O valor das ideias: Ronaldo e o combate virtuoso à crise: keynesianismo elementar

29-09-2009
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O nosso amigo Ricardo S. lançou-me ontem um desafio interessante, numa variante de um problema colocado no Sorumbático. Considera ele que os 93 milhões de Euros que o Real Madrid pagou ao M.U. por Cristiano Ronaldo têm o potencial de resolver a crise financeira internacional. Porque o Manchester usará o dinheiro para sanear dívidas e por sua vez comprar jogadores a outros clubes, que por sua vez farão o mesmo. Nasceria assim um círculo virtuoso que poderia permitir resolver os males do mundo. E, maldade suprema, pede-me a opinião / desafio como economista.Tudo bem. Antes de mais, para simplificar as contas vou presumir que o Ronaldo custou 100 em vez de 93 milhões. Não mudo grande coisa com isso, creio que se concordará. Há depois duas outras considerações: o que é bom para a Inglaterra e o que é bom para Espanha. Penso que o Ricardo está preocupado com a crise global e não se incomodará se eu assumir que o país é o mesmo e a moeda também. Por fim, e depois verei como isto alterava a análise, vou supor que não há impostos nestas operações. O pressuposto é absurdo, mas temos que ir por partes.-----------------------I) Grande parte do problema reside em saber se o Real Madrid tinha lá os 100 milhões e os descobriu de repente ou se eles vêm de algum lado. No exemplo do Sorumbático, o dinheiro aparece vindo do nada. E vou aceitar esse ponto de partida. O Real descobre enterrado no chão 100 milhões de euros que não existiam. Decide gastá-los integralmente comprando o Ronaldo ao Manchester. A partir daqui, vamos, seguindo a sugestão do Ricardo, admitir que cada clube, a começar no Manchester salda dívidas e compra jogadores. Para contas simples, cada clube afecta 80% do que recebe a comprar um jogador a outro (do mesmo país), e 20% a amortizar uma dívida. O problema fica mais sofisticado se pensarmos o que é feito a esses 20%, mas vamos supor que vão para reservas bancárias, e portanto saem do circuito. Depois alteramos isso. Ora, o Manchester vai então injectar por sua vez 80 milhões na economia ao comprar um jogador. O clube que vende ao Manchester vai gastar 64 milhões num craque que descobriu lá no país. E assim sucessivamente.Nestas condições simples, o efeito de um injecção de despesa na economia de 100 milhões vai ser superior a 100 milhões, como se deduz dos passos acima. Em termos simples é a isto que se chama o multiplicador, e foi um dos contributos de Keynes para a compreensão da economia. Mais, ele compreendeu que o multiplicador não era infinito (as parcelas acima estão a diminuir, 100, 80, 64, etc) por razões que advêm da intersecção da economia com a psicologia: as pessoas têm uma propensão a consumir mas têm também uma propensão a poupar. Qual o efeito final no produto? Nas condições descritas, se o RM injectar 100 milhões na economia, comprando um jogador com dinheiro que não existia antes, vai gerar um aumento do rendimento global do país-mundo em 500 milhões de euros [soma termos de uma progressão geométrica de razão 0,8].Numa resposta directa, o RM estaria de facto a contribuir para o aumento do rendimento, e num montante apreciável. O circuito é virtuoso, no sentido em que no final a economia mundial estará num patamar de rendimento superior ao que começou. E, se quiserem, em temos muito lineares, é esta a lógica de aumentar o investimento público. A diferença face ao paradoxo no Sorumbático, é que se assumia propensão a poupar nula. Os 100 eram sempre gastos. E aí, podia haver um efeito infinito. Mas não é realista. E os tais impostos? Essencialmente suponhamos que por cada transação o Estado cobrava ao clube que recebia o dinheiro 10%. Se o Estado não fizesse nada a essa receita fiscal, ela era uma simples fuga ao multiplicador. O efeito sobre o rendimento mundial dos 100 milhões gastos inicialmente pelo Real Madrid era de 357,... milhões de Euros. Aqui existem duas fugas: as reservas bancárias e os impostos).O problema que se levanta é que a crise é muito maior do que isto. Na verdade, o pacote de estímulos aprovado em Fevereiro pela Administração Obama é de cerca de 800 mil milhões de dólares e a crítica que foi feita por gente como o Paul Krugman é que o efeito que isso teria no produto, dado o produto americano estar muito abaixo do desejável, não era suficiente. Era preciso um pacote muito maior. Donde, por muito dinheiro que sejam 100 milhões de Euros, não chegariam para recuperar a economia mundial. O cículo virtuoso tem um fim.------------II) Adicionalmente, é evidente que o Real Madrid não encontrou a ilha do tesouro. Os 100 milhões podiam por exemplo estar no activo do Real em troca de vendas que ele próprio fez. Isto é, os 100 milhões já existiam. E neste caso, o efeito é nulo. No exemplo do Sorumbático um estranho deixa 100 euros no balcão do hotel. Esses 100 não existiam naquela comunidade. E isso corresponde ao caso acima. Mas, se os 100 fossem de alguém lá da terrinha, isso não tinha efeitos sobre o rendimento final, porque este já tinha em conta essa parcela. Para tornar mais claro, no exemplo acima, o clube que gasta 80 não altera o resultado final. Porque os 80 vêm dos 100. Alterava sim, se recebesse os 100 e decidisse gastar 80% mais 80 milhões que também tinha enterrados. Esta diferença é subtil, mas importante. Se eu gastar dinheiro que me foi pago não altero o PIB que se espera no final do ano. Da mesma forma que se um pai der ao filho 10 euros que ia gastar, e o filhos os gastar em rebuçados, não houve alteração por esta via, porque o dinheiro já existia. A novidade no pacote de estímulos está em colocar na economia americana 800 mil milhões de dólares que não existissem antes a circular.Isto serve ainda para explicar que os impostos cobrados, sobre transações de jogadores são parte dos tais 500 milhões que existiriam sem impostos. O Estado vai recolocá-los a circular. Mas o efeito sobre o efeito sobre o equilíbrio final é negligenciável se assumirmos que toda a gente poupa 20%.Agora, a situação continua ainda a ser irrealista. Porque dificilmente o Real Madrid tinha lá no seu activo 10o milhões parados. A situação seguinte é a mais realista de todas:------------III) O Real Madrid pediu emprestado ao banco 100 milhões de euros. Os bancos têm agora uma função na economia. Vão receber depósitos e conceder créditos. Admitamos que as regras bancárias eram tais que 10% de cada crédito tinha que estar salvaguardado por reservas. Isto porque os bancos comerciais não têm a todo o momento em caixa o dinheiro que lá foi depositado. Cumprem um mínimo legal e o resto é capacidade de concessão de crédito. Quer isto dizer que o banco pode por um artifício contabilístico emprestar 100 milhões de Euros. Se tiver reservas suficientes. O que faz é simplesmente lançar esse dinheiro a débito na conta do cliente e registar que ele o deve. Isto é uma ficção porque esses 100 milhões não correspondem a nada de concreto. Mas é uma ficção essencial para as economias funcionarem.Esses 100 milhões já estavam contudo também na capacidade de concessão de crédito da economia. O Banco comercial cedeu a dada altura liquidez aos bancos que lhes permitiu conceder crédito num montante muito maior. O Real Madrid ganhou de 100 milhões de Euros na sua conta. Que vai gastar conforme descrito em I). A diferença entre as duas situações é que agora o Real tem um activo, o Cristiano Ronaldo mas também um passivo: o que deve ao banco. O endividamento do Real Madrid aumentou. Em caso de incumprimento o clube pode ficar insolvente. Mas há uma diferença face à virtuosidade do investimento público. No caso do investimento público a conversa é muito diferente porque os Estados têm possibilidades de se financiarem muito mais diversificadas. Mas isso é debate de outro post.O rendimento mundial vai poder aumentar como no caso I, mas há uma dívida que o RM tem de pagar. Só que isso exigia saber se o Ronaldo vai vender camisolas e bilhetes suficientes para saldar a dívida. Admitindo que sim, correu tudo bem. Os méritos que o Ricado associa à solvabilidade das instituições financeiras depende claramente da liquidez que cada uma delas precisar. Recorde-se que em I) o primeiro banco recebia 20 milhões, o segundo 16 e por aí fora. A crise dos grandes bancos está bem acima destes montantes. Voltamos ao problema do Krugman: 100 milhões ajudam. Mas estão muito longe de chegar para recuperar a economia real. E, acrescento eu, para resolver os problemas dos activos tóxicos dos bancos nem se fala.Mérito contudo ao Real Madrid. Porque fez a sua parte ao resolver gastar dinheiro. Numa crise em que ninguém gasta, porque não tem, receios de deflação, etc, o normal é o Estado assumir o investimento público. À sua escala, o Real Madrid teve uma atitude que potencia a saída da crise.


O nosso amigo Ricardo S. lançou-me ontem um desafio interessante, numa variante de um problema colocado no Sorumbático. Considera ele que os 93 milhões de Euros que o Real Madrid pagou ao M.U. por Cristiano Ronaldo têm o potencial de resolver a crise financeira internacional. Porque o Manchester usará o dinheiro para sanear dívidas e por sua vez comprar jogadores a outros clubes, que por sua vez farão o mesmo. Nasceria assim um círculo virtuoso que poderia permitir resolver os males do mundo. E, maldade suprema, pede-me a opinião / desafio como economista.Tudo bem. Antes de mais, para simplificar as contas vou presumir que o Ronaldo custou 100 em vez de 93 milhões. Não mudo grande coisa com isso, creio que se concordará. Há depois duas outras considerações: o que é bom para a Inglaterra e o que é bom para Espanha. Penso que o Ricardo está preocupado com a crise global e não se incomodará se eu assumir que o país é o mesmo e a moeda também. Por fim, e depois verei como isto alterava a análise, vou supor que não há impostos nestas operações. O pressuposto é absurdo, mas temos que ir por partes.-----------------------I) Grande parte do problema reside em saber se o Real Madrid tinha lá os 100 milhões e os descobriu de repente ou se eles vêm de algum lado. No exemplo do Sorumbático, o dinheiro aparece vindo do nada. E vou aceitar esse ponto de partida. O Real descobre enterrado no chão 100 milhões de euros que não existiam. Decide gastá-los integralmente comprando o Ronaldo ao Manchester. A partir daqui, vamos, seguindo a sugestão do Ricardo, admitir que cada clube, a começar no Manchester salda dívidas e compra jogadores. Para contas simples, cada clube afecta 80% do que recebe a comprar um jogador a outro (do mesmo país), e 20% a amortizar uma dívida. O problema fica mais sofisticado se pensarmos o que é feito a esses 20%, mas vamos supor que vão para reservas bancárias, e portanto saem do circuito. Depois alteramos isso. Ora, o Manchester vai então injectar por sua vez 80 milhões na economia ao comprar um jogador. O clube que vende ao Manchester vai gastar 64 milhões num craque que descobriu lá no país. E assim sucessivamente.Nestas condições simples, o efeito de um injecção de despesa na economia de 100 milhões vai ser superior a 100 milhões, como se deduz dos passos acima. Em termos simples é a isto que se chama o multiplicador, e foi um dos contributos de Keynes para a compreensão da economia. Mais, ele compreendeu que o multiplicador não era infinito (as parcelas acima estão a diminuir, 100, 80, 64, etc) por razões que advêm da intersecção da economia com a psicologia: as pessoas têm uma propensão a consumir mas têm também uma propensão a poupar. Qual o efeito final no produto? Nas condições descritas, se o RM injectar 100 milhões na economia, comprando um jogador com dinheiro que não existia antes, vai gerar um aumento do rendimento global do país-mundo em 500 milhões de euros [soma termos de uma progressão geométrica de razão 0,8].Numa resposta directa, o RM estaria de facto a contribuir para o aumento do rendimento, e num montante apreciável. O circuito é virtuoso, no sentido em que no final a economia mundial estará num patamar de rendimento superior ao que começou. E, se quiserem, em temos muito lineares, é esta a lógica de aumentar o investimento público. A diferença face ao paradoxo no Sorumbático, é que se assumia propensão a poupar nula. Os 100 eram sempre gastos. E aí, podia haver um efeito infinito. Mas não é realista. E os tais impostos? Essencialmente suponhamos que por cada transação o Estado cobrava ao clube que recebia o dinheiro 10%. Se o Estado não fizesse nada a essa receita fiscal, ela era uma simples fuga ao multiplicador. O efeito sobre o rendimento mundial dos 100 milhões gastos inicialmente pelo Real Madrid era de 357,... milhões de Euros. Aqui existem duas fugas: as reservas bancárias e os impostos).O problema que se levanta é que a crise é muito maior do que isto. Na verdade, o pacote de estímulos aprovado em Fevereiro pela Administração Obama é de cerca de 800 mil milhões de dólares e a crítica que foi feita por gente como o Paul Krugman é que o efeito que isso teria no produto, dado o produto americano estar muito abaixo do desejável, não era suficiente. Era preciso um pacote muito maior. Donde, por muito dinheiro que sejam 100 milhões de Euros, não chegariam para recuperar a economia mundial. O cículo virtuoso tem um fim.------------II) Adicionalmente, é evidente que o Real Madrid não encontrou a ilha do tesouro. Os 100 milhões podiam por exemplo estar no activo do Real em troca de vendas que ele próprio fez. Isto é, os 100 milhões já existiam. E neste caso, o efeito é nulo. No exemplo do Sorumbático um estranho deixa 100 euros no balcão do hotel. Esses 100 não existiam naquela comunidade. E isso corresponde ao caso acima. Mas, se os 100 fossem de alguém lá da terrinha, isso não tinha efeitos sobre o rendimento final, porque este já tinha em conta essa parcela. Para tornar mais claro, no exemplo acima, o clube que gasta 80 não altera o resultado final. Porque os 80 vêm dos 100. Alterava sim, se recebesse os 100 e decidisse gastar 80% mais 80 milhões que também tinha enterrados. Esta diferença é subtil, mas importante. Se eu gastar dinheiro que me foi pago não altero o PIB que se espera no final do ano. Da mesma forma que se um pai der ao filho 10 euros que ia gastar, e o filhos os gastar em rebuçados, não houve alteração por esta via, porque o dinheiro já existia. A novidade no pacote de estímulos está em colocar na economia americana 800 mil milhões de dólares que não existissem antes a circular.Isto serve ainda para explicar que os impostos cobrados, sobre transações de jogadores são parte dos tais 500 milhões que existiriam sem impostos. O Estado vai recolocá-los a circular. Mas o efeito sobre o efeito sobre o equilíbrio final é negligenciável se assumirmos que toda a gente poupa 20%.Agora, a situação continua ainda a ser irrealista. Porque dificilmente o Real Madrid tinha lá no seu activo 10o milhões parados. A situação seguinte é a mais realista de todas:------------III) O Real Madrid pediu emprestado ao banco 100 milhões de euros. Os bancos têm agora uma função na economia. Vão receber depósitos e conceder créditos. Admitamos que as regras bancárias eram tais que 10% de cada crédito tinha que estar salvaguardado por reservas. Isto porque os bancos comerciais não têm a todo o momento em caixa o dinheiro que lá foi depositado. Cumprem um mínimo legal e o resto é capacidade de concessão de crédito. Quer isto dizer que o banco pode por um artifício contabilístico emprestar 100 milhões de Euros. Se tiver reservas suficientes. O que faz é simplesmente lançar esse dinheiro a débito na conta do cliente e registar que ele o deve. Isto é uma ficção porque esses 100 milhões não correspondem a nada de concreto. Mas é uma ficção essencial para as economias funcionarem.Esses 100 milhões já estavam contudo também na capacidade de concessão de crédito da economia. O Banco comercial cedeu a dada altura liquidez aos bancos que lhes permitiu conceder crédito num montante muito maior. O Real Madrid ganhou de 100 milhões de Euros na sua conta. Que vai gastar conforme descrito em I). A diferença entre as duas situações é que agora o Real tem um activo, o Cristiano Ronaldo mas também um passivo: o que deve ao banco. O endividamento do Real Madrid aumentou. Em caso de incumprimento o clube pode ficar insolvente. Mas há uma diferença face à virtuosidade do investimento público. No caso do investimento público a conversa é muito diferente porque os Estados têm possibilidades de se financiarem muito mais diversificadas. Mas isso é debate de outro post.O rendimento mundial vai poder aumentar como no caso I, mas há uma dívida que o RM tem de pagar. Só que isso exigia saber se o Ronaldo vai vender camisolas e bilhetes suficientes para saldar a dívida. Admitindo que sim, correu tudo bem. Os méritos que o Ricado associa à solvabilidade das instituições financeiras depende claramente da liquidez que cada uma delas precisar. Recorde-se que em I) o primeiro banco recebia 20 milhões, o segundo 16 e por aí fora. A crise dos grandes bancos está bem acima destes montantes. Voltamos ao problema do Krugman: 100 milhões ajudam. Mas estão muito longe de chegar para recuperar a economia real. E, acrescento eu, para resolver os problemas dos activos tóxicos dos bancos nem se fala.Mérito contudo ao Real Madrid. Porque fez a sua parte ao resolver gastar dinheiro. Numa crise em que ninguém gasta, porque não tem, receios de deflação, etc, o normal é o Estado assumir o investimento público. À sua escala, o Real Madrid teve uma atitude que potencia a saída da crise.

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