O Cachimbo de Magritte: Primarismos

25-01-2011
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O rap ou o hip hop que o sr. Rodrigues praticava não o transformava no "músico" referido em diversos obituários. No seu primarismo, o hip hop tem pouco a ver com música e muito a ver com uma atitude de confronto face a uma sociedade que é, ou que se imagina, discriminatória. É, vá lá, um estilo de vida, traduzido à superfície no vestuário ridículo e nos gestos animalescos. E nas letras das "canções" (?). As letras, que certa "inteligência" considera "poesia das ruas", são, além de analfabetas, manifestações de rancor social. Por norma, são também glorificações do crime e panfletos misóginos.(...)Obviamente, o hip hop é principalmente uma invenção das indústrias discográfica e televisiva, e não traria mal ao mundo se o mundo não se deixasse influenciar por semelhante patetice. Infelizmente, do Bronx a Chelas, essa celebração da boçalidade é erguida aos currículos escolares e milhões de jovens tomam-na por "afirmação". Na verdade, é o inverso: o hip hop é a sujeição dos pretos ao que o "multiculturalismo" em vigor deles espera. Ao trocar a literatura pela "poesia das ruas", a música pelo ruído, a educação pela agressividade, o esforço pela automarginalização, a única afirmação do hip hop é a da inferioridade. Se levado a sério, o paternalismo condescendente limita os membros de uma etnia a uma existência parcial nas franjas da legalidade. E não anda longe do folclore abertamente racista.(...)O sr. Rodrigues, ou sr. "Snake", escolheu o seu próprio estereótipo. O que a polícia fez depois terá sido injustificável, mas não totalmente imprevisível.Alberto Gonçalves, 21 de Março, no DN.O heavy metal, para usar um exemplo normalmente associado a jovens brancos (ou caras-pálidas, ou caucasianos, ou o que quiserem), é de um primarismo similar, incluindo na celebração da violência (e na misoginia, etc.). Sucede que, ao contrário do hip hop, nem a "criatividade" do heavy metal beneficia de adulação externa ao culto (não conheço académicos empenhados em dissecar o lirismo da banda Nuclear Assault), nem o seu peso (sem trocadilho) ultrapassa círculos restritos.Alberto Gonçalves, 28 de Março, no DN.Aquilo que Alberto Gonçalves afirma (erradamente) a propósito do hip hop poderia aplicar-se, apesar das pequenas particularidades, a todos os géneros musicais que fogem ao mainstream. Por definição, os movimentos minoritários, sejam eles sociais ou simplesmente musicais, são marginais –- no sentido de estarem à margem. O que não significa que sejam habitados por criminosos ou que suscitem à violência. O preconceito de Alberto Gonçalves acerca do hip hop (e agora mais moderadamente acerca do heavy metal (o que os distingue, para ele, é apenas a sua esfera de influência, que é maior no hip hop do que no heavy metal) é o mesmo que outros têm para com o punk (vadiagem), o rap (crime) ou a música techno (drogas), definindo-os como música de gente delinquente que promove a delinquência. Assim, os seus dois artigos apoiam-se numa caracterização simplista, baseada nos sinais exteriores, que por serem diferentes dos tradicionais são compreendidos como sinais de delinquência. É este olhar sobre o ‘outro’ que torna, aos olhos de Alberto Gonçalves (mas não só), a morte de um rapper relativamente previsível. É também este olhar sobre o ‘outro’ que, há já uns anos, identificou na música heavy metal a razão para o parricídio que um jovem cometeu em Ílhavo.Sejamos claros. O que incomoda nos artigos de Alberto Gonçalves não é que ele defenda que o hip hop faz uma glorificação da violência. Ele até pode ter razão nesse ponto, embora me pareça difícil estabelecer uma relação causa-efeito (ouvir hip hop causa comportamentos violentos). Nem é sequer o preconceito que choca: é compreensível o preconceito sobre o que não conhecemos, e é evidente que o cronista não é familiar com os estilos de música que avalia.O que incomoda realmente é a repulsa de Alberto Gonçalves por estes estilos de música (ou os seus respectivos movimentos sociais). O cronista do DN não se limita a reproduzir as opiniões de intelectuais, como ele alega, mas incendiou-as através de considerações insultuosas e odiosas. Ao afirmar “sobre o hip hop, limitei-me a reproduzir algumas evidências repetidas por intelectuais americanos contemporâneos”, Alberto Gonçalves não está a ser verdadeiro.Dizer que o hip hop faz a glorificação do crime e sustentar essa afirmação com letras de músicas e episódios da vida real dos artistas é digno da linguagem das ciências sociais, que constrói evidências. Caracterizar o hip hop como ‘primarismo’ e ‘ruído’, e os seus adeptos como ‘primários’, ‘animalescos’, ‘analfabetos’, ‘boçais’ e de ‘vestuário ridículo’ é somente uma demonstração de intolerância. Ao optar pela segunda abordagem, Alberto Gonçalves dá razão a quem o criticou com base nessa intolerância.Para terminar, devo dizer que o que mais me impressiona não é essa intolerância em si, mas que ela habite em alguém como Alberto Gonçalves que, manifestamente desconfortável com a diversidade, se julga um defensor de sociedades livres e pluralistas.


O rap ou o hip hop que o sr. Rodrigues praticava não o transformava no "músico" referido em diversos obituários. No seu primarismo, o hip hop tem pouco a ver com música e muito a ver com uma atitude de confronto face a uma sociedade que é, ou que se imagina, discriminatória. É, vá lá, um estilo de vida, traduzido à superfície no vestuário ridículo e nos gestos animalescos. E nas letras das "canções" (?). As letras, que certa "inteligência" considera "poesia das ruas", são, além de analfabetas, manifestações de rancor social. Por norma, são também glorificações do crime e panfletos misóginos.(...)Obviamente, o hip hop é principalmente uma invenção das indústrias discográfica e televisiva, e não traria mal ao mundo se o mundo não se deixasse influenciar por semelhante patetice. Infelizmente, do Bronx a Chelas, essa celebração da boçalidade é erguida aos currículos escolares e milhões de jovens tomam-na por "afirmação". Na verdade, é o inverso: o hip hop é a sujeição dos pretos ao que o "multiculturalismo" em vigor deles espera. Ao trocar a literatura pela "poesia das ruas", a música pelo ruído, a educação pela agressividade, o esforço pela automarginalização, a única afirmação do hip hop é a da inferioridade. Se levado a sério, o paternalismo condescendente limita os membros de uma etnia a uma existência parcial nas franjas da legalidade. E não anda longe do folclore abertamente racista.(...)O sr. Rodrigues, ou sr. "Snake", escolheu o seu próprio estereótipo. O que a polícia fez depois terá sido injustificável, mas não totalmente imprevisível.Alberto Gonçalves, 21 de Março, no DN.O heavy metal, para usar um exemplo normalmente associado a jovens brancos (ou caras-pálidas, ou caucasianos, ou o que quiserem), é de um primarismo similar, incluindo na celebração da violência (e na misoginia, etc.). Sucede que, ao contrário do hip hop, nem a "criatividade" do heavy metal beneficia de adulação externa ao culto (não conheço académicos empenhados em dissecar o lirismo da banda Nuclear Assault), nem o seu peso (sem trocadilho) ultrapassa círculos restritos.Alberto Gonçalves, 28 de Março, no DN.Aquilo que Alberto Gonçalves afirma (erradamente) a propósito do hip hop poderia aplicar-se, apesar das pequenas particularidades, a todos os géneros musicais que fogem ao mainstream. Por definição, os movimentos minoritários, sejam eles sociais ou simplesmente musicais, são marginais –- no sentido de estarem à margem. O que não significa que sejam habitados por criminosos ou que suscitem à violência. O preconceito de Alberto Gonçalves acerca do hip hop (e agora mais moderadamente acerca do heavy metal (o que os distingue, para ele, é apenas a sua esfera de influência, que é maior no hip hop do que no heavy metal) é o mesmo que outros têm para com o punk (vadiagem), o rap (crime) ou a música techno (drogas), definindo-os como música de gente delinquente que promove a delinquência. Assim, os seus dois artigos apoiam-se numa caracterização simplista, baseada nos sinais exteriores, que por serem diferentes dos tradicionais são compreendidos como sinais de delinquência. É este olhar sobre o ‘outro’ que torna, aos olhos de Alberto Gonçalves (mas não só), a morte de um rapper relativamente previsível. É também este olhar sobre o ‘outro’ que, há já uns anos, identificou na música heavy metal a razão para o parricídio que um jovem cometeu em Ílhavo.Sejamos claros. O que incomoda nos artigos de Alberto Gonçalves não é que ele defenda que o hip hop faz uma glorificação da violência. Ele até pode ter razão nesse ponto, embora me pareça difícil estabelecer uma relação causa-efeito (ouvir hip hop causa comportamentos violentos). Nem é sequer o preconceito que choca: é compreensível o preconceito sobre o que não conhecemos, e é evidente que o cronista não é familiar com os estilos de música que avalia.O que incomoda realmente é a repulsa de Alberto Gonçalves por estes estilos de música (ou os seus respectivos movimentos sociais). O cronista do DN não se limita a reproduzir as opiniões de intelectuais, como ele alega, mas incendiou-as através de considerações insultuosas e odiosas. Ao afirmar “sobre o hip hop, limitei-me a reproduzir algumas evidências repetidas por intelectuais americanos contemporâneos”, Alberto Gonçalves não está a ser verdadeiro.Dizer que o hip hop faz a glorificação do crime e sustentar essa afirmação com letras de músicas e episódios da vida real dos artistas é digno da linguagem das ciências sociais, que constrói evidências. Caracterizar o hip hop como ‘primarismo’ e ‘ruído’, e os seus adeptos como ‘primários’, ‘animalescos’, ‘analfabetos’, ‘boçais’ e de ‘vestuário ridículo’ é somente uma demonstração de intolerância. Ao optar pela segunda abordagem, Alberto Gonçalves dá razão a quem o criticou com base nessa intolerância.Para terminar, devo dizer que o que mais me impressiona não é essa intolerância em si, mas que ela habite em alguém como Alberto Gonçalves que, manifestamente desconfortável com a diversidade, se julga um defensor de sociedades livres e pluralistas.

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