Madrugada em Portugal
Por FERNANDO ILHARCO, f.a.ilharco@lse.ac.uk
Segunda-feira, 22 de Janeiro de 2001
São vários os sinais de que o país que hoje temos não cabe mais em nenhum dos discursos a que nos temos vindo a habituar nos últimos dez, vinte ou trinta anos. Não somos mais o país da revolução dos cravos, nem somos o Portugal da outra senhora, nem sequer o país que com Cavaco parecia ter-se fundido com uma Europa tranquilizadora.
De certa forma, Portugal é ainda o antigo império, o qual depois de desfeito ainda vai escondendo surpresas e últimos suspiros. Foi este império português - que já não existe, mas que se recusou a acabar em Macau - que em Timor descobriu um último suspiro, o qual ainda hoje pode ser ouvido junto ao mar, no Atlântico. Com Timor num novo destino, os braços do império parecem não ter ainda morrido. De certa maneira, existe algum regresso a África, sobretudo a Moçambique. Mas nada disto vai repetir o passado, porque no coração do império, do Minho ao Algarve, mas sobretudo na grande Lisboa, o país mudou radicalmente nos últimos cinco ou dez anos.
Portugal não é mais o país do antigamente, de brandos costumes, obediente ao chefe de família, religioso e amante do fado. Portugal também já não é casa para romantismos revolucionários ou para combatentes das utopias. Portugal já não é o país dos inícios dos anos 90, um bom aluno, que quer melhorar, que trabalha e vai fazendo o que pode. Portugal está diferente de tudo isto. Deixou envolver-se no turbilhão global das enormes transformações em curso. Portugal, se tomarmos o país pelo que fazem os portugueses, deixou de reflectir e passou a agir. Cada um para seu lado.
Hoje já não existe uma, mas várias sociedades portuguesas. À semelhança dos países mais desenvolvidos, Portugal está a mudar a sua base étnica e cultural. A forma como os portugueses de sempre são portugueses está também em mudança. O país está a estratificar-se ao longo de grande linhas transnacionais que, por todo o mundo, estão a separar populações com modos de vida muito diversos. As gentes que estão aí, os seus comportamentos nos escritórios, nas ruas, nos eventos públicos, em família, nas televisões, as formas de trabalhar e os modos como passam o dia-a-dia, são característicos de um mundo globalizado, implacavelmente competitivo, ansioso e pragmático, fragmentado e fechado sobre si mesmo.
Neste novo nosso país, como em todos os países que estão a percorrer os caminhos desta mesma história, a participação política em eleições gerais, disto ou daquilo e de tantos em tantos anos, está a diminuir e assim tende a continuar. A abstenção na votação para a Presidência da República não é um caso isolado. Desde o 25 de Abril que a percentagem dos votantes tem estado sempre em queda. Não só em Portugal, mas por todo o mundo mais desenvolvido.
Nos EUA, George Bush foi eleito Presidente por uma minoria. Cerca de 1/3 dos habitantes dos EUA não votam: ou não têm idade, ou são emigrantes legais ou ilegais. Dos outros dois terços, metade não votaram. Da metade que resta, um pouco menos de metade votou em Bush. Resumindo e concluindo, num país com perto de 300 milhões de habitantes, menos de 50 milhões elegeram efectivamente o Presidente.
Em Portugal, as coisas já estão no mesmo caminho. Dos mais de dez milhões de pessoas que habitam o país, entre os quais se devem referir algumas centenas de milhares de imigrantes vindos do Leste da Europa, de África, da Ásia e da América do Sul, apenas 8,5 milhões são eleitores. Talvez perto de dois milhões de pessoas, ou porque não tem idade para votar ou porque são emigrantes legais ou ilegais, não têm direito a voto. Do eleitorado votante, metade não se deu ao trabalho de exercer o seu direito de voto. Dos eleitores que efectivamente votaram, um pouco mais de metade escolheu quem veio a vencer. Ou seja, num pais onde vivem mais de 10 milhões de pessoas, a vitoria "absoluta" de Sampaio é construída sobre algo mais do que dois milhões de votos - só uma em cada cinco pessoas que aleatoriamente encontremos na rua é que votou no candidato vencedor. Este quadro quer dizer várias coisas.
Em primeiro lugar, quer dizer que a maioria do eleitorado passou a ser uma minoria como qualquer outra. Em segundo lugar, quer dizer que, ou o poder político assenta noutro tipo de instituições e de sistemas, ou a maioria das pessoas pura e simplesmente deixaram de ter uma palavra a dizer nos rumos que as coisas tomam. Possivelmente as duas hipóteses são verdadeiras.
O sistema político de hoje são os mercados. Vota quem vota, os políticos discutem, e os mercados decidem. A delegação de poderes políticos e económicos para entidades supra-estatais como a União Europeia ou a Organização Mundial do Comércio está a esvaziar partes tradicionalmente importantes da soberania do Estado. A par desta deslocalização ascendente do poder, os Estados têm vindo também a delegar noutro tipo de entidades, em empresas, em coligações empresariais globais, e em organizações não-governamentais, uma parte importante da sua intervenção na actividade económica. Confrontado com mercados abertos, gigantescos, complexos e altamente competitivos, o Estado não tem alternativa senão ceder as suas posições a entidades privadas melhor preparadas e motivadas para prosseguirem os objectivos da competição contemporânea.
Este novo mundo da competição empresarial global, este sistema planetário de tecnologia e de inovação, tem vindo a surgir como o novo pólo detentor do poder mundial. não apenas do poder económico, mas também do poder político, na medida em que este último tem vindo a ser modelado e subordinado pelo primeiro. Estas elites transnacionais empresariais, e as legiões de profissionais que os seguem, não têm nada a dizer aos políticos tradicionais. As eleições de quatro em quatro ou de cinco em cinco anos e as grandes políticas públicas que os governos vão formulando não passam de ruído de fundo nos ouvidos deste outro mundo que todos os dias decide, muda, inova e arrisca. O poder do dinheiro, a linguagem da tecnologia, o pragmatismo do grande jogo mundial e tudo o que conta no mundo omnipresente da competição tecnológica.
A lógica dos mercados globais, que enquadra a actividade empresarial em todo o mundo, está separada da lógica da política nacional. Num dia o Governo aprova uma reforma fiscal que tributa pesadamente os ganhos de capital, no dia seguinte as empresas começam a mudar as suas sedes para países onde as regras do jogo são mais favoráveis. A contradição que estas duas lógicas constituem é visível na transferência de uma "holding" do grupo PT para a Holanda. O Estado português está dos dois lados da questão: está no Governo que aprovou a reforma fiscal, e está na PT como accionista com uma "golden share".
Esta lógica global de competição e deslocalização está a transformar o país a vários níveis. Talvez a maior novidade seja o termos deixado de ser um país de emigrantes para estarmos cada vez mais a ser uma terra de imigrantes. Todos os dias chegam a Portugal novos candidatos a ficar por cá, tentando refazer as suas vidas. Vêm do Brasil, de África, da Ásia. Vêm de perto e de muito longe, e muitos deles vão mesmo ficar, viver e acabar por votar aqui, em Portugal.
Várias mudanças estão a correr em simultâneo. Os desafios que o país enfrenta não são pequenos e é impossível prever o que vai ser o país dentro de dez, vinte ou cinquenta anos. No entanto, é já visível que entrámos na madrugada de um novo país que aí vem. São tempos diferentes os que estão a chegar. Talvez não sejam nem bons nem maus, porque essencialmente são tempos diferentes.
Fernando Ilharco, f.a.ilharco@lse.ac.uk
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Madrugada em Portugal
Por FERNANDO ILHARCO, f.a.ilharco@lse.ac.uk
Segunda-feira, 22 de Janeiro de 2001
São vários os sinais de que o país que hoje temos não cabe mais em nenhum dos discursos a que nos temos vindo a habituar nos últimos dez, vinte ou trinta anos. Não somos mais o país da revolução dos cravos, nem somos o Portugal da outra senhora, nem sequer o país que com Cavaco parecia ter-se fundido com uma Europa tranquilizadora.
De certa forma, Portugal é ainda o antigo império, o qual depois de desfeito ainda vai escondendo surpresas e últimos suspiros. Foi este império português - que já não existe, mas que se recusou a acabar em Macau - que em Timor descobriu um último suspiro, o qual ainda hoje pode ser ouvido junto ao mar, no Atlântico. Com Timor num novo destino, os braços do império parecem não ter ainda morrido. De certa maneira, existe algum regresso a África, sobretudo a Moçambique. Mas nada disto vai repetir o passado, porque no coração do império, do Minho ao Algarve, mas sobretudo na grande Lisboa, o país mudou radicalmente nos últimos cinco ou dez anos.
Portugal não é mais o país do antigamente, de brandos costumes, obediente ao chefe de família, religioso e amante do fado. Portugal também já não é casa para romantismos revolucionários ou para combatentes das utopias. Portugal já não é o país dos inícios dos anos 90, um bom aluno, que quer melhorar, que trabalha e vai fazendo o que pode. Portugal está diferente de tudo isto. Deixou envolver-se no turbilhão global das enormes transformações em curso. Portugal, se tomarmos o país pelo que fazem os portugueses, deixou de reflectir e passou a agir. Cada um para seu lado.
Hoje já não existe uma, mas várias sociedades portuguesas. À semelhança dos países mais desenvolvidos, Portugal está a mudar a sua base étnica e cultural. A forma como os portugueses de sempre são portugueses está também em mudança. O país está a estratificar-se ao longo de grande linhas transnacionais que, por todo o mundo, estão a separar populações com modos de vida muito diversos. As gentes que estão aí, os seus comportamentos nos escritórios, nas ruas, nos eventos públicos, em família, nas televisões, as formas de trabalhar e os modos como passam o dia-a-dia, são característicos de um mundo globalizado, implacavelmente competitivo, ansioso e pragmático, fragmentado e fechado sobre si mesmo.
Neste novo nosso país, como em todos os países que estão a percorrer os caminhos desta mesma história, a participação política em eleições gerais, disto ou daquilo e de tantos em tantos anos, está a diminuir e assim tende a continuar. A abstenção na votação para a Presidência da República não é um caso isolado. Desde o 25 de Abril que a percentagem dos votantes tem estado sempre em queda. Não só em Portugal, mas por todo o mundo mais desenvolvido.
Nos EUA, George Bush foi eleito Presidente por uma minoria. Cerca de 1/3 dos habitantes dos EUA não votam: ou não têm idade, ou são emigrantes legais ou ilegais. Dos outros dois terços, metade não votaram. Da metade que resta, um pouco menos de metade votou em Bush. Resumindo e concluindo, num país com perto de 300 milhões de habitantes, menos de 50 milhões elegeram efectivamente o Presidente.
Em Portugal, as coisas já estão no mesmo caminho. Dos mais de dez milhões de pessoas que habitam o país, entre os quais se devem referir algumas centenas de milhares de imigrantes vindos do Leste da Europa, de África, da Ásia e da América do Sul, apenas 8,5 milhões são eleitores. Talvez perto de dois milhões de pessoas, ou porque não tem idade para votar ou porque são emigrantes legais ou ilegais, não têm direito a voto. Do eleitorado votante, metade não se deu ao trabalho de exercer o seu direito de voto. Dos eleitores que efectivamente votaram, um pouco mais de metade escolheu quem veio a vencer. Ou seja, num pais onde vivem mais de 10 milhões de pessoas, a vitoria "absoluta" de Sampaio é construída sobre algo mais do que dois milhões de votos - só uma em cada cinco pessoas que aleatoriamente encontremos na rua é que votou no candidato vencedor. Este quadro quer dizer várias coisas.
Em primeiro lugar, quer dizer que a maioria do eleitorado passou a ser uma minoria como qualquer outra. Em segundo lugar, quer dizer que, ou o poder político assenta noutro tipo de instituições e de sistemas, ou a maioria das pessoas pura e simplesmente deixaram de ter uma palavra a dizer nos rumos que as coisas tomam. Possivelmente as duas hipóteses são verdadeiras.
O sistema político de hoje são os mercados. Vota quem vota, os políticos discutem, e os mercados decidem. A delegação de poderes políticos e económicos para entidades supra-estatais como a União Europeia ou a Organização Mundial do Comércio está a esvaziar partes tradicionalmente importantes da soberania do Estado. A par desta deslocalização ascendente do poder, os Estados têm vindo também a delegar noutro tipo de entidades, em empresas, em coligações empresariais globais, e em organizações não-governamentais, uma parte importante da sua intervenção na actividade económica. Confrontado com mercados abertos, gigantescos, complexos e altamente competitivos, o Estado não tem alternativa senão ceder as suas posições a entidades privadas melhor preparadas e motivadas para prosseguirem os objectivos da competição contemporânea.
Este novo mundo da competição empresarial global, este sistema planetário de tecnologia e de inovação, tem vindo a surgir como o novo pólo detentor do poder mundial. não apenas do poder económico, mas também do poder político, na medida em que este último tem vindo a ser modelado e subordinado pelo primeiro. Estas elites transnacionais empresariais, e as legiões de profissionais que os seguem, não têm nada a dizer aos políticos tradicionais. As eleições de quatro em quatro ou de cinco em cinco anos e as grandes políticas públicas que os governos vão formulando não passam de ruído de fundo nos ouvidos deste outro mundo que todos os dias decide, muda, inova e arrisca. O poder do dinheiro, a linguagem da tecnologia, o pragmatismo do grande jogo mundial e tudo o que conta no mundo omnipresente da competição tecnológica.
A lógica dos mercados globais, que enquadra a actividade empresarial em todo o mundo, está separada da lógica da política nacional. Num dia o Governo aprova uma reforma fiscal que tributa pesadamente os ganhos de capital, no dia seguinte as empresas começam a mudar as suas sedes para países onde as regras do jogo são mais favoráveis. A contradição que estas duas lógicas constituem é visível na transferência de uma "holding" do grupo PT para a Holanda. O Estado português está dos dois lados da questão: está no Governo que aprovou a reforma fiscal, e está na PT como accionista com uma "golden share".
Esta lógica global de competição e deslocalização está a transformar o país a vários níveis. Talvez a maior novidade seja o termos deixado de ser um país de emigrantes para estarmos cada vez mais a ser uma terra de imigrantes. Todos os dias chegam a Portugal novos candidatos a ficar por cá, tentando refazer as suas vidas. Vêm do Brasil, de África, da Ásia. Vêm de perto e de muito longe, e muitos deles vão mesmo ficar, viver e acabar por votar aqui, em Portugal.
Várias mudanças estão a correr em simultâneo. Os desafios que o país enfrenta não são pequenos e é impossível prever o que vai ser o país dentro de dez, vinte ou cinquenta anos. No entanto, é já visível que entrámos na madrugada de um novo país que aí vem. São tempos diferentes os que estão a chegar. Talvez não sejam nem bons nem maus, porque essencialmente são tempos diferentes.
Fernando Ilharco, f.a.ilharco@lse.ac.uk