No seu último post, o Paulo Marcelo levanta um problema crucial para a política democrática portuguesa. Mas o problema afecta, em geral, todas as democracias ocidentais – talvez com a excepção do EUA. Trata-se do esvaziamento da oposição. Ora, na medida em que os nossos regimes democráticos são também e ainda regimes parlamentares, o desaparecimento da oposição não é uma mudança de pouca monta. De certo modo, o desaparecimento da oposição foi assimilado com facilidade pelo cidadão comum e pelos intelectuais. Apesar dos primórdios da teoria e prática do governo parlamentar nos indicarem com clareza que a oposição parlamentar desempenha um papel insubstituível, hoje tornou-se num lugar-comum, numa verdade com aspirações à auto-evidência e à universalidade, o dizer que são “os governos que perdem as eleições, e não as oposições que as ganham”.Das várias razões que podem ajudar a compreender esta recente mutação, há uma que tem a vantagem de ser sólida e cristalina. A oposição parlamentar é como o nome indica uma figura do contexto parlamentar. O parlamento é a sede legislativa do Estado, mas também é, pelo menos desde Guizot, um lugar de publicidade e discussão. De todos os restantes poderes do Estado, é com o executivo que o legislativo compete pela primazia. Foi sempre assim. Porém, nos últimos 50 anos a imensa concentração de tarefas e poderes no Estado tornou essa competição extremamente desigual. O Estado-providência, a intrusão estatal num cada vez maior número de actividades humanas, as crescentes responsabilidades que o Estado foi assumindo e o consequente aumento na complexidade da tecnologia do aparelho estatal, deslocou inevitavelmente a distribuição de poderes para o departamento executivo. Ao Estado tem-se pedido que “organize”, que “intervenha”, que “aja”. É o equivalente a ligar para a linha de emergência do executivo. Não deixa de ser irónico que a primazia do Parlamento, que, nos séculos XVIII e XIX, foi reivindicada sobretudo pela Esquerda, tenha sido irremediavelmente posta em causa por aquilo que só a Direita censura.Engrossado o poder executivo teria de haver um correlativo esvaziamento do Parlamento, e por arrastamento da oposição. Não só é muito mais difícil acompanhar o passo de sofisticação do executivo que consegue reunir para si tantos meios e tanto poder, como a primazia do governo executivo permite-lhe comunicar, já não com o Parlamento, mas directamente com a “sociedade”.Todos os recentes Presidentes da Assembleia da República se esforçam por reformar o regime do Parlamento de modo a devolver-lhe prestígio, relevância e notoriedade, junto da “opinião pública”, mas sobretudo na relação com o poder executivo. Publicam-se relatórios com “recomendações” e “medidas”. Mas o facto primordial não se comove. E parece que cada nova necessidade do mundo vem pedir mais executivo e menos Parlamento. Ou, por outras palavras, quanto mais interpretamos o mundo em termos de “necessidade”, e não de “escolha”, mais fundo cavamos a sepultura do Parlamento e da oposição.
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No seu último post, o Paulo Marcelo levanta um problema crucial para a política democrática portuguesa. Mas o problema afecta, em geral, todas as democracias ocidentais – talvez com a excepção do EUA. Trata-se do esvaziamento da oposição. Ora, na medida em que os nossos regimes democráticos são também e ainda regimes parlamentares, o desaparecimento da oposição não é uma mudança de pouca monta. De certo modo, o desaparecimento da oposição foi assimilado com facilidade pelo cidadão comum e pelos intelectuais. Apesar dos primórdios da teoria e prática do governo parlamentar nos indicarem com clareza que a oposição parlamentar desempenha um papel insubstituível, hoje tornou-se num lugar-comum, numa verdade com aspirações à auto-evidência e à universalidade, o dizer que são “os governos que perdem as eleições, e não as oposições que as ganham”.Das várias razões que podem ajudar a compreender esta recente mutação, há uma que tem a vantagem de ser sólida e cristalina. A oposição parlamentar é como o nome indica uma figura do contexto parlamentar. O parlamento é a sede legislativa do Estado, mas também é, pelo menos desde Guizot, um lugar de publicidade e discussão. De todos os restantes poderes do Estado, é com o executivo que o legislativo compete pela primazia. Foi sempre assim. Porém, nos últimos 50 anos a imensa concentração de tarefas e poderes no Estado tornou essa competição extremamente desigual. O Estado-providência, a intrusão estatal num cada vez maior número de actividades humanas, as crescentes responsabilidades que o Estado foi assumindo e o consequente aumento na complexidade da tecnologia do aparelho estatal, deslocou inevitavelmente a distribuição de poderes para o departamento executivo. Ao Estado tem-se pedido que “organize”, que “intervenha”, que “aja”. É o equivalente a ligar para a linha de emergência do executivo. Não deixa de ser irónico que a primazia do Parlamento, que, nos séculos XVIII e XIX, foi reivindicada sobretudo pela Esquerda, tenha sido irremediavelmente posta em causa por aquilo que só a Direita censura.Engrossado o poder executivo teria de haver um correlativo esvaziamento do Parlamento, e por arrastamento da oposição. Não só é muito mais difícil acompanhar o passo de sofisticação do executivo que consegue reunir para si tantos meios e tanto poder, como a primazia do governo executivo permite-lhe comunicar, já não com o Parlamento, mas directamente com a “sociedade”.Todos os recentes Presidentes da Assembleia da República se esforçam por reformar o regime do Parlamento de modo a devolver-lhe prestígio, relevância e notoriedade, junto da “opinião pública”, mas sobretudo na relação com o poder executivo. Publicam-se relatórios com “recomendações” e “medidas”. Mas o facto primordial não se comove. E parece que cada nova necessidade do mundo vem pedir mais executivo e menos Parlamento. Ou, por outras palavras, quanto mais interpretamos o mundo em termos de “necessidade”, e não de “escolha”, mais fundo cavamos a sepultura do Parlamento e da oposição.