Tenho repetidamente afirmado que os fármacos de "contracepção de emergência", vulgarmente conhecidos como "pílulas do dia seguinte", não são propriamente aspirinas. A defesa intransigente de prudência legislativa sobre a matéria resultou do estudo de dados internacionais e de dúvidas e dilemas muito sérios quanto a aspectos científicos, jurídicos e éticos - desde logo, pela simples possibilidade de contender com a vida humana. Por outro lado, se queremos abordar fenómenos como a gravidez na adolescência, parece, pelo menos, ligeiro atirar pílulas para o problema. Mais importante seria concordar na adopção de novos meios e métodos de educação para a sexualidade, de prevenção ou de novos apoios sociais e educativos às grávidas adolescentes.
Escaldado com a autoridade coquette e com as verdades totalizantes quanto a saúde sexual e reprodutiva exibidas por muito boa esquerda, tentarei desmistificar alguns dos jargões mais politicamente correctos sobre as polémicas "pílulas do dia seguinte". Assim, resumidamente:
1. "É um contraceptivo como outro qualquer." Não é bem assim. Qualquer dicionário de língua portuguesa regista contracepção" como "acto ou efeito de inibir a concepção", como nos casos do preservativo ou da pílula anovulatória normal. Ora, a verdade científica (demonstrada pela própria indústria farmacêutica) é que estas "pílulas do dia seguinte" são fármacos hormonais que podem actuar depois da concepção, isto é, depois da fecundação e perante a existência de nova vida humana, interrompendo o desenvolvimento dessa nova vida gerada.
2. "É como o DIU e portanto não é abortivo." Bom, ao poder impedir a nidação do ovo, ou zigoto, na parede uterina, actua, de facto, à semelhança do DIU (dispositivo intra-uterino). No entanto, o DIU tem um conjunto de contra-indicações absolutas ou relativas que claramente limitam o seu uso (será aceite pela comunidade médica a colocação de DIU em adolescentes de 13, 14, 15 ou 16 anos?). O problema científico, jurídico e ético mantém-se, em todo o caso, para os dois métodos - a incontornável identidade humana do zigoto.
3. "Não é abortivo porque não interrompe a gravidez." Eis a grande confusão semântica. Tecnicamente, talvez seja aceitável considerar o início da gravidez como o momento da implantação uterina (nenhuma mulher dirá que está grávida na altura da fecundação in vitro). Assim, se a gravidez só começa na implantação, e se os fármacos de "contracepção de emergência" actuam antes dessa implantação, então não há interrupção da gravidez (= aborto). Talvez certo, mas lateral. A Constituição da República não diz "a gravidez humana é inviolável", antes afirma no artigo 24.º que "a vida humana é inviolável". Ora, o problema não está então no início técnico da gravidez, mas no início biológico da vida humana. E aqui a ciência médica não tem dúvidas - há vida humana, com identidade genética própria, desde a fecundação (= concepção). O conceptus, o zigoto, o embrião é um novo ser humano. A disrupção dessa vida humana é vulgarmente designada como abortamento.
4. "É um mal menor." Tolerar este método como "mal menor" ao abortamento cirúrgico, ou em virtude de direitos e valores concorrentes que importa designar, obrigaria o legislador a considerações de excepcionalidade, tipificação de circunstâncias e regras terapêuticas estritas. O avanço seria já imenso em relação à fácil panaceia universal recentemente apresentada por algumas criaturas políticas. Parte-se do pressuposto de que "é um mal", faz-se conhecer de todos a verdade dos factos e deixa-se à consciência informada de cada um. O sinal ficaria dado aos laboratórios farmacêuticos para encontrar novos métodos, dirão alguns optimistas. E, desde logo em casos como a violação e o abuso sexual, não se vê como não dispor destes fármacos. Valerá então a pena transigir, em nome do "mal menor", num princípio basilar?
5. "A realidade exige isto e muito mais." A realpolitik tem-se tornado crescentemente argumento único. Despidos de valores e princípios - tidos por obsoletos e até obstáculos -, resta-nos olhar para a realidade social e casuisticamente escolher as opções relativamente mais populares, mais baratas ou mais fáceis.
O facilitismo com que se apresentam as "pílulas do dia seguinte" vai piorar o já desolador cenário de doenças sexualmente transmissíveis?
Não há problema, é popular.
A desinformação (e deturpação da verdade) quanto a esses fármacos é politicamente grave e desonesta?
Não há problema, assim é mais fácil.
A responsabilização de todos quanto à sexualidade, à contracepção e à vida não se faz? Não há problema, até fica mais barato.
Em nome da realidade das coisas, nalgumas ocasiões senti a presença de reminiscências ou corolários eugénicos - controlem-se as populações, enganem-se as pessoas, escolham-se os mais aptos, excluam-se os que não interessam.
Estarão tão mortos como o latim os velhos ditames in dubio pro vita ou fiat justitia, it pereat mundus?
Nuno Freitas é médico e deputado do PPD/PSD
Tenho repetidamente afirmado que os fármacos de "contracepção de emergência", vulgarmente conhecidos como "pílulas do dia seguinte", não são propriamente aspirinas. A defesa intransigente de prudência legislativa sobre a matéria resultou do estudo de dados internacionais e de dúvidas e dilemas muito sérios quanto a aspectos científicos, jurídicos e éticos - desde logo, pela simples possibilidade de contender com a vida humana. Por outro lado, se queremos abordar fenómenos como a gravidez na adolescência, parece, pelo menos, ligeiro atirar pílulas para o problema. Mais importante seria concordar na adopção de novos meios e métodos de educação para a sexualidade, de prevenção ou de novos apoios sociais e educativos às grávidas adolescentes.
Escaldado com a autoridade coquette e com as verdades totalizantes quanto a saúde sexual e reprodutiva exibidas por muito boa esquerda, tentarei desmistificar alguns dos jargões mais politicamente correctos sobre as polémicas "pílulas do dia seguinte". Assim, resumidamente:
1. "É um contraceptivo como outro qualquer." Não é bem assim. Qualquer dicionário de língua portuguesa regista contracepção" como "acto ou efeito de inibir a concepção", como nos casos do preservativo ou da pílula anovulatória normal. Ora, a verdade científica (demonstrada pela própria indústria farmacêutica) é que estas "pílulas do dia seguinte" são fármacos hormonais que podem actuar depois da concepção, isto é, depois da fecundação e perante a existência de nova vida humana, interrompendo o desenvolvimento dessa nova vida gerada.
2. "É como o DIU e portanto não é abortivo." Bom, ao poder impedir a nidação do ovo, ou zigoto, na parede uterina, actua, de facto, à semelhança do DIU (dispositivo intra-uterino). No entanto, o DIU tem um conjunto de contra-indicações absolutas ou relativas que claramente limitam o seu uso (será aceite pela comunidade médica a colocação de DIU em adolescentes de 13, 14, 15 ou 16 anos?). O problema científico, jurídico e ético mantém-se, em todo o caso, para os dois métodos - a incontornável identidade humana do zigoto.
3. "Não é abortivo porque não interrompe a gravidez." Eis a grande confusão semântica. Tecnicamente, talvez seja aceitável considerar o início da gravidez como o momento da implantação uterina (nenhuma mulher dirá que está grávida na altura da fecundação in vitro). Assim, se a gravidez só começa na implantação, e se os fármacos de "contracepção de emergência" actuam antes dessa implantação, então não há interrupção da gravidez (= aborto). Talvez certo, mas lateral. A Constituição da República não diz "a gravidez humana é inviolável", antes afirma no artigo 24.º que "a vida humana é inviolável". Ora, o problema não está então no início técnico da gravidez, mas no início biológico da vida humana. E aqui a ciência médica não tem dúvidas - há vida humana, com identidade genética própria, desde a fecundação (= concepção). O conceptus, o zigoto, o embrião é um novo ser humano. A disrupção dessa vida humana é vulgarmente designada como abortamento.
4. "É um mal menor." Tolerar este método como "mal menor" ao abortamento cirúrgico, ou em virtude de direitos e valores concorrentes que importa designar, obrigaria o legislador a considerações de excepcionalidade, tipificação de circunstâncias e regras terapêuticas estritas. O avanço seria já imenso em relação à fácil panaceia universal recentemente apresentada por algumas criaturas políticas. Parte-se do pressuposto de que "é um mal", faz-se conhecer de todos a verdade dos factos e deixa-se à consciência informada de cada um. O sinal ficaria dado aos laboratórios farmacêuticos para encontrar novos métodos, dirão alguns optimistas. E, desde logo em casos como a violação e o abuso sexual, não se vê como não dispor destes fármacos. Valerá então a pena transigir, em nome do "mal menor", num princípio basilar?
5. "A realidade exige isto e muito mais." A realpolitik tem-se tornado crescentemente argumento único. Despidos de valores e princípios - tidos por obsoletos e até obstáculos -, resta-nos olhar para a realidade social e casuisticamente escolher as opções relativamente mais populares, mais baratas ou mais fáceis.
O facilitismo com que se apresentam as "pílulas do dia seguinte" vai piorar o já desolador cenário de doenças sexualmente transmissíveis?
Não há problema, é popular.
A desinformação (e deturpação da verdade) quanto a esses fármacos é politicamente grave e desonesta?
Não há problema, assim é mais fácil.
A responsabilização de todos quanto à sexualidade, à contracepção e à vida não se faz? Não há problema, até fica mais barato.
Em nome da realidade das coisas, nalgumas ocasiões senti a presença de reminiscências ou corolários eugénicos - controlem-se as populações, enganem-se as pessoas, escolham-se os mais aptos, excluam-se os que não interessam.
Estarão tão mortos como o latim os velhos ditames in dubio pro vita ou fiat justitia, it pereat mundus?
Nuno Freitas é médico e deputado do PPD/PSD