Serpente Emplumada: Ocidentalidade: Milagre Ático? 1ª Parte

21-05-2011
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Exceptuando os poucos resistentes que ainda se dedicam ao estudo científico da Antiguidade clássica, assim como aqueles que dela fazem a base consciente da sua formação cultural, é cada vez maior o número dos que afirmam, sem a mais pequena noção do que significa «ser grego», que a Grécia é o berço do Ocidente. O conhecimento aprofundado do mundo antigo é considerado, por muitos, como desnecessário e obsoleto, embora ninguém duvide de que a identidade ocidental tenha as suas raízes na cultura greco-romana. «Nós somos gregos» é uma frase tantas vezes repetida nas nossas escolas e universidades onde a Antiguidade é votada, contudo, a um estudo cada vez mais superficial e marginal. Formou-se, na cultura geral, uma certeza sobre a origem do Ocidente que dispensa, paradoxalmente, uma relação em primeira mão com essa mesma origem. Reflectir sobre a Antiguidade clássica e sobre o seu sentido no actual panorama civilizacional implica ter em conta, necessariamente, que o mundo se encontra em pleno processo de globalização planetária. Numa escala nunca antes vista, diferentes raças, tradições e culturas estão em permanente contacto e confronto, sendo impossível evitar a relativização e a descentralização culturais. Contudo, somos herdeiros de uma imagem da cultura greco-romana, criada na Alemanha do século XIX, em que Hegel idealizou a Grécia como o centro de uma civilização culturalmente isolada em relação a todos os povos que se encontram à sua volta. Foi a partir do binómio gregos/não-gregos, ou gregos/bárbaros, que se desenvolveu a consciência de uma civilização ocidental que se compreende a si própria como sendo especificamente original – e frequentemente superior – face a todas as culturas não-ocidentais. É essa a imagem, historicamente condicionada pelo contexto cultural de há duzentos anos atrás, que continua a vigorar como o pilar da identidade europeia e ocidental, embora nos encontremos numa realidade que, desde então, modificou profundamente o modo de percepcionar a alteridade cultural. Como é sabido, a compreensão da cultura clássica será sempre e inevitavelmente condicionada pelo contexto histórico a partir do qual se olha retrospectivamente para o mundo antigo, o que significa que diferentes épocas têm originado diferentes interpretações da Antiguidade. Desde o Renascimento até aos nossos dias, a imagem da cultura greco-romana foi-se transformando de acordo com o desenvolvimento das sensibilidades epocais, mas também, e juntamente, através das constantes descobertas que têm vindo a revelar novos dados sobre a própria Antiguidade. Se por um lado o ideal de «clássico» que herdámos – e que se difundiu amplamente na cultura geral – tem vindo a sofrer uma desconsideração cada vez mais acentuada, por outro lado a ciência da Antiguidade começa a trazer à luz uma compreensão do mundo clássico que, de acordo com o desenvolvimento das pesquisas e das mentalidades, questiona a ideia hegeliana da Grécia. A par de uma «classicidade» ainda reverenciada mas bastante desgastada, sendo frequentemente acusada de já nada de novo nos ter a dar, a crítica histórica, antropológica e etnográfica mostra-nos aspectos da cultura clássica – como a complexa rede de dinânicas inter e transculturais e o surgimento de um novo género literário, o romance – que ainda não penetraram no domínio comum da reflexão científica e cultural sobre o lugar do Ocidente num mundo em profunda transformação.Será a partir da segunda metade do século XVIII, com os famosos estudos de história da arte de Winckelmann, que a Grécia iniciará a sua ascensão em direcção ao lugar que lhe é atribuído actualmente, ou seja, o berço da civilização ocidental, sendo também a partir do trabalho deste autor – realizado sobretudo através do estudo de cópias romanas de originais gregos – que será definitivamente estabelecida a clara distinção entre cultura grega e cultura romana. Interessante será notar que, tal como sucedera no Renascimento, são os estudos sobre as artes plásticas que virão redefinir a compreensão sobre o mundo antigo: em pleno apogeu do racionalismo iluminista, este autor alemão propõe a famosa máxima sobre a arte grega, edle Einfalt und stille Grösse (“nobre simplicidade e serena grandeza”), como a fusão de um ideal estético com um ideal ético; considera a perfeição do Belo natural, alcançado pelos artistas gregos, indissociável da perfeição da Liberdade, não só cívica mas também intelectual, representada pelo desenvolvimento da filosofia e da democracia. Este ideal impulsionou fortemente, e em contemporâneo, o movimento estético do neoclassicismo e os movimentos revolucionários de finais do século XVIII.Por isso na França revolucionária as novas liberdades foram reinvendicadas também no nome de Winckelmann. Não só em livros e em opúsculos, mas também em discursos na Convention e em projectos oficiais, se declarou que a França deveria tornar-se numa nova Grécia, o império da liberdade que se transforma no império das artes (esta mesma doutrina forneceu a justificação ideológica para a transferência massiça de esculturas antigas de Roma para Paris; e com o mesmo objectivo chegaram de Roma a Paris os manuscritos de Winckelmann). [...] Mas o que Winckelmann prometia aos seus leitores não era unicamente a «liberdade grega» dos cidadãos no governo da instituições: era sobretudo a liberdade intelectual do indivíduo através da experiência estética. (S. Settis: 2004, pp. 48-49) Surge assim em França um entusiástico programa de «tecnologia moral», concebido como uma forma de «renovação moral e política da sociedade através da obra de arte» (ibidem, p.50), com o qual se pretendia cultivar os cidadãos, inclusivamente as massas iletradas, através do sentimento estético. Tomando o lugar das complexas formas do barroco e do rococó – tendência já iniciada na literatura com o arcadismo – a Natureza, pura e simples, deveria despertar no cidadão-esteta a racionalidade e o instinto de liberdade, ou seja, as mais naturais e universais inclinações humanas. «Mas um tal vocabulário universal (...) só poderia ser encontrado num único lugar, na arte grega (“clássica”), modelo atemporal porque produzido pela incorrupta cultura dos Gregos, em plena sintonia com a natureza por instinto e por intuito» (ibidem, p.52). Embora o alcance deste programa de renovação social não tenha sido tão abrangente quanto o esperado, influiu grandemente na burguesia dominante, tendo contribuído, sem dúvida alguma, para o apuramento da definição do conceito de «cultura clássica» tal como será cientificamente institucionalizada no século seguinte. Caberá à intelectualidade alemã de inícios do século XIX, liderada pelo pensamento de Hegel – inegavelmente dependente do trabalho de Winckelmann – a gigantesca sistematização académica do mundo antigo, em que a cultura grega será coroada como a «pátria do Ocidente». Friedrich August Wolf é o responsável pela inauguração da Ciência da Antiguidade, ao publicar a Darstellung der Alterthumswissenschaft (1807), a “Exposição da Ciência da Antiguidade Clássica”, manifesto que consagra os estudos clássicos como uma área disciplinar, científica e autónoma, nas instituições académicas. Organizada em vinte e quatro disciplinas, esta ciência irá dar origem a uma brilhante e incomparável geração de classicistas e a uma profunda reforma programática dos currículos escolares e universitários – estendida posteriormente a outras nações – em que a cultura clássica é elevada ao lugar de honra de qualquer sistema educativo: «nestas escolas os filhos das élites alemãs foram transformados em banqueiros, agentes da bolsa e oficiais do exército que citavam em grego. Revolucionários como Marx e reaccionários como Lagarde foram todos eles o produto deste sistema educativo, e teriam podido com extrema facilidade acusar-se reciprocamente tanto em grego como em alemão» (Anthony Grafton, “Germanograecia”, in Settis: 2001, p. 1267) É precisamente desta época áurea dos estudos clássicos que chega até aos nossos dias a ideia hegeliana, tantas vezes, mas cada vez mais inconscientemente, repetida de que «nós, os ocidentais, somos gregos».


Exceptuando os poucos resistentes que ainda se dedicam ao estudo científico da Antiguidade clássica, assim como aqueles que dela fazem a base consciente da sua formação cultural, é cada vez maior o número dos que afirmam, sem a mais pequena noção do que significa «ser grego», que a Grécia é o berço do Ocidente. O conhecimento aprofundado do mundo antigo é considerado, por muitos, como desnecessário e obsoleto, embora ninguém duvide de que a identidade ocidental tenha as suas raízes na cultura greco-romana. «Nós somos gregos» é uma frase tantas vezes repetida nas nossas escolas e universidades onde a Antiguidade é votada, contudo, a um estudo cada vez mais superficial e marginal. Formou-se, na cultura geral, uma certeza sobre a origem do Ocidente que dispensa, paradoxalmente, uma relação em primeira mão com essa mesma origem. Reflectir sobre a Antiguidade clássica e sobre o seu sentido no actual panorama civilizacional implica ter em conta, necessariamente, que o mundo se encontra em pleno processo de globalização planetária. Numa escala nunca antes vista, diferentes raças, tradições e culturas estão em permanente contacto e confronto, sendo impossível evitar a relativização e a descentralização culturais. Contudo, somos herdeiros de uma imagem da cultura greco-romana, criada na Alemanha do século XIX, em que Hegel idealizou a Grécia como o centro de uma civilização culturalmente isolada em relação a todos os povos que se encontram à sua volta. Foi a partir do binómio gregos/não-gregos, ou gregos/bárbaros, que se desenvolveu a consciência de uma civilização ocidental que se compreende a si própria como sendo especificamente original – e frequentemente superior – face a todas as culturas não-ocidentais. É essa a imagem, historicamente condicionada pelo contexto cultural de há duzentos anos atrás, que continua a vigorar como o pilar da identidade europeia e ocidental, embora nos encontremos numa realidade que, desde então, modificou profundamente o modo de percepcionar a alteridade cultural. Como é sabido, a compreensão da cultura clássica será sempre e inevitavelmente condicionada pelo contexto histórico a partir do qual se olha retrospectivamente para o mundo antigo, o que significa que diferentes épocas têm originado diferentes interpretações da Antiguidade. Desde o Renascimento até aos nossos dias, a imagem da cultura greco-romana foi-se transformando de acordo com o desenvolvimento das sensibilidades epocais, mas também, e juntamente, através das constantes descobertas que têm vindo a revelar novos dados sobre a própria Antiguidade. Se por um lado o ideal de «clássico» que herdámos – e que se difundiu amplamente na cultura geral – tem vindo a sofrer uma desconsideração cada vez mais acentuada, por outro lado a ciência da Antiguidade começa a trazer à luz uma compreensão do mundo clássico que, de acordo com o desenvolvimento das pesquisas e das mentalidades, questiona a ideia hegeliana da Grécia. A par de uma «classicidade» ainda reverenciada mas bastante desgastada, sendo frequentemente acusada de já nada de novo nos ter a dar, a crítica histórica, antropológica e etnográfica mostra-nos aspectos da cultura clássica – como a complexa rede de dinânicas inter e transculturais e o surgimento de um novo género literário, o romance – que ainda não penetraram no domínio comum da reflexão científica e cultural sobre o lugar do Ocidente num mundo em profunda transformação.Será a partir da segunda metade do século XVIII, com os famosos estudos de história da arte de Winckelmann, que a Grécia iniciará a sua ascensão em direcção ao lugar que lhe é atribuído actualmente, ou seja, o berço da civilização ocidental, sendo também a partir do trabalho deste autor – realizado sobretudo através do estudo de cópias romanas de originais gregos – que será definitivamente estabelecida a clara distinção entre cultura grega e cultura romana. Interessante será notar que, tal como sucedera no Renascimento, são os estudos sobre as artes plásticas que virão redefinir a compreensão sobre o mundo antigo: em pleno apogeu do racionalismo iluminista, este autor alemão propõe a famosa máxima sobre a arte grega, edle Einfalt und stille Grösse (“nobre simplicidade e serena grandeza”), como a fusão de um ideal estético com um ideal ético; considera a perfeição do Belo natural, alcançado pelos artistas gregos, indissociável da perfeição da Liberdade, não só cívica mas também intelectual, representada pelo desenvolvimento da filosofia e da democracia. Este ideal impulsionou fortemente, e em contemporâneo, o movimento estético do neoclassicismo e os movimentos revolucionários de finais do século XVIII.Por isso na França revolucionária as novas liberdades foram reinvendicadas também no nome de Winckelmann. Não só em livros e em opúsculos, mas também em discursos na Convention e em projectos oficiais, se declarou que a França deveria tornar-se numa nova Grécia, o império da liberdade que se transforma no império das artes (esta mesma doutrina forneceu a justificação ideológica para a transferência massiça de esculturas antigas de Roma para Paris; e com o mesmo objectivo chegaram de Roma a Paris os manuscritos de Winckelmann). [...] Mas o que Winckelmann prometia aos seus leitores não era unicamente a «liberdade grega» dos cidadãos no governo da instituições: era sobretudo a liberdade intelectual do indivíduo através da experiência estética. (S. Settis: 2004, pp. 48-49) Surge assim em França um entusiástico programa de «tecnologia moral», concebido como uma forma de «renovação moral e política da sociedade através da obra de arte» (ibidem, p.50), com o qual se pretendia cultivar os cidadãos, inclusivamente as massas iletradas, através do sentimento estético. Tomando o lugar das complexas formas do barroco e do rococó – tendência já iniciada na literatura com o arcadismo – a Natureza, pura e simples, deveria despertar no cidadão-esteta a racionalidade e o instinto de liberdade, ou seja, as mais naturais e universais inclinações humanas. «Mas um tal vocabulário universal (...) só poderia ser encontrado num único lugar, na arte grega (“clássica”), modelo atemporal porque produzido pela incorrupta cultura dos Gregos, em plena sintonia com a natureza por instinto e por intuito» (ibidem, p.52). Embora o alcance deste programa de renovação social não tenha sido tão abrangente quanto o esperado, influiu grandemente na burguesia dominante, tendo contribuído, sem dúvida alguma, para o apuramento da definição do conceito de «cultura clássica» tal como será cientificamente institucionalizada no século seguinte. Caberá à intelectualidade alemã de inícios do século XIX, liderada pelo pensamento de Hegel – inegavelmente dependente do trabalho de Winckelmann – a gigantesca sistematização académica do mundo antigo, em que a cultura grega será coroada como a «pátria do Ocidente». Friedrich August Wolf é o responsável pela inauguração da Ciência da Antiguidade, ao publicar a Darstellung der Alterthumswissenschaft (1807), a “Exposição da Ciência da Antiguidade Clássica”, manifesto que consagra os estudos clássicos como uma área disciplinar, científica e autónoma, nas instituições académicas. Organizada em vinte e quatro disciplinas, esta ciência irá dar origem a uma brilhante e incomparável geração de classicistas e a uma profunda reforma programática dos currículos escolares e universitários – estendida posteriormente a outras nações – em que a cultura clássica é elevada ao lugar de honra de qualquer sistema educativo: «nestas escolas os filhos das élites alemãs foram transformados em banqueiros, agentes da bolsa e oficiais do exército que citavam em grego. Revolucionários como Marx e reaccionários como Lagarde foram todos eles o produto deste sistema educativo, e teriam podido com extrema facilidade acusar-se reciprocamente tanto em grego como em alemão» (Anthony Grafton, “Germanograecia”, in Settis: 2001, p. 1267) É precisamente desta época áurea dos estudos clássicos que chega até aos nossos dias a ideia hegeliana, tantas vezes, mas cada vez mais inconscientemente, repetida de que «nós, os ocidentais, somos gregos».

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