O velho que fazia cestos Ilustração de A. TapadinhasTinta da China s/papel 32x24 O VELHO QUE FAZIA CESTOSNum dia igual a outros, dirigia-me para casa e, ao fazer a rotunda da Moita, olhei naturalmente para o terreno baldio que continua a existir, paredes meias com a catedral de consumo ali implantada. E reparei nela.Estava junto às cinzas das inúmeras fogueiras acesas durante o Inverno, no que me pareceu uma posição tranquila de descanso, indiferente a quem passava, um tímido raio do sol da manhã a acariciá-la.Passados uns dias, não sei se muitos, porque à medida que envelheço, os dias ficam pequenos para fazer as coisas importantes que fui adiando, voltei a vê-la.Passava, lentamente, em frente da taberna, sem olhar para nenhum lado, os olhos, melhor, todos os sentidos agarrados às pedras da calçada. Pareceu-me mais magra e suja.Atravessou a rua com o seu passinho miúdo, não olhou sequer para dentro do quartel da GNR, seguiu em frente, fez a curva que a levou à ponte sobre o rio da Moita, deteve-se durante alguns segundos e continuou a caminhada até ao local onde, pela primeira vez, a tinha visto sem companhia.Confesso que a sua imagem esguia, o seu andar algo incerto, ficaram gravados no meu espírito, traduzindo uma sensação amarga de esquecimento e abandono.Passados mais alguns dias, voltei a encontrá-la. Estava sentada junto às palmeiras do largo da praça. Pareceu-me ainda mais magra, dando a sensação que só a pele segurava o seu frágil esqueleto. Mas estava vigilante: procurava com o olhar alguém que nunca mais aparecia. Quando se voltou para mim, nos seus olhos vi todo o desespero do mundo.Esse olhar atingiu-me como se tivesse disparado um dardo que mais do que atingir o coração, me abriu a cabeça, numa súbita compreensão do drama."Morreu, ou está internado no hospital, ou, ainda pior, no asilo, esse arquivo de mortos adiados. Estará preso?"Se morreu, só Deus pode ressuscitá-lo.Senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz: "Soltem-no!".Esse homem não é um vadio. Nem pode ser um criminoso: tem tanto amor para dar. Eu sei que veste roupas andrajosas, está sujo, cheira mal, a suor e a vinho. Mas não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho. Estou pronto a testemunhá-lo. Comprei-lhe muitos cestos de cana que tenho em casa, como prova do que afirmo.Apreciei, algumas vezes, nas manhãs frias de Inverno, ele junto da fogueira, perto da barraca onde dormia, a cortar e a alisar as canas que utilizava no fabrico dos seus cestos, com os quais, julgava eu, conquistava a sua independência, o seu direito de viver em liberdade.Posso testemunhar, também, senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz, que não sei se ele comia restos ou não, o que sei é que para a sua companheira, comprava o que de melhor havia no mercado. Foi ele que me pediu, à porta do supermercado:-" A mim não me deixam entrar. Tem aqui cinco euros. Por favor, compre duas latas de Pedigree para a minha cadela."Ouviram, senhores Médicos, Juizes, Guardas: Soltem-no!Senhores da Liga dos Direitos dos Animais: a cadela ainda lá estava ontem, à espera. Recusa-se a comer.Apressem-se! Temos pouco tempo para os salvar!
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O velho que fazia cestos Ilustração de A. TapadinhasTinta da China s/papel 32x24 O VELHO QUE FAZIA CESTOSNum dia igual a outros, dirigia-me para casa e, ao fazer a rotunda da Moita, olhei naturalmente para o terreno baldio que continua a existir, paredes meias com a catedral de consumo ali implantada. E reparei nela.Estava junto às cinzas das inúmeras fogueiras acesas durante o Inverno, no que me pareceu uma posição tranquila de descanso, indiferente a quem passava, um tímido raio do sol da manhã a acariciá-la.Passados uns dias, não sei se muitos, porque à medida que envelheço, os dias ficam pequenos para fazer as coisas importantes que fui adiando, voltei a vê-la.Passava, lentamente, em frente da taberna, sem olhar para nenhum lado, os olhos, melhor, todos os sentidos agarrados às pedras da calçada. Pareceu-me mais magra e suja.Atravessou a rua com o seu passinho miúdo, não olhou sequer para dentro do quartel da GNR, seguiu em frente, fez a curva que a levou à ponte sobre o rio da Moita, deteve-se durante alguns segundos e continuou a caminhada até ao local onde, pela primeira vez, a tinha visto sem companhia.Confesso que a sua imagem esguia, o seu andar algo incerto, ficaram gravados no meu espírito, traduzindo uma sensação amarga de esquecimento e abandono.Passados mais alguns dias, voltei a encontrá-la. Estava sentada junto às palmeiras do largo da praça. Pareceu-me ainda mais magra, dando a sensação que só a pele segurava o seu frágil esqueleto. Mas estava vigilante: procurava com o olhar alguém que nunca mais aparecia. Quando se voltou para mim, nos seus olhos vi todo o desespero do mundo.Esse olhar atingiu-me como se tivesse disparado um dardo que mais do que atingir o coração, me abriu a cabeça, numa súbita compreensão do drama."Morreu, ou está internado no hospital, ou, ainda pior, no asilo, esse arquivo de mortos adiados. Estará preso?"Se morreu, só Deus pode ressuscitá-lo.Senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz: "Soltem-no!".Esse homem não é um vadio. Nem pode ser um criminoso: tem tanto amor para dar. Eu sei que veste roupas andrajosas, está sujo, cheira mal, a suor e a vinho. Mas não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho. Estou pronto a testemunhá-lo. Comprei-lhe muitos cestos de cana que tenho em casa, como prova do que afirmo.Apreciei, algumas vezes, nas manhãs frias de Inverno, ele junto da fogueira, perto da barraca onde dormia, a cortar e a alisar as canas que utilizava no fabrico dos seus cestos, com os quais, julgava eu, conquistava a sua independência, o seu direito de viver em liberdade.Posso testemunhar, também, senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz, que não sei se ele comia restos ou não, o que sei é que para a sua companheira, comprava o que de melhor havia no mercado. Foi ele que me pediu, à porta do supermercado:-" A mim não me deixam entrar. Tem aqui cinco euros. Por favor, compre duas latas de Pedigree para a minha cadela."Ouviram, senhores Médicos, Juizes, Guardas: Soltem-no!Senhores da Liga dos Direitos dos Animais: a cadela ainda lá estava ontem, à espera. Recusa-se a comer.Apressem-se! Temos pouco tempo para os salvar!