Costa e Marcelo, duas raposas (com picos de ouriço)

05-06-2020
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Bom dia!

Líderes há muitos, estilos também, mas podemos dividi-los em dois grandes grupos: as raposas e os ouriços. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa teriam entrado em choque se não fossem duas (velhas) raposas que aceitam jogar o mesmo jogo. A comparação ficou famosa quando Isaiah Berlin escreveu o ensaio “O Ouriço e a Raposa”, a partir de uma frase do poeta grego Arquílico de Paros: “A raposa sabe muitas coisas, mas o porco espinho sabe uma coisa grande”. Simplificando: o ouriço é mais inflexível, focado num objetivo, e a raposa tem mil ardis, adapta-se e por vezes hesita e volta atrás.

Uma destas raposas começou esta manhã um jogo novo. À hora em que ler este texto, António Costa está a começar as reuniões com os partidos para encontrar terreno comum para o orçamento suplementar - o tema político que marcará esta semana. É o político ardiloso em ação. O consenso correu bem durante o estado de exceção, agora Costa quer prolongá-lo na resposta à crise: ouvir a oposição e amanhã os parceiros sociais, admitir algumas propostas, garantir que passa sem drama. O Governo vai lançar agora um Plano de Estabilização Económico e Social, que mais não será do que um penso rápido, com um horizonte de atuação até ao final do ano - como escreveram a Liliana Valente e a Rosa Pedroso Lima no Expresso este sábado -, enquanto não chega o dinheiro da União Europeia, para uma resposta mais musculada de verdadeira emergência.

Encontrei a ‘fábula’ de Berlin recuperada por John Lewis Gaddis no livro “A Grande Estratégia” que a temperou com uma frase de Scott Fitzgerald para mostrar que os líderes são todos um misto de raposa e ouriço: uma inteligência de primeira ordem tem a “capacidade de manter ao mesmo tempo na cabeça duas ideias opostas e mesmo assim conservar a capacidade de funcionar”. Ou seja, numa realidade a preto e branco, Costa seria uma raposa e Passos Coelho um ouriço, por exemplo, mas a verdade é que o primeiro-ministro é uma raposa com forte ascendente em ouriço. E em Marcelo Rebelo de Sousa, apesar de o totem da raposa ter grande preponderância, também lá estão uns picos de ouriço.

Primeiro Costa. Só uma raposa poderia ter montado a ‘geringonça’ com um objetivo fixo (a parte do ouriço) de chegar ao superávite, ou seja: ter na cabeça o fim de ir além das exigências de Bruxelas, mas fazê-lo com o apoio da esquerda, que defende exatamente o contrário. A raposa domina o perfil do PM, como se pode perceber neste artigo do Miguel Santos Carrapatoso sobre as melhores jogadas políticas de António Costa, mas o ouriço dá-lhe o pragmatismo para manter o poder.

Já Marcelo é uma raposa típica, “sabe muitas coisas” mas falta-lhe o foco. Pensa demais, avalia todos os quadros e todos os ângulos, umas vezes hesita outras avança por impulso, tem o objetivo de comer a galinha com a vantagem de já ter a canja garantida, mas estuda tantos cenários para entrar no galinheiro que por vezes acaba ultrapassado por outras raposas: por António Costa, que o forçou a assumir a recandidatura seis meses mais cedo, e por Rui Rio, que o deixou pendurado sem declarar já o apoio explícito (sabendo toda a gente que Marcelo será o candidato do PSD), embora o Presidente tenha aproveitado estar ao lado do líder social-democrata para equilibrar os pratos da balança em relação ao PS. Por mais raposa que seja, não se tem dado mal, e também tem o seu lado pragmático: é a única direita no poder, não tem o apoio da direita toda, mas aceita o endorsement da esquerda não só por necessidade mas também por adorar estas supremas ironias na política (ver o PS e os seus eleitores a votarem em si, que socialista nunca foi).

Entretanto, Ana Gomes vai mantendo uma atitude de raposa com objetivos de ouriço: ontem à noite, no seu comentário na SIC, a diplomata socialista voltou a dizer que está a "refletir", sem "pressa", sobre a sua eventual candidatura à Presidência.

As próximas presidenciais têm vencedor anunciado, mas isso não lhes tira importância não só pela circunstâncias sanitárias em que se vão realizar mas pelo impacto que podem ter no sistema. Se forem a rampa de lançamento de André Ventura para os dois dígitos, o embate será sistémico à direita. E para o regime.

Entre raposas e ouriços, alguém há-de escapar.

OUTRAS NOTÍCIAS

Poetas não morrem - A escritora Maria Velho da Costa - dizia que todos os regimes totalitários consideram "perigosa" a literatura -, morreu no sábado, aos 81 anos. A prova de que a poesia é um perigo foi provada com "As Novas Cartas Portuguesas", que escreveu com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Esta foi considerada uma obra de "conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública" pelo regime e abriu portas a um novo discurso de oposição ao Estado Novo. “Foi um choque muito grande, não estava à espera. Portugal perde uma grande escritora”, disse Maria Teresa Horta. Pode ler aqui um perfil da poetisa.

Desconfinar no mar - Há tanto tempo fechados em casa, os portugueses viram o sol, perderam o medo e correram para a praia: o novo normal foi apenas o normal. Provou-se pelo primeiro fim-de-semana com tempo de verão que não será fácil manter as regras de distanciamento social no areal, mas era impossível manter as praias fechadas para sempre. Só no domingo, pelos areais da Costa da Caparica, passaram mais de 180 mil, apontou a Polícia Marítima em declarações ao “Público”. O primeiro-ministro, António Costa, esteve a banhos na praia da Princesa, durante a manhã. Saberemos daqui a três semanas a um mês a dimensão dos efeitos do desconfinamento. Pode ver aqui os gráficos e conferir os números da doença em Portugal e no direto do Expresso seguir as últimas atualizações.

Desemprego dispara entre os jovens - Os efeitos económicos da pandemia estão a afetar os mais novos. O número de trabalhadores jovens a recorrer ao subsídio de desemprego aumentou 52% em abril, por comparação com o mesmo mês no ano passado, avança o “Jornal de Notícias”. Na faixa dos 25 aos 34 anos, a subida foi de 33%, e entre os 35 e os 44 anos houve um aumento de 20%. Já entre os 45 e os 54 anos, o aumento foi de 17%.

A mensagem ambígua do Governo sobre a covid-19 - Não é por considerar arriscado andar de transportes públicos ou ir ao hospital ou ao restaurante ou ao café que “a maioria das pessoas vai deixar de fazê-lo”, diz o psicólogo Daniel Rijo numa entrevista à Helena Bento, em que considera ambígua a mensagem do Governo porque "mudou radicalmente". No entanto, se surgir um novo pico da doença e formos obrigados a ficar em casa novamente, aí a história será diferente, explica este professor na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e especialista na área das perturbações da personalidade e do comportamento antissocial.

Ver a bola só em casa - A ministra da Saúde assumiu ontem a impossibilidade de haver concentrações de pessoas para assistirem aos jogos da I Liga portuguesa de futebol, que vão ser retomados em 3 de junho à porta fechada e transmitidos em canais pagos. Por isso, claques ou adeptos tiffosi, terão de ficar no sofá. “Por ocasião de competições desportivas, haver concentrações em determinados espaços, é evidente que isso não vai poder acontecer da forma como estávamos habituados”, disse Marta Temido, na conferência de imprensa diária de avaliação da pandemia.

Centeno abre a porta aos sucessores - Numa entrevista publicada ontem pelo jornal alemão Die Welt, o ministro das Finanças português disse que no dia 11 de Junho pedirá as candidaturas à presidência do Eurogrupo, lançando assim as eleições para o órgão que preside há dois anos. O mandato termina no dia 13 de julho, e até lá deve ser encontrado um sucessor. Sobre a resposta europeia à crise, Mário Centeno disse que haverá reformas associadas ao fundo de retoma, mas este não terá como condição que os estados enveredem por políticas recessivas.

Jerónimo e o Novo Banco - Não é novo que o PCP seja contra as ajudas à banca e ontem o secretário-geral do PCP disse que os 850 milhões de euros transferidos para o Novo Banco davam para “resolver metade dos problemas sociais que neste momento existem”, mas não explicou que problemas sociais seriam criados com a falência de um banco.

PSD aponta falhas na preparação da época dos fogos - ​​​De acordo com os sociais-democratas, "deveriam estar já no terreno três meios aéreos de coordenação" que "também não estão ainda operacionais", e "faltam pelo menos oito helicópteros face à informação divulgada pelo Ministério da Administração Interna".

NO RESTO DO MUNDO

Tensão China/EUA - O regime chinês nunca foi recomendável antes pelo contrário, mas mas o senhor Trump também não se recomenda e os Estados Unidos estão cada vez mais longe do que deve ser uma democracia exemplar (a semana passada foi o caso da demissão dos inspetores gerais que são despedidos exatamente por inspecionarem). Já se percebeu que o candidato presidencial na Casa Branca tem apenas uma palavra como linha principal no seu guião para escamotear o desastre da sua gestão da crise pandémica: China. A retórica é tão agressiva que o ministro das Relações Exteriores chinês disse ontem que a China e os EUA estão "à beira de uma nova Guerra Fria". Veremos em novembro, depois das presidenciais, se a retórica não amacia.

Trump fecha a porta ao Brasil - se Donald Trump tem lidado com a crise sanitária de forma desastrosa, Jair Bolsonaro está a tornar a pandemia brasileira numa catástrofe. E nesta matéria não há solidariedades populistas: os Estados Unidos proibiram ontem a entrada no país a estrangeiros que tenham estado no Brasil nos 14 dias anteriores. A par dos EUA, o país é um dos maiores focos mundiais da covid, com 22.013 óbitos oficialmente confirmados.

Johnson segura assessor desconfinado - Dominic Cummings, o principal conselheiro do primeiro-ministro britânico foi acusado de violar as regras de confinamento impostas para combater a pandemia covid-19 ao fazer 400 quilómetros de carro com a mulher, que ainda tinha sintomas de infeção pelo novo coronavírus. Face às críticas, Johnson veio defender a decisão de Cummings ao mudar-se para a casa dos pais durante o confinamento.

FRASES

"Hoje a situação no Brasil é desesperada, não é séria (a não ser na mais grave das acepções), e não há maior risco para o país do que fazer de conta que é normal."

Rui Tavares, "Público"

"Entre tantas más notícias a semana trouxe-nos algum alento pela mão de Merkel e Macron, um acordo histórico. Nada está fechado. Há ainda a oposição dos frugais. Mas as perspectivas são agora melhores".

Helena Garrido, "Observador"

O QUE ANDO A LER

O mesmo desde o último Expresso Curto, todos os dias o obrigatório Diário da Peste do Gonçalo M. Tavares no Expresso e mais algumas coisas: continuo a avançar no “The Mirror & The Light”, da britânica Hillary Mantel, o terceiro volume da saga de Thomas Cromwell na corte do rei Henrique VIII, mas como o livro tem mais de 800 páginas e não sou um fast reader sobretudo em inglês, não vou maçar mais os leitores que podem ter tido o azar de ler o Curto anterior. Voltarei às decapitações henriquinas quando acabar o volume, até porque há uma parte em que o próprio rei entra em quarentena por causa de um surto de peste, quem disse que eram outros tempos?

Entretanto, fui alternando com “A Grande Estratégia” do professor de Yale John Lewis Gaddis - de quem já tinha lido uma história d’ “A Guerra Fria” -, que ganhou um Pulitzer com este trabalho, e de que já dei ideia em parte no início deste curto. Começa com a invasão da Grécia pelos persas, passa para Péricles, aborda Sun Tzu, Maquiavel e Clausewitz, mas também Wilson e Roosevelt, sempre com Isaiah Berlin e a teoria da raposa e do ouriço como fundo. Um gosto para quem trabalha com política - todos os casos são projetáveis na política portuguesa - e que pela erudição do autor abre pistas para outros campos e leituras,

Nesta fase, tenho consumido também doses consideráveis de jornalismo e alguns trabalhos são verdadeiramente extraordinários e merecem ser partilhados. O Financial Times escreveu há uma semana um artigo notável sobre a gestão da pandemia por parte de Donald Trump com o título “Inside Trump’s coronavirus meltdown” (suponho que é de leitura aberta), e que prova como é inacreditável o que se está a passar nos Estados Unidos com um Presidente “mentalmente desequilibrado” - assim descrito por uma fonte da Casa Branca, citada no último parágrafo (vale a pena lá chegar).

Do outro lado da barricada, no Irão, a pandemia também foi gerida politicamente sem que a prioridade fosse a população. Mas se o futuro de Trump está mais incerto com a crise sanitária, na república dos ayatollahs a Covid-19 pode acelerar o fim ou a regeneração do regime. Pelo menos é essa a ideia que nos passa Dexter Filkins numa raríssima reportagem em Teerão, para a New Yorker, já depois de ter rebentado a pandemia. Filkins, que conhece bem o Médio Oriente e os movimentos radicais muçulmanos - foi ele que escreveu “Guerra Sem Fim” - , pinta-nos um quadro completo sobre o que se passa neste momento no Irão: o desastre da covid, a vida e percurso do Ayatollah Khamenei, casos extremos na vida de reformistas e opositores, a relação estratégica com os Estados Unidos. Só me intriga porque é que o regime o deixou entrar no país exatamente neste momento. Talvez seja um sinal.

Por hoje despeço-me, espero que tenha um bom dia e uma boa semana.

Bom dia!

Líderes há muitos, estilos também, mas podemos dividi-los em dois grandes grupos: as raposas e os ouriços. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa teriam entrado em choque se não fossem duas (velhas) raposas que aceitam jogar o mesmo jogo. A comparação ficou famosa quando Isaiah Berlin escreveu o ensaio “O Ouriço e a Raposa”, a partir de uma frase do poeta grego Arquílico de Paros: “A raposa sabe muitas coisas, mas o porco espinho sabe uma coisa grande”. Simplificando: o ouriço é mais inflexível, focado num objetivo, e a raposa tem mil ardis, adapta-se e por vezes hesita e volta atrás.

Uma destas raposas começou esta manhã um jogo novo. À hora em que ler este texto, António Costa está a começar as reuniões com os partidos para encontrar terreno comum para o orçamento suplementar - o tema político que marcará esta semana. É o político ardiloso em ação. O consenso correu bem durante o estado de exceção, agora Costa quer prolongá-lo na resposta à crise: ouvir a oposição e amanhã os parceiros sociais, admitir algumas propostas, garantir que passa sem drama. O Governo vai lançar agora um Plano de Estabilização Económico e Social, que mais não será do que um penso rápido, com um horizonte de atuação até ao final do ano - como escreveram a Liliana Valente e a Rosa Pedroso Lima no Expresso este sábado -, enquanto não chega o dinheiro da União Europeia, para uma resposta mais musculada de verdadeira emergência.

Encontrei a ‘fábula’ de Berlin recuperada por John Lewis Gaddis no livro “A Grande Estratégia” que a temperou com uma frase de Scott Fitzgerald para mostrar que os líderes são todos um misto de raposa e ouriço: uma inteligência de primeira ordem tem a “capacidade de manter ao mesmo tempo na cabeça duas ideias opostas e mesmo assim conservar a capacidade de funcionar”. Ou seja, numa realidade a preto e branco, Costa seria uma raposa e Passos Coelho um ouriço, por exemplo, mas a verdade é que o primeiro-ministro é uma raposa com forte ascendente em ouriço. E em Marcelo Rebelo de Sousa, apesar de o totem da raposa ter grande preponderância, também lá estão uns picos de ouriço.

Primeiro Costa. Só uma raposa poderia ter montado a ‘geringonça’ com um objetivo fixo (a parte do ouriço) de chegar ao superávite, ou seja: ter na cabeça o fim de ir além das exigências de Bruxelas, mas fazê-lo com o apoio da esquerda, que defende exatamente o contrário. A raposa domina o perfil do PM, como se pode perceber neste artigo do Miguel Santos Carrapatoso sobre as melhores jogadas políticas de António Costa, mas o ouriço dá-lhe o pragmatismo para manter o poder.

Já Marcelo é uma raposa típica, “sabe muitas coisas” mas falta-lhe o foco. Pensa demais, avalia todos os quadros e todos os ângulos, umas vezes hesita outras avança por impulso, tem o objetivo de comer a galinha com a vantagem de já ter a canja garantida, mas estuda tantos cenários para entrar no galinheiro que por vezes acaba ultrapassado por outras raposas: por António Costa, que o forçou a assumir a recandidatura seis meses mais cedo, e por Rui Rio, que o deixou pendurado sem declarar já o apoio explícito (sabendo toda a gente que Marcelo será o candidato do PSD), embora o Presidente tenha aproveitado estar ao lado do líder social-democrata para equilibrar os pratos da balança em relação ao PS. Por mais raposa que seja, não se tem dado mal, e também tem o seu lado pragmático: é a única direita no poder, não tem o apoio da direita toda, mas aceita o endorsement da esquerda não só por necessidade mas também por adorar estas supremas ironias na política (ver o PS e os seus eleitores a votarem em si, que socialista nunca foi).

Entretanto, Ana Gomes vai mantendo uma atitude de raposa com objetivos de ouriço: ontem à noite, no seu comentário na SIC, a diplomata socialista voltou a dizer que está a "refletir", sem "pressa", sobre a sua eventual candidatura à Presidência.

As próximas presidenciais têm vencedor anunciado, mas isso não lhes tira importância não só pela circunstâncias sanitárias em que se vão realizar mas pelo impacto que podem ter no sistema. Se forem a rampa de lançamento de André Ventura para os dois dígitos, o embate será sistémico à direita. E para o regime.

Entre raposas e ouriços, alguém há-de escapar.

OUTRAS NOTÍCIAS

Poetas não morrem - A escritora Maria Velho da Costa - dizia que todos os regimes totalitários consideram "perigosa" a literatura -, morreu no sábado, aos 81 anos. A prova de que a poesia é um perigo foi provada com "As Novas Cartas Portuguesas", que escreveu com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Esta foi considerada uma obra de "conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública" pelo regime e abriu portas a um novo discurso de oposição ao Estado Novo. “Foi um choque muito grande, não estava à espera. Portugal perde uma grande escritora”, disse Maria Teresa Horta. Pode ler aqui um perfil da poetisa.

Desconfinar no mar - Há tanto tempo fechados em casa, os portugueses viram o sol, perderam o medo e correram para a praia: o novo normal foi apenas o normal. Provou-se pelo primeiro fim-de-semana com tempo de verão que não será fácil manter as regras de distanciamento social no areal, mas era impossível manter as praias fechadas para sempre. Só no domingo, pelos areais da Costa da Caparica, passaram mais de 180 mil, apontou a Polícia Marítima em declarações ao “Público”. O primeiro-ministro, António Costa, esteve a banhos na praia da Princesa, durante a manhã. Saberemos daqui a três semanas a um mês a dimensão dos efeitos do desconfinamento. Pode ver aqui os gráficos e conferir os números da doença em Portugal e no direto do Expresso seguir as últimas atualizações.

Desemprego dispara entre os jovens - Os efeitos económicos da pandemia estão a afetar os mais novos. O número de trabalhadores jovens a recorrer ao subsídio de desemprego aumentou 52% em abril, por comparação com o mesmo mês no ano passado, avança o “Jornal de Notícias”. Na faixa dos 25 aos 34 anos, a subida foi de 33%, e entre os 35 e os 44 anos houve um aumento de 20%. Já entre os 45 e os 54 anos, o aumento foi de 17%.

A mensagem ambígua do Governo sobre a covid-19 - Não é por considerar arriscado andar de transportes públicos ou ir ao hospital ou ao restaurante ou ao café que “a maioria das pessoas vai deixar de fazê-lo”, diz o psicólogo Daniel Rijo numa entrevista à Helena Bento, em que considera ambígua a mensagem do Governo porque "mudou radicalmente". No entanto, se surgir um novo pico da doença e formos obrigados a ficar em casa novamente, aí a história será diferente, explica este professor na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e especialista na área das perturbações da personalidade e do comportamento antissocial.

Ver a bola só em casa - A ministra da Saúde assumiu ontem a impossibilidade de haver concentrações de pessoas para assistirem aos jogos da I Liga portuguesa de futebol, que vão ser retomados em 3 de junho à porta fechada e transmitidos em canais pagos. Por isso, claques ou adeptos tiffosi, terão de ficar no sofá. “Por ocasião de competições desportivas, haver concentrações em determinados espaços, é evidente que isso não vai poder acontecer da forma como estávamos habituados”, disse Marta Temido, na conferência de imprensa diária de avaliação da pandemia.

Centeno abre a porta aos sucessores - Numa entrevista publicada ontem pelo jornal alemão Die Welt, o ministro das Finanças português disse que no dia 11 de Junho pedirá as candidaturas à presidência do Eurogrupo, lançando assim as eleições para o órgão que preside há dois anos. O mandato termina no dia 13 de julho, e até lá deve ser encontrado um sucessor. Sobre a resposta europeia à crise, Mário Centeno disse que haverá reformas associadas ao fundo de retoma, mas este não terá como condição que os estados enveredem por políticas recessivas.

Jerónimo e o Novo Banco - Não é novo que o PCP seja contra as ajudas à banca e ontem o secretário-geral do PCP disse que os 850 milhões de euros transferidos para o Novo Banco davam para “resolver metade dos problemas sociais que neste momento existem”, mas não explicou que problemas sociais seriam criados com a falência de um banco.

PSD aponta falhas na preparação da época dos fogos - ​​​De acordo com os sociais-democratas, "deveriam estar já no terreno três meios aéreos de coordenação" que "também não estão ainda operacionais", e "faltam pelo menos oito helicópteros face à informação divulgada pelo Ministério da Administração Interna".

NO RESTO DO MUNDO

Tensão China/EUA - O regime chinês nunca foi recomendável antes pelo contrário, mas mas o senhor Trump também não se recomenda e os Estados Unidos estão cada vez mais longe do que deve ser uma democracia exemplar (a semana passada foi o caso da demissão dos inspetores gerais que são despedidos exatamente por inspecionarem). Já se percebeu que o candidato presidencial na Casa Branca tem apenas uma palavra como linha principal no seu guião para escamotear o desastre da sua gestão da crise pandémica: China. A retórica é tão agressiva que o ministro das Relações Exteriores chinês disse ontem que a China e os EUA estão "à beira de uma nova Guerra Fria". Veremos em novembro, depois das presidenciais, se a retórica não amacia.

Trump fecha a porta ao Brasil - se Donald Trump tem lidado com a crise sanitária de forma desastrosa, Jair Bolsonaro está a tornar a pandemia brasileira numa catástrofe. E nesta matéria não há solidariedades populistas: os Estados Unidos proibiram ontem a entrada no país a estrangeiros que tenham estado no Brasil nos 14 dias anteriores. A par dos EUA, o país é um dos maiores focos mundiais da covid, com 22.013 óbitos oficialmente confirmados.

Johnson segura assessor desconfinado - Dominic Cummings, o principal conselheiro do primeiro-ministro britânico foi acusado de violar as regras de confinamento impostas para combater a pandemia covid-19 ao fazer 400 quilómetros de carro com a mulher, que ainda tinha sintomas de infeção pelo novo coronavírus. Face às críticas, Johnson veio defender a decisão de Cummings ao mudar-se para a casa dos pais durante o confinamento.

FRASES

"Hoje a situação no Brasil é desesperada, não é séria (a não ser na mais grave das acepções), e não há maior risco para o país do que fazer de conta que é normal."

Rui Tavares, "Público"

"Entre tantas más notícias a semana trouxe-nos algum alento pela mão de Merkel e Macron, um acordo histórico. Nada está fechado. Há ainda a oposição dos frugais. Mas as perspectivas são agora melhores".

Helena Garrido, "Observador"

O QUE ANDO A LER

O mesmo desde o último Expresso Curto, todos os dias o obrigatório Diário da Peste do Gonçalo M. Tavares no Expresso e mais algumas coisas: continuo a avançar no “The Mirror & The Light”, da britânica Hillary Mantel, o terceiro volume da saga de Thomas Cromwell na corte do rei Henrique VIII, mas como o livro tem mais de 800 páginas e não sou um fast reader sobretudo em inglês, não vou maçar mais os leitores que podem ter tido o azar de ler o Curto anterior. Voltarei às decapitações henriquinas quando acabar o volume, até porque há uma parte em que o próprio rei entra em quarentena por causa de um surto de peste, quem disse que eram outros tempos?

Entretanto, fui alternando com “A Grande Estratégia” do professor de Yale John Lewis Gaddis - de quem já tinha lido uma história d’ “A Guerra Fria” -, que ganhou um Pulitzer com este trabalho, e de que já dei ideia em parte no início deste curto. Começa com a invasão da Grécia pelos persas, passa para Péricles, aborda Sun Tzu, Maquiavel e Clausewitz, mas também Wilson e Roosevelt, sempre com Isaiah Berlin e a teoria da raposa e do ouriço como fundo. Um gosto para quem trabalha com política - todos os casos são projetáveis na política portuguesa - e que pela erudição do autor abre pistas para outros campos e leituras,

Nesta fase, tenho consumido também doses consideráveis de jornalismo e alguns trabalhos são verdadeiramente extraordinários e merecem ser partilhados. O Financial Times escreveu há uma semana um artigo notável sobre a gestão da pandemia por parte de Donald Trump com o título “Inside Trump’s coronavirus meltdown” (suponho que é de leitura aberta), e que prova como é inacreditável o que se está a passar nos Estados Unidos com um Presidente “mentalmente desequilibrado” - assim descrito por uma fonte da Casa Branca, citada no último parágrafo (vale a pena lá chegar).

Do outro lado da barricada, no Irão, a pandemia também foi gerida politicamente sem que a prioridade fosse a população. Mas se o futuro de Trump está mais incerto com a crise sanitária, na república dos ayatollahs a Covid-19 pode acelerar o fim ou a regeneração do regime. Pelo menos é essa a ideia que nos passa Dexter Filkins numa raríssima reportagem em Teerão, para a New Yorker, já depois de ter rebentado a pandemia. Filkins, que conhece bem o Médio Oriente e os movimentos radicais muçulmanos - foi ele que escreveu “Guerra Sem Fim” - , pinta-nos um quadro completo sobre o que se passa neste momento no Irão: o desastre da covid, a vida e percurso do Ayatollah Khamenei, casos extremos na vida de reformistas e opositores, a relação estratégica com os Estados Unidos. Só me intriga porque é que o regime o deixou entrar no país exatamente neste momento. Talvez seja um sinal.

Por hoje despeço-me, espero que tenha um bom dia e uma boa semana.

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