[Arquivo-TAGV]Dando início a um novo ciclo de recitais e concertos («A Cor do Som»), que continuará na próxima temporada, o TAGV acolheu o pianista José Eduardo Martins, que interpretou as «Sonatas Bíblicas»(1700), de Johann Kuhnau. Esta terá sido provavelmente a primeira interpretação integral daquelas sonatas em Coimbra. Sem pôr em causa a corrente de interpretação da música antiga em instrumentos de época, José Eduardo Martins menciona a significativa tradição de interpretação ao piano de obras para cravo, inserindo aí a sua opção de ler ao piano uma obra escrita originalmente para cravo, clavicórdio ou órgão. Cita designadamente a frequente intrepretação ao piano do repertório para cravo dos grandes compositores barrocos como François Couperin, Jean-Philippe Rameau, Domenico Scarlatti, Johann Sebastian Bach, Antonio Soler ou Carlos Seixas. É de facto possível argumentar, como acontece, por exemplo, nas interpretações de Bach por Glenn Gould, ou de Scarlatti por Anne Queffélec, que a leitura ao piano amplifica certas qualidades composicionais originais e, não raramente, actualiza o seu potencial de modo a revelar novas dimensões. Não se trata portanto de uma mera transposição tímbrica, que desvirtuaria a intenção e a forma originais. Trata-se, antes de mais, de um problema de interpretação e de leitura, que cabe ao intérprete resolver. José Eduardo Martins (piano), «Sonatas Bíblicas»(1700), de Johann Kuhnau (1660-1722), TAGV, 9 Maio 2007. Recital comentado por José Maria Pedrosa Cardoso. Fotos de Mário Henriques.O problema da leitura ganha, aliás, uma dimensão particular nas obras instrumentais programáticas ou descritivas, como é o caso. Na medida em que se propõe referir ou representar um conteúdo extramusical, a música programática coloca o problema da referencialidade dos signos musicais. Em que medida é possível representar acções, situações, imagens, ideias, emoções? Por outras palavras, como se consegue dar ao discurso instrumental uma função descritiva, narrativa e dramática? Que processos na fantasia do intérprete e do ouvinte são estimulados por determinadas descrições verbais nos títulos das peças? Esta capacidade descritiva e narrativa depende de um vocabulário de temas e ritmos, de algum modo, pré-constituído e lexicalizado na tradição composicional. A figuração musical de impressões sonoras, como acontece por exemplo com o canto dos pássaros ou com a água ou com a tempestade na música de Antonio Vivaldi, é talvez a possibilidade descritiva mais facilmente figurável: aquela em que o instrumento assume uma função imitativa. A figuração de impressões visuais, pela sua natureza sinestésica, revela já a natureza abstracta e convencional da simbologia musical. O mesmo se poderá dizer da figuração de sentimentos, emoções e atmosferas.A remediação musical dos episódios bíblicos escolhidos, feita através de danças, recitativos, corais luteranos, fugatos e fugas, evidencia o salto conceptual entre a estrutura abstracta de repetição e variação que caracteriza a combinatória de sons e os sentimentos ou estados de espírito que pretendem referir ou evocar. José Eduardo Martins designa as «Sonatas Bíblicas» como uma «verdadeira enciclopédia de sentimentos». Ainda que o intérprete e o ouvinte não possam deixar de atender aos títulos das sonatas e das frases que, na partitura, identificam as diferentes cenas ou momentos narrativos, eles percebem também a arbitrariedade dos signos da simbologia musical programática. Mesmo admitindo alguma espécie de universalidade na equivalência entre andamento lento e tristeza, ou entre andamento rápido e alegria; entre aumento e diminuição de intensidade sonora e aumento e diminuição de intensidade emotiva; entre sons fortes e sons suaves e estados de alma ou acções; entre sons agudos e sons graves e variações de luz e de cor; a natureza abstracta do signo musical, como a natureza abstracta das categorias linguísticas, é o que, em última análise, aquele salto entre a impressão sensorial produzida pela música e o conteúdo conceptual e emocional que a fantasia lhe associa revela. Ou seja, é o programa que cria o código de interpretação e a grelha de leitura que faz com a linguagem verbal transforme os conteúdos musicais em metáforas dessas descrições.MP
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[Arquivo-TAGV]Dando início a um novo ciclo de recitais e concertos («A Cor do Som»), que continuará na próxima temporada, o TAGV acolheu o pianista José Eduardo Martins, que interpretou as «Sonatas Bíblicas»(1700), de Johann Kuhnau. Esta terá sido provavelmente a primeira interpretação integral daquelas sonatas em Coimbra. Sem pôr em causa a corrente de interpretação da música antiga em instrumentos de época, José Eduardo Martins menciona a significativa tradição de interpretação ao piano de obras para cravo, inserindo aí a sua opção de ler ao piano uma obra escrita originalmente para cravo, clavicórdio ou órgão. Cita designadamente a frequente intrepretação ao piano do repertório para cravo dos grandes compositores barrocos como François Couperin, Jean-Philippe Rameau, Domenico Scarlatti, Johann Sebastian Bach, Antonio Soler ou Carlos Seixas. É de facto possível argumentar, como acontece, por exemplo, nas interpretações de Bach por Glenn Gould, ou de Scarlatti por Anne Queffélec, que a leitura ao piano amplifica certas qualidades composicionais originais e, não raramente, actualiza o seu potencial de modo a revelar novas dimensões. Não se trata portanto de uma mera transposição tímbrica, que desvirtuaria a intenção e a forma originais. Trata-se, antes de mais, de um problema de interpretação e de leitura, que cabe ao intérprete resolver. José Eduardo Martins (piano), «Sonatas Bíblicas»(1700), de Johann Kuhnau (1660-1722), TAGV, 9 Maio 2007. Recital comentado por José Maria Pedrosa Cardoso. Fotos de Mário Henriques.O problema da leitura ganha, aliás, uma dimensão particular nas obras instrumentais programáticas ou descritivas, como é o caso. Na medida em que se propõe referir ou representar um conteúdo extramusical, a música programática coloca o problema da referencialidade dos signos musicais. Em que medida é possível representar acções, situações, imagens, ideias, emoções? Por outras palavras, como se consegue dar ao discurso instrumental uma função descritiva, narrativa e dramática? Que processos na fantasia do intérprete e do ouvinte são estimulados por determinadas descrições verbais nos títulos das peças? Esta capacidade descritiva e narrativa depende de um vocabulário de temas e ritmos, de algum modo, pré-constituído e lexicalizado na tradição composicional. A figuração musical de impressões sonoras, como acontece por exemplo com o canto dos pássaros ou com a água ou com a tempestade na música de Antonio Vivaldi, é talvez a possibilidade descritiva mais facilmente figurável: aquela em que o instrumento assume uma função imitativa. A figuração de impressões visuais, pela sua natureza sinestésica, revela já a natureza abstracta e convencional da simbologia musical. O mesmo se poderá dizer da figuração de sentimentos, emoções e atmosferas.A remediação musical dos episódios bíblicos escolhidos, feita através de danças, recitativos, corais luteranos, fugatos e fugas, evidencia o salto conceptual entre a estrutura abstracta de repetição e variação que caracteriza a combinatória de sons e os sentimentos ou estados de espírito que pretendem referir ou evocar. José Eduardo Martins designa as «Sonatas Bíblicas» como uma «verdadeira enciclopédia de sentimentos». Ainda que o intérprete e o ouvinte não possam deixar de atender aos títulos das sonatas e das frases que, na partitura, identificam as diferentes cenas ou momentos narrativos, eles percebem também a arbitrariedade dos signos da simbologia musical programática. Mesmo admitindo alguma espécie de universalidade na equivalência entre andamento lento e tristeza, ou entre andamento rápido e alegria; entre aumento e diminuição de intensidade sonora e aumento e diminuição de intensidade emotiva; entre sons fortes e sons suaves e estados de alma ou acções; entre sons agudos e sons graves e variações de luz e de cor; a natureza abstracta do signo musical, como a natureza abstracta das categorias linguísticas, é o que, em última análise, aquele salto entre a impressão sensorial produzida pela música e o conteúdo conceptual e emocional que a fantasia lhe associa revela. Ou seja, é o programa que cria o código de interpretação e a grelha de leitura que faz com a linguagem verbal transforme os conteúdos musicais em metáforas dessas descrições.MP