Há o sim que não reconhece qualquer dignidade do bem jurídico vida intra-uterina, insistindo em tratar o embrião por aquilo, em confundi-lo com uma unha do pé ou com um tumor que tem de ser extirpado do ventre materno. (A esses recomendava, entretanto, o diálogo com médicos e, bem assim, a leitura sistemática do nosso ordenamento jurídico que reconhece, a todos os níveis, e não apenas no plano penal, a tutela da pessoa humana na sua fase embrionária).
Há o sim que, não negando a bondade intrínseca do bem jurídico concretamente em causa, proclama, autistamente, a supremacia da liberdade materna, num claro desacerto quer acerca do momento do exercício – esgotante – desta, quer acerca da inolvidável conexão entre aquela e a responsabilidade a que não pode deixar de andar associada.
E há o sim que, salientando a dignidade do embrião e declarando a maldade do acto abortivo, adere ao fado da desgraçadinha.
Já ontem a Joana lembrou que o sim não é uniforme , apresentando, outrossim, diversos cambiantes.Há o sim que não reconhece qualquer dignidade do bem jurídico vida intra-uterina, insistindo em tratar o embrião por aquilo, em confundi-lo com uma unha do pé ou com um tumor que tem de ser extirpado do ventre materno. (A esses recomendava, entretanto, o diálogo com médicos e, bem assim, a leitura sistemática do nosso ordenamento jurídico que reconhece, a todos os níveis, e não apenas no plano penal, a tutela da pessoa humana na sua fase embrionária).Há o sim que, não negando a bondade intrínseca do bem jurídico concretamente em causa, proclama, autistamente, a supremacia da liberdade materna, num claro desacerto quer acerca do momento do exercício – esgotante – desta, quer acerca da inolvidável conexão entre aquela e a responsabilidade a que não pode deixar de andar associada.E há o sim que, salientando a dignidade do embrião e declarando a maldade do acto abortivo, adere ao fado da desgraçadinha.
Porque já muito foi dito aos primeiros, dirijo hoje as minhas palavras aos últimos, para lhes dizer que soa mal aquele fado.
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No plano do ser – ou melhor do que é –, o dito fado confunde-se, por vezes, com folclore. Pois que são os sequazes do sim, na veste de jornalistas, a trazer a lume inúmeras histórias em que a dita desgraçadinha está ausente. Só nos últimos tempos temos sido presenteados com relatos diversos em que o aborto é assumido como opção reiterada para salvaguardar uma carreira ou como alternativa à pílula – que engorda – ou ao preservativo – que é desagradável. Lembro-me, a título de exemplo, daquela senhora que, porque se tivesse mais filhos não os poderia ter no ensino particular, e sendo avessa a métodos contraceptivos, achou por bem fazer uns vinte abortos ao longo da vida.
Não ignoramos que outros casos existam. Mas isto apenas reforça a nossa posição de princípio. Na verdade, a lei, sendo dotada das características da generalidade e abstracção, deve permitir o tratamento de todas as situações hipoteticamente relevantes que possam ser assimiladas pelo seu âmbito, traçado pelo legislador, de acordo com a sua sempre limitada capacidade de previsão.
Basta haver uma situação como aquelas que nos são relatadas (obrigada, Sim, por nos dar a conhecer a realidade!) para a lei penal se tornar, a este nível, imprescindível. Ela não tem como escopo principal a cominação de uma pena que possa funcionar como retribuição ou expiação de um mal, mas a reafirmação da validade do bem jurídico afectado por uma dada conduta típica. A eficácia da norma do Código Penal que sanciona o aborto – mesmo aquele que é praticado até às 10 semanas – reside aí, impedindo que este se transforme num método contraceptivo de último recurso, e isto mesmo que os órgãos de polícia criminal não extraiam dela todas as consequências.
Dir-me-ão que é um preço demasiado alto. Que, sendo talvez estes casos excepcionais, estamos, por eles, a estigmatizar ou humilhar mulheres que recorrem, não levianamente, ao aborto, apenas motivadas pelas circunstâncias que compõem a sua condição sócio-económica e psicológica.
Não sei se assim é (por algum motivo que me escapa nunca chegou a ser efectuado no nosso país o estudo, cuja realização foi aprovada, sobre o aborto). Mas mesmo que assim seja, a argumentação não colhe.
Não colhe porque isso é desresponsabilizar, não já só a mulher, mas o Estado que, reivindicando para si a matriz social, prefere abdicar do tratamento de situações de miséria ou quase miséria, mascarando o non facere com uma suposta e hipócrita tolerância e humanidade.
E não colhe porque assenta numa falácia – repetida ad nauseum pelo positivismo jurídico – de que o direito se esgota e cumpre na lei.
Ora, não só há muito mais direito que a lei, como esta não diz tudo, tornando-se imprescindível destrinçar o plano da prescrição normativa do plano da decisão judicativa. Na verdade, cada caso é único e infungível, reclamando para si, embora com apoio num acervo de critérios pré-disponibilizado pelo ordenamento, um tratamento especial. Ou ignora-se ainda hoje o poder constitutivo da juridicidade que o julgador detém para fingirmos que a concreta realização judicativa se cumpre num puro juízo subsuntivo? Já a Jurisprudência dos Interesses nos dava conta disso mesmo, ao remeter-nos para o caricato exemplo da norma que proíbe a entrada de cães num determinado estabelecimento público. Apegados a uma interpretação de tipo filológico e exegético, incapazes de ultrapassar o sentido comunicado pela letra da lei, advogavam os primários positivistas que, perante a hipótese de alguém querer entrar com um urso naquele sítio, não lhe devia ser vedada a entrada. Um urso não é um cão. Tudo isto é tolo e tudo isto foi, felizmente, superado, permitindo-se hodiernamente a correcção daquela mesma norma, em claro desrespeito pelo seu sentido literal, se um cego, orientado por um cão-guia, quiser transpor a entrada acompanhado do seu animal.
Tudo isto a querer dizer que nunca num julgamento nos devemos ater às circunstâncias exemplares do caso, sendo imperioso perscrutar todas as nuances que lhe comunicam um recorte particular, à luz das quais a própria norma será interpretada.
E mesmo abdicando de ulteriores explicações, conducentes a um pensamento metodológico correcto mas heterodoxo – viabilizador da analogia, quando adequadamente compreendida, ao nível do direito penal, sem que com isso abdique do cumprimento dogmático do princípio da legalidade criminal –, ninguém poderá negar o que aqui se expõe. Pois não é verdade que o legislador, na criação dos diversos tipos legais de crime, não fixa a pena a aplicar, mas baliza uma moldura penal dentro da qual aquela se determinará em concreto? Como fazê-lo sem atender às motivações especiais da mulher que aborta?
Acham que se deve valorar do mesmo modo o comportamento do Senhor A que mata por matar B e do Senhor C que mata D, enraivecido, por saber que este violou a sua filha menor?
Acham que se deve valorar do mesmo modo o comportamento do Senhor E que furta porque sim e do Senhor F que furta porque, não recebendo o seu salário há meses, não tem como alimentar o seu filho?
E é por existirem estes casos que vamos propor a desaparição do homicídio ou do furto? Ou liberalizá-los em determinadas condições? Não, claramente que não. Até porque sabemos que o juiz, não sendo a mera boca que profere as palavras da lei, terá em atenção essas particularidades.
Porquê, então, ser radical a propósito do aborto? Porquê invocar o fado da desgraçadinha quando outras situações existem e devem ser punidas de acordo com o quadro legal existente? Porque esquecer, propositadamente, que existir a previsão do aborto como crime não implica encerrar uma mulher na cadeia, até porque sendo a moldura penal fixada até três anos é possível ao tribunal suspender a execução da pena, atendendo à personalidade da mulher, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste (cfr. Artigo 50º C Penal)?
Liberalizar o aborto implica retirar a um juiz a possibilidade de julgar aqueles casos que têm vindo a lume (e que motivaram, mesmo da parte dos defensores do sim, juízos de censura pública no prós e contras, pouco abonatórios para as mulheres). Deixar a lei inalterada permite defender o embrião, sem que isso implique estigmatizar, perseguir, encarcerar as mulheres.
O fado da desgraçadinha soa mal. Soa a folclore, empolado pelos circos mediáticos montados à porta dos Tribunais (e ainda ninguém me disse se eles vão continuar caso uma mulher descubra que está grávida às 12 semanas de gestação e resolva abortar). Soa a falácia.
Há o sim que não reconhece qualquer dignidade do bem jurídico vida intra-uterina, insistindo em tratar o embrião por aquilo, em confundi-lo com uma unha do pé ou com um tumor que tem de ser extirpado do ventre materno. (A esses recomendava, entretanto, o diálogo com médicos e, bem assim, a leitura sistemática do nosso ordenamento jurídico que reconhece, a todos os níveis, e não apenas no plano penal, a tutela da pessoa humana na sua fase embrionária).
Há o sim que, não negando a bondade intrínseca do bem jurídico concretamente em causa, proclama, autistamente, a supremacia da liberdade materna, num claro desacerto quer acerca do momento do exercício – esgotante – desta, quer acerca da inolvidável conexão entre aquela e a responsabilidade a que não pode deixar de andar associada.
E há o sim que, salientando a dignidade do embrião e declarando a maldade do acto abortivo, adere ao fado da desgraçadinha.
Já ontem a Joana lembrou que o sim não é uniforme , apresentando, outrossim, diversos cambiantes.Há o sim que não reconhece qualquer dignidade do bem jurídico vida intra-uterina, insistindo em tratar o embrião por aquilo, em confundi-lo com uma unha do pé ou com um tumor que tem de ser extirpado do ventre materno. (A esses recomendava, entretanto, o diálogo com médicos e, bem assim, a leitura sistemática do nosso ordenamento jurídico que reconhece, a todos os níveis, e não apenas no plano penal, a tutela da pessoa humana na sua fase embrionária).Há o sim que, não negando a bondade intrínseca do bem jurídico concretamente em causa, proclama, autistamente, a supremacia da liberdade materna, num claro desacerto quer acerca do momento do exercício – esgotante – desta, quer acerca da inolvidável conexão entre aquela e a responsabilidade a que não pode deixar de andar associada.E há o sim que, salientando a dignidade do embrião e declarando a maldade do acto abortivo, adere ao fado da desgraçadinha.
Porque já muito foi dito aos primeiros, dirijo hoje as minhas palavras aos últimos, para lhes dizer que soa mal aquele fado.
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No plano do ser – ou melhor do que é –, o dito fado confunde-se, por vezes, com folclore. Pois que são os sequazes do sim, na veste de jornalistas, a trazer a lume inúmeras histórias em que a dita desgraçadinha está ausente. Só nos últimos tempos temos sido presenteados com relatos diversos em que o aborto é assumido como opção reiterada para salvaguardar uma carreira ou como alternativa à pílula – que engorda – ou ao preservativo – que é desagradável. Lembro-me, a título de exemplo, daquela senhora que, porque se tivesse mais filhos não os poderia ter no ensino particular, e sendo avessa a métodos contraceptivos, achou por bem fazer uns vinte abortos ao longo da vida.
Não ignoramos que outros casos existam. Mas isto apenas reforça a nossa posição de princípio. Na verdade, a lei, sendo dotada das características da generalidade e abstracção, deve permitir o tratamento de todas as situações hipoteticamente relevantes que possam ser assimiladas pelo seu âmbito, traçado pelo legislador, de acordo com a sua sempre limitada capacidade de previsão.
Basta haver uma situação como aquelas que nos são relatadas (obrigada, Sim, por nos dar a conhecer a realidade!) para a lei penal se tornar, a este nível, imprescindível. Ela não tem como escopo principal a cominação de uma pena que possa funcionar como retribuição ou expiação de um mal, mas a reafirmação da validade do bem jurídico afectado por uma dada conduta típica. A eficácia da norma do Código Penal que sanciona o aborto – mesmo aquele que é praticado até às 10 semanas – reside aí, impedindo que este se transforme num método contraceptivo de último recurso, e isto mesmo que os órgãos de polícia criminal não extraiam dela todas as consequências.
Dir-me-ão que é um preço demasiado alto. Que, sendo talvez estes casos excepcionais, estamos, por eles, a estigmatizar ou humilhar mulheres que recorrem, não levianamente, ao aborto, apenas motivadas pelas circunstâncias que compõem a sua condição sócio-económica e psicológica.
Não sei se assim é (por algum motivo que me escapa nunca chegou a ser efectuado no nosso país o estudo, cuja realização foi aprovada, sobre o aborto). Mas mesmo que assim seja, a argumentação não colhe.
Não colhe porque isso é desresponsabilizar, não já só a mulher, mas o Estado que, reivindicando para si a matriz social, prefere abdicar do tratamento de situações de miséria ou quase miséria, mascarando o non facere com uma suposta e hipócrita tolerância e humanidade.
E não colhe porque assenta numa falácia – repetida ad nauseum pelo positivismo jurídico – de que o direito se esgota e cumpre na lei.
Ora, não só há muito mais direito que a lei, como esta não diz tudo, tornando-se imprescindível destrinçar o plano da prescrição normativa do plano da decisão judicativa. Na verdade, cada caso é único e infungível, reclamando para si, embora com apoio num acervo de critérios pré-disponibilizado pelo ordenamento, um tratamento especial. Ou ignora-se ainda hoje o poder constitutivo da juridicidade que o julgador detém para fingirmos que a concreta realização judicativa se cumpre num puro juízo subsuntivo? Já a Jurisprudência dos Interesses nos dava conta disso mesmo, ao remeter-nos para o caricato exemplo da norma que proíbe a entrada de cães num determinado estabelecimento público. Apegados a uma interpretação de tipo filológico e exegético, incapazes de ultrapassar o sentido comunicado pela letra da lei, advogavam os primários positivistas que, perante a hipótese de alguém querer entrar com um urso naquele sítio, não lhe devia ser vedada a entrada. Um urso não é um cão. Tudo isto é tolo e tudo isto foi, felizmente, superado, permitindo-se hodiernamente a correcção daquela mesma norma, em claro desrespeito pelo seu sentido literal, se um cego, orientado por um cão-guia, quiser transpor a entrada acompanhado do seu animal.
Tudo isto a querer dizer que nunca num julgamento nos devemos ater às circunstâncias exemplares do caso, sendo imperioso perscrutar todas as nuances que lhe comunicam um recorte particular, à luz das quais a própria norma será interpretada.
E mesmo abdicando de ulteriores explicações, conducentes a um pensamento metodológico correcto mas heterodoxo – viabilizador da analogia, quando adequadamente compreendida, ao nível do direito penal, sem que com isso abdique do cumprimento dogmático do princípio da legalidade criminal –, ninguém poderá negar o que aqui se expõe. Pois não é verdade que o legislador, na criação dos diversos tipos legais de crime, não fixa a pena a aplicar, mas baliza uma moldura penal dentro da qual aquela se determinará em concreto? Como fazê-lo sem atender às motivações especiais da mulher que aborta?
Acham que se deve valorar do mesmo modo o comportamento do Senhor A que mata por matar B e do Senhor C que mata D, enraivecido, por saber que este violou a sua filha menor?
Acham que se deve valorar do mesmo modo o comportamento do Senhor E que furta porque sim e do Senhor F que furta porque, não recebendo o seu salário há meses, não tem como alimentar o seu filho?
E é por existirem estes casos que vamos propor a desaparição do homicídio ou do furto? Ou liberalizá-los em determinadas condições? Não, claramente que não. Até porque sabemos que o juiz, não sendo a mera boca que profere as palavras da lei, terá em atenção essas particularidades.
Porquê, então, ser radical a propósito do aborto? Porquê invocar o fado da desgraçadinha quando outras situações existem e devem ser punidas de acordo com o quadro legal existente? Porque esquecer, propositadamente, que existir a previsão do aborto como crime não implica encerrar uma mulher na cadeia, até porque sendo a moldura penal fixada até três anos é possível ao tribunal suspender a execução da pena, atendendo à personalidade da mulher, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste (cfr. Artigo 50º C Penal)?
Liberalizar o aborto implica retirar a um juiz a possibilidade de julgar aqueles casos que têm vindo a lume (e que motivaram, mesmo da parte dos defensores do sim, juízos de censura pública no prós e contras, pouco abonatórios para as mulheres). Deixar a lei inalterada permite defender o embrião, sem que isso implique estigmatizar, perseguir, encarcerar as mulheres.
O fado da desgraçadinha soa mal. Soa a folclore, empolado pelos circos mediáticos montados à porta dos Tribunais (e ainda ninguém me disse se eles vão continuar caso uma mulher descubra que está grávida às 12 semanas de gestação e resolva abortar). Soa a falácia.