O Cachimbo de Magritte: Silêncios

07-08-2010
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Estamos habituados a pensar que em democracia é sempre possível “dizer a verdade”. Afinal, este constituiu o invariável argumento em defesa da liberdade de expressão e pensamento. A mentira reina apenas nas tiranias, regimes inevitavelmente esquizofrénicos e construtores de verdades fictícias. A democracia, enquanto regime oposto às tiranias, não deseja, nem pode promover mentiras; não deseja, nem pode repreender quem quer “dizer a verdade”. As sociedades democráticas são sociedades abertas também nisto: a palavra dos cidadãos é protegida para abrir aos outros a opinião e os pontos de vista sinceros. De resto, qualquer abordagem comparativa entre regimes democráticos e não-democráticos comprova esta relação entre liberdade de expressão e democracia política. Não existe um Estado democrático de Direito enquanto persistirem formas oficiais e repressoras de censura.Contudo, existem formas subtis de auto-censura que são propiciadas pelo próprio espírito democrático. Em particular, quando uma voz discordante ameaça desafinar o coro uníssono da conformidade, as sociedades democráticas promovem um certo silêncio naquelas matérias que constituem os pilares fundamentais em que assenta a sua justificação intelectual e moral: a “igualdade”, os “direitos”, e, mais recentemente, a “diversidade cultural”. Esse parece ter sido o caso de Robert Putnam, um dos mais reputados sociólogos do momento, que se notabilizou por demonstrar que o gradual desaparecimento de ligas comunitárias de bolingue era sintoma da delapidação do “capital social”, ou da confiança entre indivíduos necessária para a estabilização e florescimento de laços sociais. Desde há alguns anos que Putnam tem estudado a relação entre a diversidade cultural num dado espaço social e as relações de confiança que se geram entre os indivíduos. Aparentemente, os resultados da sua investigação trazem más notícias para a ideologia multiculturalista. Não sei se os resultados pessimistas de Putnam são fidedignos. Mas o mais significativo neste episódio foi o silêncio voluntário a que Putnam durante anos, e apesar do seu prestígio e da força da sua autoridade, sujeitou os resultados da sua pesquisa, bem como o modo envergonhado com que finalmente os anunciou. Putnam sabia que penetrava nesse território perigoso cujas fronteiras avisam, por meio de sinais mais ou menos evidentes, que a aliança histórica entre democracia e ciência se torna precária. A democracia aceita e inclina-se perante a autoridade da ciência. Este pacto foi crucial para o triunfo histórico da democracia. Resta saber o que acontecerá quando a democracia já não puder acatar os ditames da ciência sem se trair a si mesma.


Estamos habituados a pensar que em democracia é sempre possível “dizer a verdade”. Afinal, este constituiu o invariável argumento em defesa da liberdade de expressão e pensamento. A mentira reina apenas nas tiranias, regimes inevitavelmente esquizofrénicos e construtores de verdades fictícias. A democracia, enquanto regime oposto às tiranias, não deseja, nem pode promover mentiras; não deseja, nem pode repreender quem quer “dizer a verdade”. As sociedades democráticas são sociedades abertas também nisto: a palavra dos cidadãos é protegida para abrir aos outros a opinião e os pontos de vista sinceros. De resto, qualquer abordagem comparativa entre regimes democráticos e não-democráticos comprova esta relação entre liberdade de expressão e democracia política. Não existe um Estado democrático de Direito enquanto persistirem formas oficiais e repressoras de censura.Contudo, existem formas subtis de auto-censura que são propiciadas pelo próprio espírito democrático. Em particular, quando uma voz discordante ameaça desafinar o coro uníssono da conformidade, as sociedades democráticas promovem um certo silêncio naquelas matérias que constituem os pilares fundamentais em que assenta a sua justificação intelectual e moral: a “igualdade”, os “direitos”, e, mais recentemente, a “diversidade cultural”. Esse parece ter sido o caso de Robert Putnam, um dos mais reputados sociólogos do momento, que se notabilizou por demonstrar que o gradual desaparecimento de ligas comunitárias de bolingue era sintoma da delapidação do “capital social”, ou da confiança entre indivíduos necessária para a estabilização e florescimento de laços sociais. Desde há alguns anos que Putnam tem estudado a relação entre a diversidade cultural num dado espaço social e as relações de confiança que se geram entre os indivíduos. Aparentemente, os resultados da sua investigação trazem más notícias para a ideologia multiculturalista. Não sei se os resultados pessimistas de Putnam são fidedignos. Mas o mais significativo neste episódio foi o silêncio voluntário a que Putnam durante anos, e apesar do seu prestígio e da força da sua autoridade, sujeitou os resultados da sua pesquisa, bem como o modo envergonhado com que finalmente os anunciou. Putnam sabia que penetrava nesse território perigoso cujas fronteiras avisam, por meio de sinais mais ou menos evidentes, que a aliança histórica entre democracia e ciência se torna precária. A democracia aceita e inclina-se perante a autoridade da ciência. Este pacto foi crucial para o triunfo histórico da democracia. Resta saber o que acontecerá quando a democracia já não puder acatar os ditames da ciência sem se trair a si mesma.

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