O Expresso traz amanhã uma reportagem sobre Eduardo Lourenço, périplo pelos locais da sua infância e revisão do seu percurso intelectual, sublinhando o paradoxo - raro entre nós - de estarmos diante de um pensador de esquerda reverenciado pela direita.O paradoxo, no entanto, tem uma explicação simples.Antes de mais, grande parte da obra do ensaísta (a parte mais mediática, diga-se) é dedicada ao que ele próprio chamou "psicanálise mítica do destino português", subtítulo do clássico O Labirinto da Saudade. Lourenço analisa a identidade portuguesa como uma essência a-histórica, teleológica, imutável, una apesar da passagem do tempo e das diferenças internas, que se manifestaria na cultura, sobretudo literatura e arte, e nas relações com o exterior, sobretudo Espanha e Europa - também vistas como essências unas, imutáveis e teleológicas. As metáforas, tão frequentes na sua escrita poética ("psicanalise mitica" é apenas a mais óvia), personalizam o objecto a que chamamos Portugal.É uma visão ensaística muito diferente da que as ciências sociais, em particular a geografia e a história, nos deram na segunda metade do século XX, produzindo obras paradigmáticas como Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, de Orlando Ribeiro, ou Identificação de um País, de José Mattoso. O que o geógrafo e o historiador problematizam, interrogam, decompõem, a saber a realidade de uma nação, Lourenço aceita como um dado de facto, um "destino". Condensando vários tópicos obsessivos, outro dos seus livros chama-se mesmo Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade. Esta visão essencialista agrada à direita, que terçou armas pelo providencialismo da fundação de Portugal contra Herculano ou pelo mito dos brandos costumes da nossa colonização com Gilberto Freyre. E que não mudou assim tanto em matéria mitológica.Por outro lado, Eduardo Lourenço é hoje o maior divulgador de uma versão canónica da cultura nacional, concedendo lugar de destaque aos grandes autores (Pessoa, Eça, Camões) e aos temas obrigatórios do imaginário português (a saudade, claro, mas também a lusofonia). O que, recorde-se, não é exclusivo da direita. Basta lembrar a linha que vai de Teófilo Braga e do nacionalismo republicano a Miguel Torga e à oposição democrática, passando por António Sérgio - todos eles, não por acaso, alvo da curiosidade de Lourenço. Nos tempos que correm, porém, com a esquerda a abominar tudo o que soe a cânone e pátria, o ensaísta parece arrancado a essa árvore genealógica.Paradoxo? Talvez não. Como todos os intelectuais lusitanos desde Verney, profundamente cientes da distância que nos separa lá de fora, o fio condutor da reflexão não é tanto o lugar de Portugal no mundo, mas antes a relação de cada um de nós com Portugal e, assim, o lugar de cada um de nós no mundo. "Questão que tenho comigo mesmo", dizia o O`Neill. Eduardo Lourenço pode dizer o mesmo.
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O Expresso traz amanhã uma reportagem sobre Eduardo Lourenço, périplo pelos locais da sua infância e revisão do seu percurso intelectual, sublinhando o paradoxo - raro entre nós - de estarmos diante de um pensador de esquerda reverenciado pela direita.O paradoxo, no entanto, tem uma explicação simples.Antes de mais, grande parte da obra do ensaísta (a parte mais mediática, diga-se) é dedicada ao que ele próprio chamou "psicanálise mítica do destino português", subtítulo do clássico O Labirinto da Saudade. Lourenço analisa a identidade portuguesa como uma essência a-histórica, teleológica, imutável, una apesar da passagem do tempo e das diferenças internas, que se manifestaria na cultura, sobretudo literatura e arte, e nas relações com o exterior, sobretudo Espanha e Europa - também vistas como essências unas, imutáveis e teleológicas. As metáforas, tão frequentes na sua escrita poética ("psicanalise mitica" é apenas a mais óvia), personalizam o objecto a que chamamos Portugal.É uma visão ensaística muito diferente da que as ciências sociais, em particular a geografia e a história, nos deram na segunda metade do século XX, produzindo obras paradigmáticas como Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, de Orlando Ribeiro, ou Identificação de um País, de José Mattoso. O que o geógrafo e o historiador problematizam, interrogam, decompõem, a saber a realidade de uma nação, Lourenço aceita como um dado de facto, um "destino". Condensando vários tópicos obsessivos, outro dos seus livros chama-se mesmo Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade. Esta visão essencialista agrada à direita, que terçou armas pelo providencialismo da fundação de Portugal contra Herculano ou pelo mito dos brandos costumes da nossa colonização com Gilberto Freyre. E que não mudou assim tanto em matéria mitológica.Por outro lado, Eduardo Lourenço é hoje o maior divulgador de uma versão canónica da cultura nacional, concedendo lugar de destaque aos grandes autores (Pessoa, Eça, Camões) e aos temas obrigatórios do imaginário português (a saudade, claro, mas também a lusofonia). O que, recorde-se, não é exclusivo da direita. Basta lembrar a linha que vai de Teófilo Braga e do nacionalismo republicano a Miguel Torga e à oposição democrática, passando por António Sérgio - todos eles, não por acaso, alvo da curiosidade de Lourenço. Nos tempos que correm, porém, com a esquerda a abominar tudo o que soe a cânone e pátria, o ensaísta parece arrancado a essa árvore genealógica.Paradoxo? Talvez não. Como todos os intelectuais lusitanos desde Verney, profundamente cientes da distância que nos separa lá de fora, o fio condutor da reflexão não é tanto o lugar de Portugal no mundo, mas antes a relação de cada um de nós com Portugal e, assim, o lugar de cada um de nós no mundo. "Questão que tenho comigo mesmo", dizia o O`Neill. Eduardo Lourenço pode dizer o mesmo.