vbfsousa@hotmail.com O meu quarto já acoitava um exemplar da Constituição da República. Contudo, ultrapassado devido ao facto de não englobar a última revisão constitucional, adquiri a reformulada Constituição com o Público, ontem. Ainda não tive tempo para esquadrinhar a serôdia Constituição e a nova, comparando-as, nomeadamente no que às autonomias concerne. Por isso, e respeitando o repúdio que sinto pela opinião leviana, não enveredarei por esses trilhos, optando por voltar a assestar obuses contra aqueles que, passiva ou activamente, embusteiam “o povo”.
Já asseverei, avonde, que sou um democrata porque acredito na benignidade da Democracia. Apesar da arreigada crença de que a Democracia é o menos enfermo regime alguma vez engendrado, porfio para que os meus ideais não obnubilem a minha visão. Como consequência da distinção entre utopia e realidade surge a amargura, por constatar que, depois de 30 anos de “democracia”, há uma ingente discrepância entre a letra constitucional e os actos praticados.
Qualquer Constituição é rotulada de “texto fundamental”. Sendo o sustentáculo do regime democrático, é penoso verificar que, para a asfixiante maioria do povo português, o “texto fundamental” é despiciendo ou ignoto. Por isso, como a “pobre ceifeira” de Fernando Pessoa, o povo é ludibriado e canta, ledo e inconsciente. Com uma indigência cívico/cultural excruciante, grande parte dos portugueses é uma turba de pobres ceifeiras. Eu também. Mas não quero soçobrar.
Seria mais aprazível abolir o pensamento e rebolar no esterco, metamorfoseado pela inconsciência em veludo castanho. Seria mais fácil agir como o denodado Dom Quixote, que vislumbrava na rude Dulcineia uma venustidade inigualável. Mas Dom Quixote imaginava inimigos, trespassando ovelhas, com a sua temível adaga, procurando os embuçados gladiadores que sob a lã se escondiam. Eu não crio inimigos. Sem ser fausto em perspicuidade, identifico-os. Diviso os que utilizam a Constituição como se frequentassem um prostíbulo, porquanto se socorrem dela nos momentos agónicos, surrando-a e repudiando-a quando os intentos foram alcançados. São os chulos da Constituição, actividade ilegal em Portugal, tal como a prostituição. Todavia, apesar de as autoridades saberem que a prostituição grassa, pouco fazem para que a lei se cumpra. Porquê? Porque o negócio é mastodôntico. Os chulos da Constituição são muitos, o que redunda na promulgação da actividade ilícita, através da inércia, por parte da autoridade máxima: o Presidente da República. O máximo magistrado da Nação, quando empossado, profere estas límpidas, e emocionantes, palavras: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.” Um logro solene…
Não conheço um único político que manifeste a intenção de esclarecer os eleitores acerca de características básicas do nosso regime. Aproximam-se eleições legislativas e, como é habitual, o protagonismo incide sobre os dois putativos candidatos a primeiro-ministro. Putativos porquê? Porque a maioria supõe algo que não existe. Não há, em Portugal, candidatos a primeiro-ministro. Em causa, nas eleições legislativas, está a composição da Assembleia da República, sendo o cargo de primeiro-ministro um epifenómeno. A Constituição é cristalina quando, no Título IV, Capítulo II, Artigo 187º, prescreve: “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais”. Isto significa, segundo a minha dedução, que Portugal privilegia o parlamentarismo ou, com maior correcção, a Democracia Representativa. O texto basilar, no Título III, Capítulo I, artigo 147º, estabelece que “A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses”, o que significa que os eleitores votam, directamente, nos deputados dos seus círculos eleitorais. Eu, como madeirense, não votarei em Sócrates, Santana, Portas, Jerónimo, Louça. Beneficiarei – imaginemos – uma das listas que concorrem à Assembleia pelo meu círculo eleitoral. Posto isto, fica claro que os partidos apresentam um número de listas proporcional ao número de círculos eleitorais, ou optam por convergir as suas energias para determinados círculos. Reza assim a Constituição: “ Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais (…)”
Congratulo-o, tenaz leitor, se lê estas linhas. Foi um fastidioso périplo, mas o zénite está próximo. E roço o zénite ao aludir ao texto de Vital Moreira, integrado no Público de ontem. Vital Moreira é um preclaro constitucionalista, com quem não pretendo manter uma derriça sobre a Constituição. Seria petulância, com morte certa. No artigo referido, Vital Moreira carrega o archote da clarificação e advoga a “inexistência de mudança de paradigma constitucional”, ao contrário do que muitos outros postularam, após a decisão do Presidente da República.
Vital Moreira, como é consabido, subscreve o veredicto de Sampaio e, entre outras razões emitidas, foca a míngua de legitimidade do último Governo, “cujo primeiro-ministro foi nomeado em substituição de outro, sem ter passado por eleições”. Mas qual é a patologia inerente a uma substituição de primeiro-ministro? Como escreveu o constitucionalista, o Presidente nomeou Santana Lopes, ouvidos os partidos da maioria parlamentar. Algum atropelo constitucional? Pelo contrário. Tudo conforme as directrizes da Constituição. Sem mácula.
O modelo do nosso regime favorece a possibilidade de o primeiro-ministro ser revezado, sem que haja a necessidade de recorrer a eleições. Por isso, os que, em Julho, incitavam o Presidente da República a empossar Santana Lopes, alegando que existia uma maioria parlamentar sólida que o escorava, estavam repletos de razão. Constitucionalmente, note-se. Na prática, o povo elege o primeiro-ministro, o que gera cataclismos quando há uma substituição no comando do Governo. Os guardiães da Constituição, em Julho passado, exibiram a sua perfídia e dissimulação. Fomentam a personalização das eleições legislativas, ajudam a desviar todo o protagonismo para os dois putativos candidatos a primeiro-ministro e, depois, como pudicas donzelas, ruborescem e lançam clamores de agonia, quando lobrigam as violações a que a Constituição é sujeita... Alegaram que o povo escolheu os seus representantes, cujas funções não cessaram com o avatar de Durão Barroso em José Manuel Barroso. Choldra execrável! Portugal vive sob a ditadura das trapaças. É útil a alienação do povo. É útil porque, se os eleitores votassem em função do que prevê a Constituição, muitos dos comensais que se aglomeram nas Assembleias morriam à fome… Quantos madeirenses conhecem os seus conterrâneos que, na Assembleia da República, se repoltreiam a expensas do líder regional e nacional do PSD? Foram os madeirenses que abriram as ataviadas portas da Assembleia a Guilherme Silva e outros 4. Quantos daqueles que votaram no PSD conhecem o representante dessa escola de sinecuristas, denominada por JSD? Quantos daqueles que votaram no PSD, nas últimas legislativas, viam no logótipo do partido as faces de Alberto João e de Durão Barroso? Quantos? E querem que sorva o logro da democracia representativa… A frase de Guilherme Silva, no Parlamento, há alguns dias, só podia existir no Inimigo Público. Não recorda, prezado leitor? Pois Guilherme Silva garantiu que, entre o Presidente da República e qualquer deputado, não há assimetrias quanto à legitimidade democrática… Será Guilherme Silva um atoleimado ou um embusteiro? Talvez é a fusão dos dois ingredientes… Talvez.
Enquanto decorre esta estéril cogitação, a pobre ceifeira continua na labuta, sempre jovial. Visitemo-la, guiados pelo Mestre.
Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões para cantar que a vida. Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente está pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai! Fernando Pessoa Vou embora. Vai permanecer ao lado da pobre ceifeira? Então adeus, “cadáver adiado que procria”.P.S.: Sobre as incongruências e as adulterações que procuro desvendar também escreveu José Manuel Fernandes, no Editorial de ontem. Peço o seu indulto por só lhe alertar agora. Sendo os desígnios semelhantes, a mestria do Director do Público poupá-lo-ia ao calvário que agora termina...
Categorias
Entidades
vbfsousa@hotmail.com O meu quarto já acoitava um exemplar da Constituição da República. Contudo, ultrapassado devido ao facto de não englobar a última revisão constitucional, adquiri a reformulada Constituição com o Público, ontem. Ainda não tive tempo para esquadrinhar a serôdia Constituição e a nova, comparando-as, nomeadamente no que às autonomias concerne. Por isso, e respeitando o repúdio que sinto pela opinião leviana, não enveredarei por esses trilhos, optando por voltar a assestar obuses contra aqueles que, passiva ou activamente, embusteiam “o povo”.
Já asseverei, avonde, que sou um democrata porque acredito na benignidade da Democracia. Apesar da arreigada crença de que a Democracia é o menos enfermo regime alguma vez engendrado, porfio para que os meus ideais não obnubilem a minha visão. Como consequência da distinção entre utopia e realidade surge a amargura, por constatar que, depois de 30 anos de “democracia”, há uma ingente discrepância entre a letra constitucional e os actos praticados.
Qualquer Constituição é rotulada de “texto fundamental”. Sendo o sustentáculo do regime democrático, é penoso verificar que, para a asfixiante maioria do povo português, o “texto fundamental” é despiciendo ou ignoto. Por isso, como a “pobre ceifeira” de Fernando Pessoa, o povo é ludibriado e canta, ledo e inconsciente. Com uma indigência cívico/cultural excruciante, grande parte dos portugueses é uma turba de pobres ceifeiras. Eu também. Mas não quero soçobrar.
Seria mais aprazível abolir o pensamento e rebolar no esterco, metamorfoseado pela inconsciência em veludo castanho. Seria mais fácil agir como o denodado Dom Quixote, que vislumbrava na rude Dulcineia uma venustidade inigualável. Mas Dom Quixote imaginava inimigos, trespassando ovelhas, com a sua temível adaga, procurando os embuçados gladiadores que sob a lã se escondiam. Eu não crio inimigos. Sem ser fausto em perspicuidade, identifico-os. Diviso os que utilizam a Constituição como se frequentassem um prostíbulo, porquanto se socorrem dela nos momentos agónicos, surrando-a e repudiando-a quando os intentos foram alcançados. São os chulos da Constituição, actividade ilegal em Portugal, tal como a prostituição. Todavia, apesar de as autoridades saberem que a prostituição grassa, pouco fazem para que a lei se cumpra. Porquê? Porque o negócio é mastodôntico. Os chulos da Constituição são muitos, o que redunda na promulgação da actividade ilícita, através da inércia, por parte da autoridade máxima: o Presidente da República. O máximo magistrado da Nação, quando empossado, profere estas límpidas, e emocionantes, palavras: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.” Um logro solene…
Não conheço um único político que manifeste a intenção de esclarecer os eleitores acerca de características básicas do nosso regime. Aproximam-se eleições legislativas e, como é habitual, o protagonismo incide sobre os dois putativos candidatos a primeiro-ministro. Putativos porquê? Porque a maioria supõe algo que não existe. Não há, em Portugal, candidatos a primeiro-ministro. Em causa, nas eleições legislativas, está a composição da Assembleia da República, sendo o cargo de primeiro-ministro um epifenómeno. A Constituição é cristalina quando, no Título IV, Capítulo II, Artigo 187º, prescreve: “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais”. Isto significa, segundo a minha dedução, que Portugal privilegia o parlamentarismo ou, com maior correcção, a Democracia Representativa. O texto basilar, no Título III, Capítulo I, artigo 147º, estabelece que “A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses”, o que significa que os eleitores votam, directamente, nos deputados dos seus círculos eleitorais. Eu, como madeirense, não votarei em Sócrates, Santana, Portas, Jerónimo, Louça. Beneficiarei – imaginemos – uma das listas que concorrem à Assembleia pelo meu círculo eleitoral. Posto isto, fica claro que os partidos apresentam um número de listas proporcional ao número de círculos eleitorais, ou optam por convergir as suas energias para determinados círculos. Reza assim a Constituição: “ Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais (…)”
Congratulo-o, tenaz leitor, se lê estas linhas. Foi um fastidioso périplo, mas o zénite está próximo. E roço o zénite ao aludir ao texto de Vital Moreira, integrado no Público de ontem. Vital Moreira é um preclaro constitucionalista, com quem não pretendo manter uma derriça sobre a Constituição. Seria petulância, com morte certa. No artigo referido, Vital Moreira carrega o archote da clarificação e advoga a “inexistência de mudança de paradigma constitucional”, ao contrário do que muitos outros postularam, após a decisão do Presidente da República.
Vital Moreira, como é consabido, subscreve o veredicto de Sampaio e, entre outras razões emitidas, foca a míngua de legitimidade do último Governo, “cujo primeiro-ministro foi nomeado em substituição de outro, sem ter passado por eleições”. Mas qual é a patologia inerente a uma substituição de primeiro-ministro? Como escreveu o constitucionalista, o Presidente nomeou Santana Lopes, ouvidos os partidos da maioria parlamentar. Algum atropelo constitucional? Pelo contrário. Tudo conforme as directrizes da Constituição. Sem mácula.
O modelo do nosso regime favorece a possibilidade de o primeiro-ministro ser revezado, sem que haja a necessidade de recorrer a eleições. Por isso, os que, em Julho, incitavam o Presidente da República a empossar Santana Lopes, alegando que existia uma maioria parlamentar sólida que o escorava, estavam repletos de razão. Constitucionalmente, note-se. Na prática, o povo elege o primeiro-ministro, o que gera cataclismos quando há uma substituição no comando do Governo. Os guardiães da Constituição, em Julho passado, exibiram a sua perfídia e dissimulação. Fomentam a personalização das eleições legislativas, ajudam a desviar todo o protagonismo para os dois putativos candidatos a primeiro-ministro e, depois, como pudicas donzelas, ruborescem e lançam clamores de agonia, quando lobrigam as violações a que a Constituição é sujeita... Alegaram que o povo escolheu os seus representantes, cujas funções não cessaram com o avatar de Durão Barroso em José Manuel Barroso. Choldra execrável! Portugal vive sob a ditadura das trapaças. É útil a alienação do povo. É útil porque, se os eleitores votassem em função do que prevê a Constituição, muitos dos comensais que se aglomeram nas Assembleias morriam à fome… Quantos madeirenses conhecem os seus conterrâneos que, na Assembleia da República, se repoltreiam a expensas do líder regional e nacional do PSD? Foram os madeirenses que abriram as ataviadas portas da Assembleia a Guilherme Silva e outros 4. Quantos daqueles que votaram no PSD conhecem o representante dessa escola de sinecuristas, denominada por JSD? Quantos daqueles que votaram no PSD, nas últimas legislativas, viam no logótipo do partido as faces de Alberto João e de Durão Barroso? Quantos? E querem que sorva o logro da democracia representativa… A frase de Guilherme Silva, no Parlamento, há alguns dias, só podia existir no Inimigo Público. Não recorda, prezado leitor? Pois Guilherme Silva garantiu que, entre o Presidente da República e qualquer deputado, não há assimetrias quanto à legitimidade democrática… Será Guilherme Silva um atoleimado ou um embusteiro? Talvez é a fusão dos dois ingredientes… Talvez.
Enquanto decorre esta estéril cogitação, a pobre ceifeira continua na labuta, sempre jovial. Visitemo-la, guiados pelo Mestre.
Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões para cantar que a vida. Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente está pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai! Fernando Pessoa Vou embora. Vai permanecer ao lado da pobre ceifeira? Então adeus, “cadáver adiado que procria”.P.S.: Sobre as incongruências e as adulterações que procuro desvendar também escreveu José Manuel Fernandes, no Editorial de ontem. Peço o seu indulto por só lhe alertar agora. Sendo os desígnios semelhantes, a mestria do Director do Público poupá-lo-ia ao calvário que agora termina...