisitos do seu tempo, sejam capazes de tornar o espaço aliciante e humanizado.Seja sob o formato de caves ou sótãos, refúgios ou esconderijos, passagens ocultas ou caminhos elaborados, o que a casa de hoje carece é de algum romance e fantasia, sonhos próprios de um espaço menos utilitário mas muito mais útil.SFR..Publicado_Açoriano Oriental_2009.01.18

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