A minha Travessa do Ferreira

19-12-2009
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DICA SIM, DIA NÃOO sono das gralhasAntunes FerreiraGralhas vão recolhendo às ramagens dos oddós enquanto o Sol mergulha no Índico, em esplendor de tons avermelhados cada vez mais escuros. Aos bandos, milhentas. Já começa a apagar-se o céu de açafrão, sinal para os morcegos planarem, saídos dos recantos em que estavam pendurados de cabeça para baixo. Na praia, vacas ruminam, diligentes, sem saber porque o fazem – mas fazem. Chegam-se aos clientes, na maioria ocidentais, que as acham muito típicas. Alguns torcem o nariz.Maria Virgínia inclina-se na cadeira de praia para apanhar o maço de cigarros, escolhe um e mete-o nos lábios. Ele acende-o com o isqueiro Dupont de prata que o pai lhe oferecera quando o autorizara a fumar na presença dele. Onde já iam esses dezoito anos e o hotel Alfonso XII, em Sevilha, onde decorrera o que se podia considerar a cerimónia permissiva.Com um hausto profundo ela engole o primeiro fumo. O que lhe acentua o arrulhar dos seios morenos plantados no generoso decote do corpete do sari. É uma mulher bela, disso não haja sombra de dúvida, e em cada gesto sensual. Perigosamente sensual pensa de si para si Rogério. Por entre unas aros da fumaça, ela sorri, os lábios apenas entreabertos, uma tentação. Já entrou nos trinta, viúva, um sonho vivo, real.Contra o que lhe é habitual, pois traja quase sempre à europeia, usa um sari vermelho escuro, com bordados, o peito mal contido no top rosa velho, aparentemente sem mais nada entre a seda do tecido e a pele de seda. Descalçou as sandálias a condizer, e desenha com o dedo grande do pé direito, uma cara redonda linear, na areia. Tem os Ray-ban puxados para o cabelo de azeviche. Parece absorta. Das ondas mansas, dos coqueiros, dos toldos de folhas de palmeira. Merecia uma foto, mas a digital está no carro. Ficará para outra vez. Oportunidades não hão de faltar.Avoluma-se o grasnar das aves negras, em contraponto ao suave marulhar da água na beira-mar. O engenheiro imagina-a, nua, deitada displicente numa otomana turca, maja de um Goya local, obviamente a desnuda, que a vestida não seria termo de comparação. Ela parece ler-lhe o pensamento no olhar, o que é que você está a congeminar, engenheiro?Nada, absolutamente nada, apenas apreciava a sua figura, parece uma tela. E ela, sorriso insidioso – de Goya? Levanta-se da cadeira de lona, espreguiça-se, fazendo sobressair os seios empinados naturalmente. Vou trocar de roupa e meter-me no mar. Você vem? Ao longe, há meninas também de sari que se passeiam na orla, molhando os pés. Os risos delas, cristalinos e sonoros são como o crepitar de labaredas benfazejas, mas que, desta ou daquela maneira, incendeiam.Você sabe, Rogério, é o costume da terra. Agora já se vêem muitos fatos de banho, os ocidentais trouxeram novos usos para cá, primeiro os hippies, depois os turistas. Há uns anos, quando nos visitaram uns primos de Lisboa, que traziam com eles os quatro filhos, um dos nossos, ainda pequenote, cinco, seis anos, perguntou à mãe se os primos de lá eram hippies ou turistas…Rogério traz o calção de banho vestido, sob as calças. É só baixa-las, tirar a t-shirt e já está. Virgínia é outro caso e outra coisa. Dirige-se para o bar, lá tem uma casa de banho que também é vestiário, não me posso despir aqui, na sua frente, ainda que tenha a certeza de que já viu muita mulher pelada, como dizem os brasileiros.Que sim, pois claro. De resto, também é órfão de mulher, que o mesmo é dizer viúvo, tal como ela. Mas acrescenta que houve mais. Ela solta uma gargalhada provocante, enquanto se dirige ao bar. Bar Restaurante Santaren, sem acento e com n. Ontem na Spices Farm descobrira que a guia se chamava Sera de Suza. Sara de Sousa, naturalmente. Os pais, informou a jovem, ainda falam Português em casa. Ela já não – mas compreende um pouquinho.O engenheiro segue Virgínia com olhos fascinados. Descalça, mesmo assim vai avançando na areia, ondulando os quadris, requebrando-se sem intenção, como se interpretasse uma dança de ventre no tampo da mesa, como lhe acontecera em Istambul, no Morocco. Não desprega dela, nem mesmo quando a mulher entra no reservado. E a imaginação continua a fervilhar.Sai a deusa. Um biquíni espampanante, só falta o fio dental, revela toda a geografia da morena debruada a branco e preto. Fica meio embasbacado, os calções são obscenos de antiquados, frente ao deslumbramento feminil. Com a mão tanjentando-lhe o braço peludo, engenheiro, vamos ou não vamos dar uns mergulhos? Vão.Muitas braçadas e flutuações depois, enxugados os corpos em toalhas felpudas, com Bar Restaurante Santaren marcadas, sentam-se à mesa para almoçar. Passou-lhe a emoção, baixara dentro da água, acalmara, não morrera, apenas adiara. Um peixe recheado, acabado de chegar da pesca, paparis de aperitivo, bojés com chutni de coentros também e um pratinho de pickles de manga, achar como se diz por estas bandas. E, obviamente, arroz branco, basmati.Começam de conversar sobre política, quem se lembraria, mas acontece cada coisa. Do tempo dos Portugueses já pouco resta neste particular. Os retratos dos vice-reis e pouco mais. Que ele tem de ir ver, saíram do Hidalcão, estão hoje no museu do Convento de São Francisco de Assis, de Assis, acentua ela, por aqui São Francisco é Xavier. E explica que estão lá todos a óleo, desde Dom Francisco de Almeida até ao General Vassalo e Silva, último Governador do então Estado Português da Índia.Prosseguem pelo Portugal de hoje, ela sabe quase tudo do 25 de Abril, não sei se lhe disseram mas eu sou descendente, o meu marido estudou em Lisboa, eu em Coimbra, conhecemo-nos por lá, namorámos entre as duas cidades. E deitámo-nos juntos pela primeira vez, à descoberta mútua, na pousada de Manteigas, fazia um frio de rachar pedras, mas na cama não. Sem papéis de casados, evidentemente. Só mais tarde demos o nó, já estava grávida do David, o primeiro filho.Mais um achamento. Não sabia que tinha filhos. Tenho, dois rapazes e uma rapariga. Eles, em Portugal, ela em Bangalore. Mas lá seguirá para as berças, comigo. E você? Duas raparigas e um machão latino. Como o pai? E volta a soltar gargalhadinhas um tanto acintosas, sem vergonha nem receios. Rir aqui ainda não tem imposto…Nós por lá, agora, e como você sabe muito bem, passado o tempo salazarento, temos a Democracia, ainda que por vezes não pareça. Rogério diz isto meio encabulado, meio descrente, tentado satirizar – mas, sobretudo ensaiando desculpar-se. E Maria Vitória apazigua-lhe a amargura, engenheiro não se amofine, cada dia é mais difícil equacionar e, sobretudo, guardar a Liberdade, Igualdade e Fraternidade made in Bastilha.Curioso. Muito curioso, mesmo. Ele pensava que o dia acabaria na cama, a hora da sesta não era propícia, a noite cálida é mais complacente, as recordações dos amores passados alimentá-los-iam. Mas, bolas, no que haviam de dar. E Maria Vitória num fôlego - sabe como se diz isso em concanim? Suatrantai, Ekponn e Bhauponn. As gralhas já não soltam grasnidos. Empoleiradas nos ramos - dormem. Não sonham.NR – Esta «coisa» espero que faça parte de um novo livreco que ando a tentar escrevinhar. Irei dando conhecimento (a quem nisso esteja interessado, ‘tralmente) do andar da carruagem. Que, pelo menos, já saiu da estação…


DICA SIM, DIA NÃOO sono das gralhasAntunes FerreiraGralhas vão recolhendo às ramagens dos oddós enquanto o Sol mergulha no Índico, em esplendor de tons avermelhados cada vez mais escuros. Aos bandos, milhentas. Já começa a apagar-se o céu de açafrão, sinal para os morcegos planarem, saídos dos recantos em que estavam pendurados de cabeça para baixo. Na praia, vacas ruminam, diligentes, sem saber porque o fazem – mas fazem. Chegam-se aos clientes, na maioria ocidentais, que as acham muito típicas. Alguns torcem o nariz.Maria Virgínia inclina-se na cadeira de praia para apanhar o maço de cigarros, escolhe um e mete-o nos lábios. Ele acende-o com o isqueiro Dupont de prata que o pai lhe oferecera quando o autorizara a fumar na presença dele. Onde já iam esses dezoito anos e o hotel Alfonso XII, em Sevilha, onde decorrera o que se podia considerar a cerimónia permissiva.Com um hausto profundo ela engole o primeiro fumo. O que lhe acentua o arrulhar dos seios morenos plantados no generoso decote do corpete do sari. É uma mulher bela, disso não haja sombra de dúvida, e em cada gesto sensual. Perigosamente sensual pensa de si para si Rogério. Por entre unas aros da fumaça, ela sorri, os lábios apenas entreabertos, uma tentação. Já entrou nos trinta, viúva, um sonho vivo, real.Contra o que lhe é habitual, pois traja quase sempre à europeia, usa um sari vermelho escuro, com bordados, o peito mal contido no top rosa velho, aparentemente sem mais nada entre a seda do tecido e a pele de seda. Descalçou as sandálias a condizer, e desenha com o dedo grande do pé direito, uma cara redonda linear, na areia. Tem os Ray-ban puxados para o cabelo de azeviche. Parece absorta. Das ondas mansas, dos coqueiros, dos toldos de folhas de palmeira. Merecia uma foto, mas a digital está no carro. Ficará para outra vez. Oportunidades não hão de faltar.Avoluma-se o grasnar das aves negras, em contraponto ao suave marulhar da água na beira-mar. O engenheiro imagina-a, nua, deitada displicente numa otomana turca, maja de um Goya local, obviamente a desnuda, que a vestida não seria termo de comparação. Ela parece ler-lhe o pensamento no olhar, o que é que você está a congeminar, engenheiro?Nada, absolutamente nada, apenas apreciava a sua figura, parece uma tela. E ela, sorriso insidioso – de Goya? Levanta-se da cadeira de lona, espreguiça-se, fazendo sobressair os seios empinados naturalmente. Vou trocar de roupa e meter-me no mar. Você vem? Ao longe, há meninas também de sari que se passeiam na orla, molhando os pés. Os risos delas, cristalinos e sonoros são como o crepitar de labaredas benfazejas, mas que, desta ou daquela maneira, incendeiam.Você sabe, Rogério, é o costume da terra. Agora já se vêem muitos fatos de banho, os ocidentais trouxeram novos usos para cá, primeiro os hippies, depois os turistas. Há uns anos, quando nos visitaram uns primos de Lisboa, que traziam com eles os quatro filhos, um dos nossos, ainda pequenote, cinco, seis anos, perguntou à mãe se os primos de lá eram hippies ou turistas…Rogério traz o calção de banho vestido, sob as calças. É só baixa-las, tirar a t-shirt e já está. Virgínia é outro caso e outra coisa. Dirige-se para o bar, lá tem uma casa de banho que também é vestiário, não me posso despir aqui, na sua frente, ainda que tenha a certeza de que já viu muita mulher pelada, como dizem os brasileiros.Que sim, pois claro. De resto, também é órfão de mulher, que o mesmo é dizer viúvo, tal como ela. Mas acrescenta que houve mais. Ela solta uma gargalhada provocante, enquanto se dirige ao bar. Bar Restaurante Santaren, sem acento e com n. Ontem na Spices Farm descobrira que a guia se chamava Sera de Suza. Sara de Sousa, naturalmente. Os pais, informou a jovem, ainda falam Português em casa. Ela já não – mas compreende um pouquinho.O engenheiro segue Virgínia com olhos fascinados. Descalça, mesmo assim vai avançando na areia, ondulando os quadris, requebrando-se sem intenção, como se interpretasse uma dança de ventre no tampo da mesa, como lhe acontecera em Istambul, no Morocco. Não desprega dela, nem mesmo quando a mulher entra no reservado. E a imaginação continua a fervilhar.Sai a deusa. Um biquíni espampanante, só falta o fio dental, revela toda a geografia da morena debruada a branco e preto. Fica meio embasbacado, os calções são obscenos de antiquados, frente ao deslumbramento feminil. Com a mão tanjentando-lhe o braço peludo, engenheiro, vamos ou não vamos dar uns mergulhos? Vão.Muitas braçadas e flutuações depois, enxugados os corpos em toalhas felpudas, com Bar Restaurante Santaren marcadas, sentam-se à mesa para almoçar. Passou-lhe a emoção, baixara dentro da água, acalmara, não morrera, apenas adiara. Um peixe recheado, acabado de chegar da pesca, paparis de aperitivo, bojés com chutni de coentros também e um pratinho de pickles de manga, achar como se diz por estas bandas. E, obviamente, arroz branco, basmati.Começam de conversar sobre política, quem se lembraria, mas acontece cada coisa. Do tempo dos Portugueses já pouco resta neste particular. Os retratos dos vice-reis e pouco mais. Que ele tem de ir ver, saíram do Hidalcão, estão hoje no museu do Convento de São Francisco de Assis, de Assis, acentua ela, por aqui São Francisco é Xavier. E explica que estão lá todos a óleo, desde Dom Francisco de Almeida até ao General Vassalo e Silva, último Governador do então Estado Português da Índia.Prosseguem pelo Portugal de hoje, ela sabe quase tudo do 25 de Abril, não sei se lhe disseram mas eu sou descendente, o meu marido estudou em Lisboa, eu em Coimbra, conhecemo-nos por lá, namorámos entre as duas cidades. E deitámo-nos juntos pela primeira vez, à descoberta mútua, na pousada de Manteigas, fazia um frio de rachar pedras, mas na cama não. Sem papéis de casados, evidentemente. Só mais tarde demos o nó, já estava grávida do David, o primeiro filho.Mais um achamento. Não sabia que tinha filhos. Tenho, dois rapazes e uma rapariga. Eles, em Portugal, ela em Bangalore. Mas lá seguirá para as berças, comigo. E você? Duas raparigas e um machão latino. Como o pai? E volta a soltar gargalhadinhas um tanto acintosas, sem vergonha nem receios. Rir aqui ainda não tem imposto…Nós por lá, agora, e como você sabe muito bem, passado o tempo salazarento, temos a Democracia, ainda que por vezes não pareça. Rogério diz isto meio encabulado, meio descrente, tentado satirizar – mas, sobretudo ensaiando desculpar-se. E Maria Vitória apazigua-lhe a amargura, engenheiro não se amofine, cada dia é mais difícil equacionar e, sobretudo, guardar a Liberdade, Igualdade e Fraternidade made in Bastilha.Curioso. Muito curioso, mesmo. Ele pensava que o dia acabaria na cama, a hora da sesta não era propícia, a noite cálida é mais complacente, as recordações dos amores passados alimentá-los-iam. Mas, bolas, no que haviam de dar. E Maria Vitória num fôlego - sabe como se diz isso em concanim? Suatrantai, Ekponn e Bhauponn. As gralhas já não soltam grasnidos. Empoleiradas nos ramos - dormem. Não sonham.NR – Esta «coisa» espero que faça parte de um novo livreco que ando a tentar escrevinhar. Irei dando conhecimento (a quem nisso esteja interessado, ‘tralmente) do andar da carruagem. Que, pelo menos, já saiu da estação…

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