ambio: Freeport e informalidade nos processos decisórios

18-12-2009
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Fotografia de A. Marques da SilvaUm dia destes alguém de um jornal ligou-me para me fazer perguntas sobre o processo Freeport.Penso que terá desligado o telefone com alguma frustração porque realmente sei pouco que não esteja no processo administrativo de AIA em que participei (confesso que não me lembro se era um processo de AIA ou de incidências ambientais mas inclino-me para que tenha sido um processo de AIA).Uma pergunta, que é feita com frequência, deu-me o mote para este post."Mas não houve pressões durante o processo?".Eu sou pouco dado a ligar a interpretações da realidade com base em teorias da conspiração, grandes coisas escondidas, interesses obscuros e etc..Pressões é uma expressão equívoca mas sim há pressões com frequência em processos decisórios da administração pública. E pressões vindas de muitos lados.Lembro-me, por exemplo, de um consultor que tendo assinado um Estudo de Impacte Ambiental favorável a um projecto depois mandou um mail para alguém dentro do ICNB, que por lapso foi parar a várias pessoas entre elas eu, pedindo que o ICNB chumbasse o projecto.Lembro-me do processo do Sabor em que há um despacho oficial do então Secretário de Estado da tutela que dava instruções para que todos os membros da comissão de avaliação fossem pelo menos directores de serviços. Já anteriormente numas auto-estradas havia umas comissões de avaliação que eram conhecidas como as comissões VIP porque os membros efectivos eram todos Directores Gerais ou sub Directores Gerais. Como é bom de ver o Directores Gerais tinham mais que fazer que estudar os processos em concreto (os trabalhadores trabalham os dirigentes dirigem), portanto eram outros que faziam esse trabalho mas o objectivo era claro: o governo tinha aprovado as scuts e era fundamental garantir decisões favoráveis para evitar alterações de traçado e as consequentes implicações financeiras nas recomendações (a táctica deu com os burrinhos na água porque dura lex, sed lex e em algumas, quase todas, houve mesmo alterações de traçado e de projecto). Lembro-me de processos em que vinham responsáveis de topo dos organismos que tutelavam a AIA dizer que era preciso isto ou aquilo porque o primeiro-ministro (não necessariamente o actual, qualquer um) tinha dito publicamente isto ou aquilo e era preciso que o processo não o desmentisse. Especificamente com o actual primeiro ministro é talvez emblemático o que se passou com a Pescanova em que foram dadas garantias formais pelo Sr. Primeiro Ministro antes do processo analisado. Felizmente neste caso o processo não tinha problemas legais e seguiu o seu curso normalmente, doutra forma lá haveria um problema sério para as pessoas que estivessem envolvidas no processo decisório, quer seguissem as orientações informais dadas em discursos públicos, não cumprindo a lei, quer cumprindo a lei e metendo o governo numa alhada, como aconteceu várias vezes (com vários governos de vários partidos).Por mim sempre adoptei uma prática, que se me criou problemas imediatos em muitos processos e com muita gente, livrou-me até hoje de complicações maiores.Ilustro com mais um exemplo de um processo em que participei:O governo tinha interesse que um determinado projecto de infra-estruturas fosse aprovado o mais rapidamente possível (nota 1: em Portugal todos os governos que conheci acham a rapidez da decisão muito mais importante que a segurança jurídica e a correcção processual da decisão). Como sempre o processo de AIA era considerado um percalço e um obstáculo burocrático à legítima decisão dos representantes do povo que traduzia o interesse colectivo, sendo útil que tudo fosse feito para que a burocracia não atrasasse o desenvolvimento e o bem estar (nota 2: esta ideia é transversal a quase todas as tutelas políticas que conheci em Portugal). Acontece que o projecto se desenvolvia em rede natura e, mal ou bem, havia informação traduzida em pareceres concretos e formais que apontavam para os riscos ambientais (para o que me interessava, de conservação da biodiversidade) na execução do projecto. Reunião final da comissão de avaliação para a emissão do parecer e há alguém responsável pela gestão do processo de AIA que insiste em que o parecer do ICNB (naquele caso trazido e defendido por mim) não cumpria as orientações que o próprio Presidente do ICNB tinha transmitido numa reunião entre os dois directores gerais sobre o processo na semana anterior.Este tipo de informalidade é muito, muito frequente na administração.E em processos complexos é muito perigosa. Por isso adoptei a minha posição do costume: há acta da reunião? Há formalização em despacho ou noutra forma escrita da posição do Presidente do ICNB? A resposta foi a do costume: mas eu estive na reunião e ouvi. Pois, mas ou há formalização da decisão ou nada disso me interessa. A burocracia no seu esplendor.Mas no esplendor que verdadeiramente interessa: o combate a uma informalidade que não deixa rasto nem permite a responsabilização.As pressões são normais. O que é anormal em Portugal é forma acéfala como uma grande parte dos funcionários que estão envolvidos nos processos se deixam condicionar por conversas, discursos públicos, recados informais transmitidos pelos mais diferentes canais.Essa anormalidade é em primeiro lugar uma responsabilidade de cada um dos envolvidos, mas é em segundo lugar um resultado da nossa propensão para desvalorizar a forma das decisões.Nesse processo em concreto acabou por ser tomada uma decisão, pelo então Secretário de Estado (penso que do actual partido da oposição, não tenho a certeza e se refiro isto é para deixar bem claro que a minha preocupação não é com este ou com aquele mas com a forma corrente como se tomam as decisões públicas em Portugal) que a meu ver era uma decisão ilegal.Um dia, conversando com um dirigente ambientalista que eu sabia que tinha acompanhado o processo, perguntei-lhe por que razão tendo sido emitido um parecer negativo ao projecto pela sua associação e parecendo-me fácil de demonstrar que o direito comunitário tinha sido violado, não tinha havido qualquer reacção da parte da sua organização, ao contrário do que acontecia em vários outros processos. A resposta demonstra bem que a questão não é do domínio dos interesses obscuros que manipulam as decisões pública mas sim do nosso ambiente social: o resultado da execução do projecto não era assim muito mau, portanto o facto da decisão ter sido tomada ilegalmente era pouco relevante.Ou seja, o critério para avaliar as decisões é apenas o do seu resultado, nunca o dos meios usados.Por isso Pedro Serra, na já longíqua campanha interna para eleição do Secretário Geral do PS em 2004, podia escrever um artigo de opinião no diário económico que era um panegírico de apoio a um dos candidatos, onde constava este parágrafo que no contexto do artigo não era uma crítica mas um fortíssimo elogio, sem que aparentemente alguém ficasse sobressaltado com o seu conteúdo:«Os dois anos em que foi Ministro do Ambiente e em que teve na sua mão a distribuição dos fundos comunitários utilizou-os ele a tecer a trama de influências regionais e nacionais,partidárias e não só, que o fazem imbatível em qualquer contenda no seio do PS (...)»henrique pereira dos santos


Fotografia de A. Marques da SilvaUm dia destes alguém de um jornal ligou-me para me fazer perguntas sobre o processo Freeport.Penso que terá desligado o telefone com alguma frustração porque realmente sei pouco que não esteja no processo administrativo de AIA em que participei (confesso que não me lembro se era um processo de AIA ou de incidências ambientais mas inclino-me para que tenha sido um processo de AIA).Uma pergunta, que é feita com frequência, deu-me o mote para este post."Mas não houve pressões durante o processo?".Eu sou pouco dado a ligar a interpretações da realidade com base em teorias da conspiração, grandes coisas escondidas, interesses obscuros e etc..Pressões é uma expressão equívoca mas sim há pressões com frequência em processos decisórios da administração pública. E pressões vindas de muitos lados.Lembro-me, por exemplo, de um consultor que tendo assinado um Estudo de Impacte Ambiental favorável a um projecto depois mandou um mail para alguém dentro do ICNB, que por lapso foi parar a várias pessoas entre elas eu, pedindo que o ICNB chumbasse o projecto.Lembro-me do processo do Sabor em que há um despacho oficial do então Secretário de Estado da tutela que dava instruções para que todos os membros da comissão de avaliação fossem pelo menos directores de serviços. Já anteriormente numas auto-estradas havia umas comissões de avaliação que eram conhecidas como as comissões VIP porque os membros efectivos eram todos Directores Gerais ou sub Directores Gerais. Como é bom de ver o Directores Gerais tinham mais que fazer que estudar os processos em concreto (os trabalhadores trabalham os dirigentes dirigem), portanto eram outros que faziam esse trabalho mas o objectivo era claro: o governo tinha aprovado as scuts e era fundamental garantir decisões favoráveis para evitar alterações de traçado e as consequentes implicações financeiras nas recomendações (a táctica deu com os burrinhos na água porque dura lex, sed lex e em algumas, quase todas, houve mesmo alterações de traçado e de projecto). Lembro-me de processos em que vinham responsáveis de topo dos organismos que tutelavam a AIA dizer que era preciso isto ou aquilo porque o primeiro-ministro (não necessariamente o actual, qualquer um) tinha dito publicamente isto ou aquilo e era preciso que o processo não o desmentisse. Especificamente com o actual primeiro ministro é talvez emblemático o que se passou com a Pescanova em que foram dadas garantias formais pelo Sr. Primeiro Ministro antes do processo analisado. Felizmente neste caso o processo não tinha problemas legais e seguiu o seu curso normalmente, doutra forma lá haveria um problema sério para as pessoas que estivessem envolvidas no processo decisório, quer seguissem as orientações informais dadas em discursos públicos, não cumprindo a lei, quer cumprindo a lei e metendo o governo numa alhada, como aconteceu várias vezes (com vários governos de vários partidos).Por mim sempre adoptei uma prática, que se me criou problemas imediatos em muitos processos e com muita gente, livrou-me até hoje de complicações maiores.Ilustro com mais um exemplo de um processo em que participei:O governo tinha interesse que um determinado projecto de infra-estruturas fosse aprovado o mais rapidamente possível (nota 1: em Portugal todos os governos que conheci acham a rapidez da decisão muito mais importante que a segurança jurídica e a correcção processual da decisão). Como sempre o processo de AIA era considerado um percalço e um obstáculo burocrático à legítima decisão dos representantes do povo que traduzia o interesse colectivo, sendo útil que tudo fosse feito para que a burocracia não atrasasse o desenvolvimento e o bem estar (nota 2: esta ideia é transversal a quase todas as tutelas políticas que conheci em Portugal). Acontece que o projecto se desenvolvia em rede natura e, mal ou bem, havia informação traduzida em pareceres concretos e formais que apontavam para os riscos ambientais (para o que me interessava, de conservação da biodiversidade) na execução do projecto. Reunião final da comissão de avaliação para a emissão do parecer e há alguém responsável pela gestão do processo de AIA que insiste em que o parecer do ICNB (naquele caso trazido e defendido por mim) não cumpria as orientações que o próprio Presidente do ICNB tinha transmitido numa reunião entre os dois directores gerais sobre o processo na semana anterior.Este tipo de informalidade é muito, muito frequente na administração.E em processos complexos é muito perigosa. Por isso adoptei a minha posição do costume: há acta da reunião? Há formalização em despacho ou noutra forma escrita da posição do Presidente do ICNB? A resposta foi a do costume: mas eu estive na reunião e ouvi. Pois, mas ou há formalização da decisão ou nada disso me interessa. A burocracia no seu esplendor.Mas no esplendor que verdadeiramente interessa: o combate a uma informalidade que não deixa rasto nem permite a responsabilização.As pressões são normais. O que é anormal em Portugal é forma acéfala como uma grande parte dos funcionários que estão envolvidos nos processos se deixam condicionar por conversas, discursos públicos, recados informais transmitidos pelos mais diferentes canais.Essa anormalidade é em primeiro lugar uma responsabilidade de cada um dos envolvidos, mas é em segundo lugar um resultado da nossa propensão para desvalorizar a forma das decisões.Nesse processo em concreto acabou por ser tomada uma decisão, pelo então Secretário de Estado (penso que do actual partido da oposição, não tenho a certeza e se refiro isto é para deixar bem claro que a minha preocupação não é com este ou com aquele mas com a forma corrente como se tomam as decisões públicas em Portugal) que a meu ver era uma decisão ilegal.Um dia, conversando com um dirigente ambientalista que eu sabia que tinha acompanhado o processo, perguntei-lhe por que razão tendo sido emitido um parecer negativo ao projecto pela sua associação e parecendo-me fácil de demonstrar que o direito comunitário tinha sido violado, não tinha havido qualquer reacção da parte da sua organização, ao contrário do que acontecia em vários outros processos. A resposta demonstra bem que a questão não é do domínio dos interesses obscuros que manipulam as decisões pública mas sim do nosso ambiente social: o resultado da execução do projecto não era assim muito mau, portanto o facto da decisão ter sido tomada ilegalmente era pouco relevante.Ou seja, o critério para avaliar as decisões é apenas o do seu resultado, nunca o dos meios usados.Por isso Pedro Serra, na já longíqua campanha interna para eleição do Secretário Geral do PS em 2004, podia escrever um artigo de opinião no diário económico que era um panegírico de apoio a um dos candidatos, onde constava este parágrafo que no contexto do artigo não era uma crítica mas um fortíssimo elogio, sem que aparentemente alguém ficasse sobressaltado com o seu conteúdo:«Os dois anos em que foi Ministro do Ambiente e em que teve na sua mão a distribuição dos fundos comunitários utilizou-os ele a tecer a trama de influências regionais e nacionais,partidárias e não só, que o fazem imbatível em qualquer contenda no seio do PS (...)»henrique pereira dos santos

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