Açores 2010: Tren de Sombras

20-05-2009
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Há experiências cinematográficas inesquecíveis. Ontem, na sala 1 do Solmar, teve lugar uma delas.“Tren de Sombras” é um filme sobre o cinema. Começos, evolução, materiais, técnicas, motivos, planos e carga simbólica da representação conjugam-se numa obra que se centra num espaço (a casa de campo da família Fleury) para reflectir sobre o papel do cineasta enquanto guardião de memórias, recriador de ambientes e combatente em nome do imperecível.Não é um filme fácil. Sem enredo, sem diálogos, sem final previsível, prometendo o desfilar ininterrupto de cenas que resistem à explicitação verbal, apanha o espectador numa teia de fios únicos que o obrigam a uma atenção constante sob pena de ceder à incomodidade da incompreensão, ao desagrado do reconhecimento da incapacidade interpretativa; um filme que agride a inércia da retina e da mente habituadas às regras do cinema comercial. Justificava-se uma apresentação prévia quer para os incautos quer para os amantes de desafios, na qual fossem levantados e nomeados alguns dos fios desta teia sublime, permitindo o acompanhamento activo do jogo mágico de luz e sombras que nos cativa.Cativos ficamos, primeiro, da simplicidade das imagens iniciais, inspiradas pela película de Gerard Fleury registando, a preto e branco, episódios do Verão familiar, ricas de vida na captação da infância, do movimento quente de uma natureza estival e humana jubilante. Cativos continuamos da segunda sequência de imagens, filmadas anos mais tarde, no espaço interior intacto, mas subtraído ao dinamismo orgânico dos primeiros anos. A casa representa a maturação da vida, ainda sumptuosa em flores (no papel de parede), em luz e brilho (no reflexo do pêndulo do relógio cujo tiquetaque pulsa no lugar que a fotografia reserva ao coração do dono da casa), em infância (cristalizada nos brinquedos), em sombras que nos mostram as paredes, os móveis e os objectos a sentir as alterações do tempo como personagens recolhidas nos resíduos do passado. Falta-lhe, porém, a música dos primeiros tempos, o movimento dos primeiros passos, a alegria dos primeiros anos. Apesar disso, o salto temporal acarreta ganhos: possibilita o recurso a outras técnicas de filmagem, os planos multiplicam-se, à luz natural soma-se a mecânica, provindo de faróis que pertencem a um exterior modificado, colorido, povoado de carros e máquinas, vibrante com sons estrepitantes de buzinas, sirenes, motores, em substituição das teclas e das cordas com que as primeiras imagens nos falam. Já no fim, cativos permanecemos com a demonstração do trabalho de registo, montagem e composição do filme, desconcertados quando nos apercebemos de que nem todas as imagens a preto e branco eram antigas para que a celebração do cinema acontecesse. E acontece.Acontece na articulação entre forma e conteúdo, entre produção técnica e recepção interpretativa. Acontece na fusão de duas objectivas separadas por anos que a mesma paixão juntou. Acontece na proliferação de modalidades insuspeitas do olhar, de que não está ausente a visão sentida do espaço filmado, feito sujeito e objecto da representação. Acontece na rememoração de imagens produzidas e reproduzidas (em espelhos, em laboratórios, em câmaras escuras) para desafiar a efemeridade e destacar o papel do cineasta como criador. Acontece no poder da linguagem não-verbal, que conta uma história de amor à vida, à arte da representação, sem palavras. Acontece na transfiguração do antigo em novo e do novo em antigo, do humano em fantasma, do fantasma em imortal.Uma nota final para expressar um lamento, mais do que uma reprovação: por entre o público presente, notaram-se ausências totalmente incompreensíveis.


Há experiências cinematográficas inesquecíveis. Ontem, na sala 1 do Solmar, teve lugar uma delas.“Tren de Sombras” é um filme sobre o cinema. Começos, evolução, materiais, técnicas, motivos, planos e carga simbólica da representação conjugam-se numa obra que se centra num espaço (a casa de campo da família Fleury) para reflectir sobre o papel do cineasta enquanto guardião de memórias, recriador de ambientes e combatente em nome do imperecível.Não é um filme fácil. Sem enredo, sem diálogos, sem final previsível, prometendo o desfilar ininterrupto de cenas que resistem à explicitação verbal, apanha o espectador numa teia de fios únicos que o obrigam a uma atenção constante sob pena de ceder à incomodidade da incompreensão, ao desagrado do reconhecimento da incapacidade interpretativa; um filme que agride a inércia da retina e da mente habituadas às regras do cinema comercial. Justificava-se uma apresentação prévia quer para os incautos quer para os amantes de desafios, na qual fossem levantados e nomeados alguns dos fios desta teia sublime, permitindo o acompanhamento activo do jogo mágico de luz e sombras que nos cativa.Cativos ficamos, primeiro, da simplicidade das imagens iniciais, inspiradas pela película de Gerard Fleury registando, a preto e branco, episódios do Verão familiar, ricas de vida na captação da infância, do movimento quente de uma natureza estival e humana jubilante. Cativos continuamos da segunda sequência de imagens, filmadas anos mais tarde, no espaço interior intacto, mas subtraído ao dinamismo orgânico dos primeiros anos. A casa representa a maturação da vida, ainda sumptuosa em flores (no papel de parede), em luz e brilho (no reflexo do pêndulo do relógio cujo tiquetaque pulsa no lugar que a fotografia reserva ao coração do dono da casa), em infância (cristalizada nos brinquedos), em sombras que nos mostram as paredes, os móveis e os objectos a sentir as alterações do tempo como personagens recolhidas nos resíduos do passado. Falta-lhe, porém, a música dos primeiros tempos, o movimento dos primeiros passos, a alegria dos primeiros anos. Apesar disso, o salto temporal acarreta ganhos: possibilita o recurso a outras técnicas de filmagem, os planos multiplicam-se, à luz natural soma-se a mecânica, provindo de faróis que pertencem a um exterior modificado, colorido, povoado de carros e máquinas, vibrante com sons estrepitantes de buzinas, sirenes, motores, em substituição das teclas e das cordas com que as primeiras imagens nos falam. Já no fim, cativos permanecemos com a demonstração do trabalho de registo, montagem e composição do filme, desconcertados quando nos apercebemos de que nem todas as imagens a preto e branco eram antigas para que a celebração do cinema acontecesse. E acontece.Acontece na articulação entre forma e conteúdo, entre produção técnica e recepção interpretativa. Acontece na fusão de duas objectivas separadas por anos que a mesma paixão juntou. Acontece na proliferação de modalidades insuspeitas do olhar, de que não está ausente a visão sentida do espaço filmado, feito sujeito e objecto da representação. Acontece na rememoração de imagens produzidas e reproduzidas (em espelhos, em laboratórios, em câmaras escuras) para desafiar a efemeridade e destacar o papel do cineasta como criador. Acontece no poder da linguagem não-verbal, que conta uma história de amor à vida, à arte da representação, sem palavras. Acontece na transfiguração do antigo em novo e do novo em antigo, do humano em fantasma, do fantasma em imortal.Uma nota final para expressar um lamento, mais do que uma reprovação: por entre o público presente, notaram-se ausências totalmente incompreensíveis.

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