Os Austricos estao na moda e parecem ser os gurus de uma parte significativa da nova direita liberal portuguesa (por exemplo estes e aqueles). Para nao ser acusado de ignorancia ou de invocar meros preconceitos ideologicos, decidi visitar o celebre Instituto Mises. Deparei-me com um texto do proprio (Human Action), que julgo ser uma especie de manifesto do movimento. Aqui ficam algumas citacoes, seguidas do meu comentario."One must study the laws of human action and social cooperation as the physicist studies the laws of nature. Human action and social cooperation seen as the object of a science of given relations, no longer as a normative discipline of things that ought to be -this was a revolution of tremendous consequences for knowledge and philosophy as well as for social action""Choosing determines all human decisions. In making his choice man chooses not only between various material things and services. All human values are offered for option""It is true that economics is a theoretical science and as such abstains from any judgment of value. It is not its task to tell people what ends they should aim at"A argumentacao depende do pressuposto que Saber ou conhecer algo consiste em formular leis. Logo, se existe uma coisa chamada comportamento ou accao humana, torna-se necessario que existam leis que expliquem esses fenomenos. Mas porque? Isto e um juizo a priori arbitrario que nao tem qualquer justificacao, para alem de um preconceito positivista -a nao ser que se estipule que o modelo que surgiu com a revolucao cientifica do sec XVII esgota necessariamente as formas de saber. Objectos estudados pelas ciencias naturais podem ser abordados usando leis, mas os seres humanos nao sao objectos. Nao sei se estes senhores estao cientes disto, mas a interpretacao do mundo como algo que pode ser explicado/entendido usando leis tem uma historia e depende de pressupostos ontologicos que nao se aplicam aos seres humanos. Ja aqui escrevi sobre isto ((1,2, 3, 4 , 5, 6, 7). Adiante.Nos somos self-interpretating beings. Isto significa que nos somos constituidos pelas nossas interpretacoes e nao existimos independentemente delas. Mas estas "interpretacoes" nao resultam de accoes de um individuo; elas sao algo que o individuo "e" antes de fazer o que quer que seja, e sao-nos dadas pelo contexto ou cultura onde existimos. Nos somos uma "entidade" para quem as coisas sao sempre e necessariamente mais ou menos importantes, significativas, indiferentes, positivas, negativas, mas, boas, prazenteiras, ameacadoras, etc...Mas isto nao e um argumento empirico. E ontologico. Logo, antes de fazermos qualquer juizo que seja sobre o mundo que nos rodeia, esse mundo ja esta sempre e necessariamente pre-interpretado e e sempre e necessariamente algo que e significativo para nos. Ninguem existe num mundo neutro ou sem significado, sobre o qual projecta as suas avaliacoes subjectivas. Isto e simplesmente impossivel, pois tal implicaria que eu escolho A ou B porque quero, o que e uma tautologia. Nao seria tautologico se estivessemos a falar de pulsoes ou instintos animais, mas o fenomeno de escolha nao pode ser reduzido a apenas a isso. Algumas preferencias sao obviamente subjectivas e dependem sobretudo de particularidades biologicas (gostar ou nao de chocolate, de coca-cola, etc...). Mas ser uma pessoa que escolhe nao se reduz a isto, pois so os animais podem ser entendidos dessa forma.A escolha nao pode ser o fenomeno primordial, pois as escolhas que fazemos so podem ser entendidas (por outros e por nos proprios) em relacao a um background ao qual respondemos e onde estamos sempre situados. A escolha pressupoe algo que nao e ele proprio escolhido, pois, para que ela seja possivel, e necessario que eu interprete diferentes objectos como algo que se impoe, uma especie de intimacao. Eles sao algo que merece a minha atencao, devocao, dedicacao, amor, paixao, repulsa, etc.... Este "merece" e fundamental, pois uma das coisas que distingue os humanos dos animais e a possibilidade de sentir admiracao por algo. Nada disto e restrictivo -como se as coisas nos dessem ordens as quais alguem que ja "e" se teria de vergar. Pelo contrario. Estas "restricoes" sao positivas (o mundo humano e social onde vivemos so se torna possivel atraves delas), pois sem isso nao seriamos mais do que um animal. Ou seja, o que distingue o ser humano do animal nao, sobretudo, e a capacidade de escolher, mas primordialmente o facto de existirmos num mundo qualitativamente estruturado sem o qual nao seriamos pessoas. Eu tenho de existir (argumento ontologico) num espaco etico que me da uma certa orientacao, uma abertura ou exposicao para um mundo de valor(es). Aquilo que eu sou "e" esta orientacao, esta abertura, pois sem ela eu nao seria uma pessoa nem poderia escolher. Ja aqui escrevi isto, mas repito: certas relacoes nao sao exteriores ao individuo, mas constitutivas da sua propria indentidade. Sera que faz sentido dizer que a minha mae, uma mesa, ou uma banana sao apenas coisas neutras sobre as quais um eu que ja existe projecta os seus valores? Ou sera que a palavra mae, mesa e banana ja tem necessariamente um significado que me orienta para relacoes partiulares com eles antes de eu escolher seja o que for?Mises assevera que esta escola foi revolucionaria para a filosofia, mas isto cheira-me a ignorancia ou simples auto-elogio. Pode ter sido revolucionario para muita coisa, mas nao foi certamente para a filosofia e muito menos para a maioria das areas que se dedicam ao estudo/interpretacao de fenomenos humanos. Por alguma razao Aristotles separou a filosofia pratica da teorica, pois ja ha 2500 anos que se percebeu que se havia alguma coisa que distinguia o homem dos outros animais era a sua dimensao essencialmente normativa (a natureza de que fala Aristoteles nao e a natureza mecanistica de que trata a ciencia moderna -ela e teleologica, logo normativa). O prestigio das ciencias naturais interrompeu este ciclo, mas desde o sec XIX que esse paradigma tem sido posto em causa. As ciencias humanas perceberam que estudar o homem segundo abordagens que rejeitam o elemento normativo -que ignora ou anula as categorias eticas e as relacoes atraves das quais ele se interpreta- leva necessariamnete a um beco sem saida. Nao e que nao se possa escolher outro caminho, mas, seja ele qual for, ele fica sempre aquem do humano.Uma das coisas que nos leva a investigar algo e a admiracao. O desejo de conhecimento e uma especie de amor, de deslumbramento que nao e explicado pelo conhecimento, mas que o pressupoe. A admiracao nao se estuda, reconhece-se, pois e algo que nos transcende e que da significado a nossa vida. Quem concordar com este ponto tem de reconhecer que ele representa rejeicao da prioridade do sujeito na constituicao de um mundo de significados (um dos postulados da Escola Austriaca) Estes podem obviamente ser re-interpretados, criticados, articulados, mas nunca esta ao nosso alcance atingir uma perspectiva que os neutralize por completo e que trate o individuo como se este fosse o centro do mundo. E curioso que o Mises comece o seu tratado de mais de 800 paginas negando este principio fundamental.Este post tera continuacao...(coloquei tres pequenas notas nos comentarios)
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Os Austricos estao na moda e parecem ser os gurus de uma parte significativa da nova direita liberal portuguesa (por exemplo estes e aqueles). Para nao ser acusado de ignorancia ou de invocar meros preconceitos ideologicos, decidi visitar o celebre Instituto Mises. Deparei-me com um texto do proprio (Human Action), que julgo ser uma especie de manifesto do movimento. Aqui ficam algumas citacoes, seguidas do meu comentario."One must study the laws of human action and social cooperation as the physicist studies the laws of nature. Human action and social cooperation seen as the object of a science of given relations, no longer as a normative discipline of things that ought to be -this was a revolution of tremendous consequences for knowledge and philosophy as well as for social action""Choosing determines all human decisions. In making his choice man chooses not only between various material things and services. All human values are offered for option""It is true that economics is a theoretical science and as such abstains from any judgment of value. It is not its task to tell people what ends they should aim at"A argumentacao depende do pressuposto que Saber ou conhecer algo consiste em formular leis. Logo, se existe uma coisa chamada comportamento ou accao humana, torna-se necessario que existam leis que expliquem esses fenomenos. Mas porque? Isto e um juizo a priori arbitrario que nao tem qualquer justificacao, para alem de um preconceito positivista -a nao ser que se estipule que o modelo que surgiu com a revolucao cientifica do sec XVII esgota necessariamente as formas de saber. Objectos estudados pelas ciencias naturais podem ser abordados usando leis, mas os seres humanos nao sao objectos. Nao sei se estes senhores estao cientes disto, mas a interpretacao do mundo como algo que pode ser explicado/entendido usando leis tem uma historia e depende de pressupostos ontologicos que nao se aplicam aos seres humanos. Ja aqui escrevi sobre isto ((1,2, 3, 4 , 5, 6, 7). Adiante.Nos somos self-interpretating beings. Isto significa que nos somos constituidos pelas nossas interpretacoes e nao existimos independentemente delas. Mas estas "interpretacoes" nao resultam de accoes de um individuo; elas sao algo que o individuo "e" antes de fazer o que quer que seja, e sao-nos dadas pelo contexto ou cultura onde existimos. Nos somos uma "entidade" para quem as coisas sao sempre e necessariamente mais ou menos importantes, significativas, indiferentes, positivas, negativas, mas, boas, prazenteiras, ameacadoras, etc...Mas isto nao e um argumento empirico. E ontologico. Logo, antes de fazermos qualquer juizo que seja sobre o mundo que nos rodeia, esse mundo ja esta sempre e necessariamente pre-interpretado e e sempre e necessariamente algo que e significativo para nos. Ninguem existe num mundo neutro ou sem significado, sobre o qual projecta as suas avaliacoes subjectivas. Isto e simplesmente impossivel, pois tal implicaria que eu escolho A ou B porque quero, o que e uma tautologia. Nao seria tautologico se estivessemos a falar de pulsoes ou instintos animais, mas o fenomeno de escolha nao pode ser reduzido a apenas a isso. Algumas preferencias sao obviamente subjectivas e dependem sobretudo de particularidades biologicas (gostar ou nao de chocolate, de coca-cola, etc...). Mas ser uma pessoa que escolhe nao se reduz a isto, pois so os animais podem ser entendidos dessa forma.A escolha nao pode ser o fenomeno primordial, pois as escolhas que fazemos so podem ser entendidas (por outros e por nos proprios) em relacao a um background ao qual respondemos e onde estamos sempre situados. A escolha pressupoe algo que nao e ele proprio escolhido, pois, para que ela seja possivel, e necessario que eu interprete diferentes objectos como algo que se impoe, uma especie de intimacao. Eles sao algo que merece a minha atencao, devocao, dedicacao, amor, paixao, repulsa, etc.... Este "merece" e fundamental, pois uma das coisas que distingue os humanos dos animais e a possibilidade de sentir admiracao por algo. Nada disto e restrictivo -como se as coisas nos dessem ordens as quais alguem que ja "e" se teria de vergar. Pelo contrario. Estas "restricoes" sao positivas (o mundo humano e social onde vivemos so se torna possivel atraves delas), pois sem isso nao seriamos mais do que um animal. Ou seja, o que distingue o ser humano do animal nao, sobretudo, e a capacidade de escolher, mas primordialmente o facto de existirmos num mundo qualitativamente estruturado sem o qual nao seriamos pessoas. Eu tenho de existir (argumento ontologico) num espaco etico que me da uma certa orientacao, uma abertura ou exposicao para um mundo de valor(es). Aquilo que eu sou "e" esta orientacao, esta abertura, pois sem ela eu nao seria uma pessoa nem poderia escolher. Ja aqui escrevi isto, mas repito: certas relacoes nao sao exteriores ao individuo, mas constitutivas da sua propria indentidade. Sera que faz sentido dizer que a minha mae, uma mesa, ou uma banana sao apenas coisas neutras sobre as quais um eu que ja existe projecta os seus valores? Ou sera que a palavra mae, mesa e banana ja tem necessariamente um significado que me orienta para relacoes partiulares com eles antes de eu escolher seja o que for?Mises assevera que esta escola foi revolucionaria para a filosofia, mas isto cheira-me a ignorancia ou simples auto-elogio. Pode ter sido revolucionario para muita coisa, mas nao foi certamente para a filosofia e muito menos para a maioria das areas que se dedicam ao estudo/interpretacao de fenomenos humanos. Por alguma razao Aristotles separou a filosofia pratica da teorica, pois ja ha 2500 anos que se percebeu que se havia alguma coisa que distinguia o homem dos outros animais era a sua dimensao essencialmente normativa (a natureza de que fala Aristoteles nao e a natureza mecanistica de que trata a ciencia moderna -ela e teleologica, logo normativa). O prestigio das ciencias naturais interrompeu este ciclo, mas desde o sec XIX que esse paradigma tem sido posto em causa. As ciencias humanas perceberam que estudar o homem segundo abordagens que rejeitam o elemento normativo -que ignora ou anula as categorias eticas e as relacoes atraves das quais ele se interpreta- leva necessariamnete a um beco sem saida. Nao e que nao se possa escolher outro caminho, mas, seja ele qual for, ele fica sempre aquem do humano.Uma das coisas que nos leva a investigar algo e a admiracao. O desejo de conhecimento e uma especie de amor, de deslumbramento que nao e explicado pelo conhecimento, mas que o pressupoe. A admiracao nao se estuda, reconhece-se, pois e algo que nos transcende e que da significado a nossa vida. Quem concordar com este ponto tem de reconhecer que ele representa rejeicao da prioridade do sujeito na constituicao de um mundo de significados (um dos postulados da Escola Austriaca) Estes podem obviamente ser re-interpretados, criticados, articulados, mas nunca esta ao nosso alcance atingir uma perspectiva que os neutralize por completo e que trate o individuo como se este fosse o centro do mundo. E curioso que o Mises comece o seu tratado de mais de 800 paginas negando este principio fundamental.Este post tera continuacao...(coloquei tres pequenas notas nos comentarios)