Impresão Digital
[35.] Bichos
Por EDUARDO CINTRA TORRES
Segunda-feira, 4 de Junho de 2001
A publicidade é uma Arca de Noé. Há animais que falam, como nas fábulas. Há transformações de coisas e pessoas em animais e vice-versa, como nas lendas. Há animais simbolizando qualidades humanas e forças da natureza, como na Bíblia e noutros livros sagrados. Há animais que são totems. E há depois animais que são apenas - como se fosse "apenas"! - belos, bonitos, engraçados, queridos, amigos, animais que são o que nós queremos para nós.
Como melhor amigo do homem, como único animal (juntamente com o gato) que se sabe portar bem em casa, o cão é um animal recorrente na publicidade, seja o dálmata da Alfred Dunhill (ver Impressão Digital nº1) seja o cachorro golden retriever que espalha o papel higiénico Scottex pela casa toda.
Por vezes os animais servem só para chamar a atenção, sendo a relação entre a imagem e o tema ou produto muito ténue. No caso do grupo financeiro Investec, a zebra é o pretexto que diz que a prestadora de serviços consegue "ler sempre nas entrelinhas". No anúncio da gama de impressoras HP, uma gorda exuberante passeia-se com um bácoro sob o texto "Casou-se com a opção menos acertada?". Nos dois reclames, os animais fazem a identificação e a diferença entre o homem e o animal. Trata-se de um recurso inteligente a uma função fácil, pois ataca-nos ao nível do inconsciente.
Nos anúncios do Kitkat já se processam metamorfoses com animais: o rebanho de ovelhas canta "country road..." para dizer ao automobilista que deve levar Kitkat consigo; noutro caso, o amador hipnotiza o cão em galinha sem dar por isso, mas ao terminar o seu chocolate o cão regressa ao normal: terá sido efeito da hipnose ou é o poder do chocolate?
A galinha é estrela num anúncio para professores do Concurso Projecto Ambiente da Herdade das Parchanas e Mundial Confiança. A fotografia do bicho traz esta pergunta junto do orifício galináceo donde saem os ovos: "Quem nasceu 1º?" O grafismo aproxima a frase do formato do ovo. A galinha, representando muitas vezes a castidade, é um símbolo simpático para um anúncio infantil.
Símbolo da paz, do Espírito Santo ou da doçura, a pomba atrai-nos para o anúncio dos écrãs LG, associando-lhes uma leveza mais aparente que real.
A campanha da nova câmara digital Olympus usa a bicharada para criar imagens divertidas. A câmara ("camedia", chama-lhe a Olympus, irritantemente) ganhou o nome de C-1 para se transformar em "c-you", divagação de linguagem informática para "see you". Num dos anúncios, um pinguim revê-se num mordomo aperaltado; noutro, um "extraterrestre" sentado na mesma cadeira futurista que a PT usou em campanha recente traz um gato ao colo semelhante a ele na intensidade do olhar e nas orelhas; noutro ainda, a serpente diz "c-you" para uma Eva igual a Adão (eis os efeitos da foto digital).
Na campanha do telemóvel Nokia 3330, os serviços disponíveis provocam a metamorfose do aparelho em animal: transforma-se em peixe, revelando que, via WAP, se acede a publicidade de restaurantes, desporto, etc; ou, como a cobra, o jogo Snake II no ecrã do telemóvel faz com que ele vá deixando cair a pele.
Um dos anúncios da campanha gigante da Siemens utiliza animais marinhos (estrela do mar, búzio, cavalo-marinho, peixe) para dizer que os seus electrodomésticos têm "Qualidade ao Serviço do Ambiente", assim, com maiúsculas. Os animais estão ali, simplesmente ali, como se houvesse uma relação evidente entre animais que vivem na extensão infinita do mar e os aspiradores e máquinas de lavar roupa da Siemens.
Essa relação existe, sim, entre os leitores dos anúncios e os animais. Tal como o cão e o gato, a galinha e a ovelha também os peixes e búzios são nossos primos e irmãos, parentes afastados que vibram dentro de nós, que se manifestam nos nossos instintos, que se espelham num olhar igual ao nosso, na mesma ternura dos primeiros tempos de vida, como a mãe o filhote urso branco do anúncio da National Geographic, ou na mesma função vital, como o cavalo negro que cobre a égua branca no anúncio da Bennetton.
Os animais são como nós, somos nós. Ver os animais é vermo-nos ao espelho: eis o que nos dizem os magníficos anúncios do Oceanário de Lisboa. Somos nós dentro do aquário. A única Raia (Rhinoptera Bonasus) que vemos através do vidro é um miúdo de orelhas espetadas e a única Garoupa Gigante (Epinephelus Lanceolatus) é um homem de olhos esbugalhados e de boca arqueada como as beiças do peixe. Não é nenhum insulto. Ser animal é bom, dá-nos Ser, dá-nos mundo. |
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[35.] Bichos
Por EDUARDO CINTRA TORRES
Segunda-feira, 4 de Junho de 2001
A publicidade é uma Arca de Noé. Há animais que falam, como nas fábulas. Há transformações de coisas e pessoas em animais e vice-versa, como nas lendas. Há animais simbolizando qualidades humanas e forças da natureza, como na Bíblia e noutros livros sagrados. Há animais que são totems. E há depois animais que são apenas - como se fosse "apenas"! - belos, bonitos, engraçados, queridos, amigos, animais que são o que nós queremos para nós.
Como melhor amigo do homem, como único animal (juntamente com o gato) que se sabe portar bem em casa, o cão é um animal recorrente na publicidade, seja o dálmata da Alfred Dunhill (ver Impressão Digital nº1) seja o cachorro golden retriever que espalha o papel higiénico Scottex pela casa toda.
Por vezes os animais servem só para chamar a atenção, sendo a relação entre a imagem e o tema ou produto muito ténue. No caso do grupo financeiro Investec, a zebra é o pretexto que diz que a prestadora de serviços consegue "ler sempre nas entrelinhas". No anúncio da gama de impressoras HP, uma gorda exuberante passeia-se com um bácoro sob o texto "Casou-se com a opção menos acertada?". Nos dois reclames, os animais fazem a identificação e a diferença entre o homem e o animal. Trata-se de um recurso inteligente a uma função fácil, pois ataca-nos ao nível do inconsciente.
Nos anúncios do Kitkat já se processam metamorfoses com animais: o rebanho de ovelhas canta "country road..." para dizer ao automobilista que deve levar Kitkat consigo; noutro caso, o amador hipnotiza o cão em galinha sem dar por isso, mas ao terminar o seu chocolate o cão regressa ao normal: terá sido efeito da hipnose ou é o poder do chocolate?
A galinha é estrela num anúncio para professores do Concurso Projecto Ambiente da Herdade das Parchanas e Mundial Confiança. A fotografia do bicho traz esta pergunta junto do orifício galináceo donde saem os ovos: "Quem nasceu 1º?" O grafismo aproxima a frase do formato do ovo. A galinha, representando muitas vezes a castidade, é um símbolo simpático para um anúncio infantil.
Símbolo da paz, do Espírito Santo ou da doçura, a pomba atrai-nos para o anúncio dos écrãs LG, associando-lhes uma leveza mais aparente que real.
A campanha da nova câmara digital Olympus usa a bicharada para criar imagens divertidas. A câmara ("camedia", chama-lhe a Olympus, irritantemente) ganhou o nome de C-1 para se transformar em "c-you", divagação de linguagem informática para "see you". Num dos anúncios, um pinguim revê-se num mordomo aperaltado; noutro, um "extraterrestre" sentado na mesma cadeira futurista que a PT usou em campanha recente traz um gato ao colo semelhante a ele na intensidade do olhar e nas orelhas; noutro ainda, a serpente diz "c-you" para uma Eva igual a Adão (eis os efeitos da foto digital).
Na campanha do telemóvel Nokia 3330, os serviços disponíveis provocam a metamorfose do aparelho em animal: transforma-se em peixe, revelando que, via WAP, se acede a publicidade de restaurantes, desporto, etc; ou, como a cobra, o jogo Snake II no ecrã do telemóvel faz com que ele vá deixando cair a pele.
Um dos anúncios da campanha gigante da Siemens utiliza animais marinhos (estrela do mar, búzio, cavalo-marinho, peixe) para dizer que os seus electrodomésticos têm "Qualidade ao Serviço do Ambiente", assim, com maiúsculas. Os animais estão ali, simplesmente ali, como se houvesse uma relação evidente entre animais que vivem na extensão infinita do mar e os aspiradores e máquinas de lavar roupa da Siemens.
Essa relação existe, sim, entre os leitores dos anúncios e os animais. Tal como o cão e o gato, a galinha e a ovelha também os peixes e búzios são nossos primos e irmãos, parentes afastados que vibram dentro de nós, que se manifestam nos nossos instintos, que se espelham num olhar igual ao nosso, na mesma ternura dos primeiros tempos de vida, como a mãe o filhote urso branco do anúncio da National Geographic, ou na mesma função vital, como o cavalo negro que cobre a égua branca no anúncio da Bennetton.
Os animais são como nós, somos nós. Ver os animais é vermo-nos ao espelho: eis o que nos dizem os magníficos anúncios do Oceanário de Lisboa. Somos nós dentro do aquário. A única Raia (Rhinoptera Bonasus) que vemos através do vidro é um miúdo de orelhas espetadas e a única Garoupa Gigante (Epinephelus Lanceolatus) é um homem de olhos esbugalhados e de boca arqueada como as beiças do peixe. Não é nenhum insulto. Ser animal é bom, dá-nos Ser, dá-nos mundo. |