As duas faces de Carlos Silvino

03-12-2002
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As Duas Faces de Carlos Silvino

Por NUNO FERREIRA

Domingo, 01 de Dezembro de 2002 Onde está o verdadeiro "Bibi"? No homem "simpático" descrito pelos vizinhos ou no homem acusado de ser "pedófilo angariador" de menores? "O "Bibi"? O "Bibi" morava ali. Está a ver aquele montão de ervas ao fundo? A barraca dele era ali", conta A., um idoso que pede para não ser identificado. "Aqui, pode escrever, toda a gente tem boa impressão dele, foi sempre impecável, nunca ninguém se queixou de nada". Carlos Silvino morou ali mais de 10 anos, num bairro de barracas feitas de madeira, zinco e tijolo, na Rua Alexandre Sá Pinto, à Ajuda. O dédalo de barracas - conta quem ali vive que já foram muitas mais - fica paredes meias com o campo de futebol das Salésias, junto à Escola Secundária Marquês de Pombal e a escassos 500 metros do Colégio Nuno Álvares, da Casa Pia. "Tinha a barraca dele, meio em tijolo, meio em zinco, até que há um ano demoliram mais de 70 barracas e realojaram-no em Santos", conta. "Ele aqui sempre tratou bem toda a gente", explica o cabo-verdiano Manuel Miranda, que até foi em excursão com Carlos até à Serra da Estrela. "Eu vivo aqui desde 1977, ele morou aqui mais de dez anos e sempre me tratou bem. Para mim, foi um homem bacana, nunca me ofendeu. Uma vez deu-me boleia, era um homem sensacional. Agora é que estou a ouvir dizer na televisão que ele não presta..." Domingos, mecânico numa pequena oficina no meio das barracas, encolhe os ombros: "Aqui ele era uma pessoa normal, não tenho razão de queixa nenhuma". Antes de morar na barraca, "Bibi" vivera num anexo de uma casa modesta da rua, à porta da qual surgem agora dois vultos envelhecidos que pedem para não ser identificados. "Quando viemos para aqui, em 90, 91, ele já aqui morava. Ficou connosco dois ou três anos e depois mudou-se ali para a frente, para a barraca... Como era ele? Olhe, foi sempre muito educado, dava-se bem com toda a gente, nunca aqui ninguém o procurou". Os dois idosos moradores da pequena e decadente moradia da Ajuda é que ficavam com a correspondência de Carlos. "Ele continuava a receber aqui as cartas, ainda aqui temos três cartas para lhe entregar..." Ora atencioso, ora agressivo Quem era afinal Carlos Silvino da Silva? O homem "normal e educado" descrito pelos vizinhos ou o "pedófilo angariador de menores" que muitos casapianos acusam de os ter assediado? Talvez a verdade esteja nesta afirmação de Adelino Granja, advogado e ex-vítima de Carlos: "Eles às vezes era atencioso, outras era agressivo, física e verbalmente". Carlos Silvino da Silva, solteiro, mais conhecido pelo "Bibi", nasceu a 14 de Agosto de 1956 em Cercal do Alentejo, filho de pai incógnito e mãe que terá morrido cedo. Orfão, terá vindo com dois anos para Lisboa, primeiro para a Santa Casa da Misericórdia e depois para a Casa Pia, onde terá ingressado aos quatros anos. A vida e a família de Carlos foram sempre a Casa Pia. Como descreve António Bastos, um advogado de Setúbal que o representou em 1991: "Das poucas coisas que me lembro dele, é que tinha uma relação afectiva diabólica com a Casa Pia". Como aluno, Carlos cedo ganha fama de homossexual entre os colegas. Aos 19 anos, fica tristemente célebre, por alegadamente ter violado um rapaz na presença dos colegas. O caso não obsta a que Carlos seja admitido como vigilante em 1975, com acesso livre às camaratas e aos balneários. As façanhas do vigilante aumentam, quando, em 20 dias, terá alegadamente violado uma dezena de crianças entre os 9 e os 11 anos. Os colegas queixam-se ainda de que Carlos, dormindo paredes meias com as camaratas, guarda num diário os pormenores das suas aventuras sexuais. Estamos em pleno e conturbado pós-25 de Abril e os colegas decidem revoltar-se e expulsá-lo. Não é claro por onde terá andado Carlos naquele período embora se especule que tenha estado na tropa. Até que em 1978, é readmitido, já como jardineiro, profissão que, no entanto, por não ter qualificação para tal, nunca terá exercido. Acusações com vinte anos Com "Bibi" de novo na Casa Pia, as coisas não melhoram. O mestre relojoeiro Américo Henriques, em Junho de 1978, escreve uma exposição sobre alegados abusos sexuais de Carlos ao director da secção de Pina Manique da Casa Pia e, mais tarde, em Fevereiro de 1980, ao Ministro dos Assuntos Sociais. O ambiente entre os internos piora por essa altura. No jantar comemorativo dos 200 anos da Casa Pia, alunos como o actual advogado Adelino Granja, queixam-se directamente ao presidente da República Ramalho Eanes, na presença da então Secretária de Estado da Família Teresa Costa Macedo. "Eu mencionei ao Ramalho Eanes o nome do "Bibi" e disse-lhe que ele era violador e angariador e que havia tráfico de menores na Casa Pia", afirma peremptório Adelino Granja. O que é certo é que Carlos é interrogado em 1981 pela polícia judiciária, é aberto contra si o processo 10344/81 mas este, remetido em 1982 para o tribunal, foi arquivado. Teresa Costa Macedo despacha que Carlos fica impedido de entrar nos estabelecimentos em que estivessem alunos e repreende o professor Américo, que considera "ter exorbitado as suas funções". É por essa altura que se fala na fuga de quatro crianças da secção Nuno Alvares da Casa Pia que vêem a ser descobertas por quatro educadores da instituição no apartamento de Cascais de um diplomata. Foi apresentada uma queixa à PJ que remeteu tudo para o Tribunal de Cascais que arquivou o processo por "falta de provas" em 87 e o destruiu em 93. Qual foi o papel de Carlos Silvino neste caso? Teresa Costa Macedo não tem dúvidas de que este era "angariador de crianças para pessoas conhecidas, que vão de políticos a diplomatas e gente da comunicação social". Se nada está provado quanto à sua ligação ao caso de Cascais, alguns dos que o denunciam hoje não têm dúvidas de que Carlos era angariador: "Se há provas de que ele era angariador? Então não há... Ele recebia dinheiro de motoristas que iam lá de carro buscar as crianças", afirma o advogado Adelino Granja, assumida vítima de assédio por parte de "Bibi". Durante a década de 80, Carlos continua na Casa Pia, onde não parará de causar problemas, a avaliar pelos despachos da provedoria. Em 83, em 84 e por diversas vezes em 85 sucessivos despachos proibiam Carlos de, fora das horas de serviço, frequentar a secção de Pina Manique. Carlos, esse, que parecia desobedecer sempre. Numa informação escrita em Maio de 85 mais uma vez pelo professor Américo, este escreve que Carlos entrava e permanecia na secção de Pina Manique a qualquer hora do dia e da noite. Américo contava que "Bibi" tinha a chave da garagem onde ficava até altas horas da noite. Durante a década de 80, o ex-provedor Luís Rebelo instaurou seis processos a Carlos, dois por pedofilia e os outros por abusos, mau comportamento e rixas. Em 84 sofreu uma repreensão escrita, em 86 uma multa de cinco contos, em 87 outra multa e em 88 foi afastado do serviço durante 30 dias. Na Casa Pia e nas redondezas, "Bibi" alegadamente alicia os menores com revistas, dinheiro, rebuçados, chocolates, pastilhas elásticas. Pede que lhe chamem "pai". Outros chamam-lhe "padrinho" ou "tio". "À noite era um vampiro" Não é, no entanto, só a alegada "pedofilia" que parece sobressair do retrato possível de Carlos Silvino. Mais que uma vez são características agressivas e conflituosas que se distinguem também. Em Julho de 1989, por exemplo, é acusado de ter insultado e agredido o motorista Ricardo Augusto Lourenço. "O Carlos Silvino era um indivíduo violento, tinha uma voz que intimidava. Ameaçava alunos e inclusivamente superiores", conta o advogado Adelino Granja. "Ele chegou a ameaçar de tareia um dos assessores da provedoria". Em Maio desse ano, entretanto, "Bibi" é alvo de um novo inquérito, desta vez por causa da queixa de uma mãe de um aluno alegadamente aliciado por Carlos. Instaurado um processo disciplinar, são dadas como provadas as acusações da utilização por parte de Carlos da cave da provedoria para assédio de menores, de masturbação de um aluno na casa de banho e de uma tentativa de penetração. Em Setembro de 89, é proposta a aposentação compulsiva e demissão de Carlos ao então Secretário de Estado Arlindo de Carvalho. Este despachou a demissão a 4 de Outubro. Carlos Silvino recorre da decisão para o Supremo Tribunal Administrativo e junta-lhe um abaixo-assinado de 193 assinaturas de colegas que testemunham o seu "bom comportamento". Na lista consta, entre outros, Luís da Cruz e Silva que agora explica: "Eu já deixei a Casa Pia há anos, não me quero pronunciar sobre isso". "Isso era típico dele. Sempre que tinha problemas na Casa Pia, conseguia abaixo-assinados", diz uma ex-vítima de assédio por parte de "Bibi", "ele sabia aproximar-se das pessoas, fazer-se amigo. Tenho um mecânico meu amigo que o conhece há muito tempo e que me disse: "Olha, era a última pessoa em quem desconfiaria". À primeira vista, diz este ex-casapiano que pede anonimato, Carlos Silvino era uma pessoa "normal". "Se você privasse com o "Bibi" acharia que ele era afável, muito prestável. Ele era assim, fazia-se muito prestável, submisso, lambe botas, para poder aproximar-se das pessoas e, nomeadamente, das crianças. Você via-o numa festa da Casa Pia e lá estava ele a servir de motorista do provedor e a ajudar toda a gente a estacionar os carros. Mas os miúdos... tinham um pânico incrível dele. No fundo, era um sabujo". Adelino Granja, não tem dúvidas de que o advogado de Carlos Silvino vai tentar explorar ao máximo a alegada "dupla personalidade" do cliente: "Realmente, ele ajudava a provedoria em tudo, na jardinagem, a fazer fretes, a transportar daqui para ali, era muito prestável para a provedoria", afirma. "Inclusivamente em relação às crianças, parecia muito meiguinho mas depois revelava a sua faceta de violador". À noite, as coisas mudavam. "Era como um vampiro. À noite, assediava as crianças. Era sempre à noite que havia tráfico de crianças que saíam da Casa Pia e acabavam por aparecer nessa mesma noite ou no dia seguinte", conta o advogado Adelino Granja. António Bastos, o advogado que representou Carlos na época, conta que o caso de "Bibi" lhe chegou às mãos "através de outras pessoas que davam óptimas referências dele". Ao requerer a suspensão da eficácia do despacho de 89, o advogado de Setúbal descreve Carlos Silvino como alguém "sem família", cuja única "família fora sempre a Casa Pia" e "totalmente impreparado para enfrentar o mundo exterior": "É pessoa totalmente inexperiente na movimentação no mercado de emprego, algo simples de espírito, ingénuo e impreparado para reagir contra a adversidade do presente momento". A relação profissional de Bastos e Carlos Silvino terminaria mal, no entanto. Carlos terá juntado documentos ao processo à revelia do advogado e este renunciou à procuração. O que é certo é que em Abril de 91, o STA profere um acórdão que, "por insuficiência de individualização das faltas disciplinares", anula o despacho punitivo e determina a readmissão de "Bibi" na Casa Pia. Este recebe o dinheiro que não lhe fora pago desde 89, acrescido de juros de mora e é readmitido a 24 de Junho de 1991. Como Carlos morava na Rua Alexandre Sá Pinto, a umas centenas de metros do Colégio Nuno Álvares, o provedor Luís Rebelo solicita a Vieira de Castro, na altura secretário de Estado da Segurança Social, a sua transferência para um serviço do Ministério da Segurança Social "onde este não tivesse contactos com menores". Carlos não aceita ser transferido e alega que recorrerá de novo ao STA se o transferirem compulsivamente. Confusão na oficina A conflitualidade de Carlos Silvino, entretanto motorista dos autocarros que levavam os rapazes aos jogos de futebol, causa de novo problemas nos anos 90, desta vez na oficina de mecânica. No final da década, a situação na oficina é de tal ordem que a provedoria manda fazer uma auditoria à mesma. O resultado é tudo menos pacífico: O mecânico Fernando Vicente acusa-o de insultar os mecânicos e de o "acusar de andar a roubar". Outro mecânico, Paulo Soares, acusa Carlos de se ter feito passar ao telefone pelo provedor adjunto para que a sua viatura fosse revistada. O responsável da frota, Amaral Macedo, vai mais longe. Numa comunicação ao director do Colégio Pina Manique, acusa "Bibi" de o ter agredido física e verbalmente na presença de motoristas e mecânicos, de lhe chamar "ladrão", de perseguir os mecânicos "espreitando e tirando fotografias do gradeamento exterior e do interior dos autocarros", de "espreitar os mesmos escondido através da janela do lar", de "invadir as instalações diariamente após o horário laboral". Carlos Silvino contra-ataca. Acusa o mecânico Vicente de "roubar óleo", acusa os mecânicos em geral de efectuarem reparações em carros particulares e de não atenderem as suas solicitações de serviço "por estarem a jogar computador ou a tomar café". Na auditoria à oficina, é o próprio auditor a reconhecer: "Nota-se aí um certo clima de instabilidade que teima em ficar e parece que causada pela persistência de Carlos Silvino da Silva em continuar a fazer acusações". Em Fevereiro de 2001, Carlos Silvino parece ganhar mais um braço-de-ferro. Amaral Macedo é afastado do cargo de gestor da frota. Mas as coisas vão voltar a complicar-se e de vez, para um homem que sobreviveu a três décadas de turbulência e problemas na Casa Pia. Pais de alunos alegadamente assediados por ele apresentam queixas que dão origem a investigações na PJ. Já este ano, em Setembro, a mãe de uma alegada vítima de violação queixa-se também à PJ. O filme parece estar prestes a chegar ao fim. Carlos é aposentado compulsivamente na sequência de novo processo disciplinar. A 7 de Novembro é emitido um mandado de detenção. "Bibi" é preso preventivamente dia 25. "Ele teve sempre o apoio da provedoria mas desta vez foi demais, eram casos a mais...", afirma Adelino Granja. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Abusos de "Bibi" não eram um caso isolado na instituição

Filmes de pornografia infantil envolvem a rede da Casa Pia

Denúncias noticiadas em 1981 não tiveram eco nos jornais

Marques Mendes diz que há uma crise de confiança nas instituições

Louçã pede contenção à SIC

As duas faces de Carlos Silvino

Abusos sexuais de menores devem depender de queixa?

Os abusos à luz da lei

Marc Dutroux: o "inimigo número um" da Bélgica

O horror no Colégio do País de Gales

A"Operação Ado 71" que levou ao suicídio de cinco suspeitos em França

Com sombra de pecado

Governo britânico prevê controlo electrónico dos abusadores

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Por NUNO FERREIRA

Domingo, 01 de Dezembro de 2002 Onde está o verdadeiro "Bibi"? No homem "simpático" descrito pelos vizinhos ou no homem acusado de ser "pedófilo angariador" de menores? "O "Bibi"? O "Bibi" morava ali. Está a ver aquele montão de ervas ao fundo? A barraca dele era ali", conta A., um idoso que pede para não ser identificado. "Aqui, pode escrever, toda a gente tem boa impressão dele, foi sempre impecável, nunca ninguém se queixou de nada". Carlos Silvino morou ali mais de 10 anos, num bairro de barracas feitas de madeira, zinco e tijolo, na Rua Alexandre Sá Pinto, à Ajuda. O dédalo de barracas - conta quem ali vive que já foram muitas mais - fica paredes meias com o campo de futebol das Salésias, junto à Escola Secundária Marquês de Pombal e a escassos 500 metros do Colégio Nuno Álvares, da Casa Pia. "Tinha a barraca dele, meio em tijolo, meio em zinco, até que há um ano demoliram mais de 70 barracas e realojaram-no em Santos", conta. "Ele aqui sempre tratou bem toda a gente", explica o cabo-verdiano Manuel Miranda, que até foi em excursão com Carlos até à Serra da Estrela. "Eu vivo aqui desde 1977, ele morou aqui mais de dez anos e sempre me tratou bem. Para mim, foi um homem bacana, nunca me ofendeu. Uma vez deu-me boleia, era um homem sensacional. Agora é que estou a ouvir dizer na televisão que ele não presta..." Domingos, mecânico numa pequena oficina no meio das barracas, encolhe os ombros: "Aqui ele era uma pessoa normal, não tenho razão de queixa nenhuma". Antes de morar na barraca, "Bibi" vivera num anexo de uma casa modesta da rua, à porta da qual surgem agora dois vultos envelhecidos que pedem para não ser identificados. "Quando viemos para aqui, em 90, 91, ele já aqui morava. Ficou connosco dois ou três anos e depois mudou-se ali para a frente, para a barraca... Como era ele? Olhe, foi sempre muito educado, dava-se bem com toda a gente, nunca aqui ninguém o procurou". Os dois idosos moradores da pequena e decadente moradia da Ajuda é que ficavam com a correspondência de Carlos. "Ele continuava a receber aqui as cartas, ainda aqui temos três cartas para lhe entregar..." Ora atencioso, ora agressivo Quem era afinal Carlos Silvino da Silva? O homem "normal e educado" descrito pelos vizinhos ou o "pedófilo angariador de menores" que muitos casapianos acusam de os ter assediado? Talvez a verdade esteja nesta afirmação de Adelino Granja, advogado e ex-vítima de Carlos: "Eles às vezes era atencioso, outras era agressivo, física e verbalmente". Carlos Silvino da Silva, solteiro, mais conhecido pelo "Bibi", nasceu a 14 de Agosto de 1956 em Cercal do Alentejo, filho de pai incógnito e mãe que terá morrido cedo. Orfão, terá vindo com dois anos para Lisboa, primeiro para a Santa Casa da Misericórdia e depois para a Casa Pia, onde terá ingressado aos quatros anos. A vida e a família de Carlos foram sempre a Casa Pia. Como descreve António Bastos, um advogado de Setúbal que o representou em 1991: "Das poucas coisas que me lembro dele, é que tinha uma relação afectiva diabólica com a Casa Pia". Como aluno, Carlos cedo ganha fama de homossexual entre os colegas. Aos 19 anos, fica tristemente célebre, por alegadamente ter violado um rapaz na presença dos colegas. O caso não obsta a que Carlos seja admitido como vigilante em 1975, com acesso livre às camaratas e aos balneários. As façanhas do vigilante aumentam, quando, em 20 dias, terá alegadamente violado uma dezena de crianças entre os 9 e os 11 anos. Os colegas queixam-se ainda de que Carlos, dormindo paredes meias com as camaratas, guarda num diário os pormenores das suas aventuras sexuais. Estamos em pleno e conturbado pós-25 de Abril e os colegas decidem revoltar-se e expulsá-lo. Não é claro por onde terá andado Carlos naquele período embora se especule que tenha estado na tropa. Até que em 1978, é readmitido, já como jardineiro, profissão que, no entanto, por não ter qualificação para tal, nunca terá exercido. Acusações com vinte anos Com "Bibi" de novo na Casa Pia, as coisas não melhoram. O mestre relojoeiro Américo Henriques, em Junho de 1978, escreve uma exposição sobre alegados abusos sexuais de Carlos ao director da secção de Pina Manique da Casa Pia e, mais tarde, em Fevereiro de 1980, ao Ministro dos Assuntos Sociais. O ambiente entre os internos piora por essa altura. No jantar comemorativo dos 200 anos da Casa Pia, alunos como o actual advogado Adelino Granja, queixam-se directamente ao presidente da República Ramalho Eanes, na presença da então Secretária de Estado da Família Teresa Costa Macedo. "Eu mencionei ao Ramalho Eanes o nome do "Bibi" e disse-lhe que ele era violador e angariador e que havia tráfico de menores na Casa Pia", afirma peremptório Adelino Granja. O que é certo é que Carlos é interrogado em 1981 pela polícia judiciária, é aberto contra si o processo 10344/81 mas este, remetido em 1982 para o tribunal, foi arquivado. Teresa Costa Macedo despacha que Carlos fica impedido de entrar nos estabelecimentos em que estivessem alunos e repreende o professor Américo, que considera "ter exorbitado as suas funções". É por essa altura que se fala na fuga de quatro crianças da secção Nuno Alvares da Casa Pia que vêem a ser descobertas por quatro educadores da instituição no apartamento de Cascais de um diplomata. Foi apresentada uma queixa à PJ que remeteu tudo para o Tribunal de Cascais que arquivou o processo por "falta de provas" em 87 e o destruiu em 93. Qual foi o papel de Carlos Silvino neste caso? Teresa Costa Macedo não tem dúvidas de que este era "angariador de crianças para pessoas conhecidas, que vão de políticos a diplomatas e gente da comunicação social". Se nada está provado quanto à sua ligação ao caso de Cascais, alguns dos que o denunciam hoje não têm dúvidas de que Carlos era angariador: "Se há provas de que ele era angariador? Então não há... Ele recebia dinheiro de motoristas que iam lá de carro buscar as crianças", afirma o advogado Adelino Granja, assumida vítima de assédio por parte de "Bibi". Durante a década de 80, Carlos continua na Casa Pia, onde não parará de causar problemas, a avaliar pelos despachos da provedoria. Em 83, em 84 e por diversas vezes em 85 sucessivos despachos proibiam Carlos de, fora das horas de serviço, frequentar a secção de Pina Manique. Carlos, esse, que parecia desobedecer sempre. Numa informação escrita em Maio de 85 mais uma vez pelo professor Américo, este escreve que Carlos entrava e permanecia na secção de Pina Manique a qualquer hora do dia e da noite. Américo contava que "Bibi" tinha a chave da garagem onde ficava até altas horas da noite. Durante a década de 80, o ex-provedor Luís Rebelo instaurou seis processos a Carlos, dois por pedofilia e os outros por abusos, mau comportamento e rixas. Em 84 sofreu uma repreensão escrita, em 86 uma multa de cinco contos, em 87 outra multa e em 88 foi afastado do serviço durante 30 dias. Na Casa Pia e nas redondezas, "Bibi" alegadamente alicia os menores com revistas, dinheiro, rebuçados, chocolates, pastilhas elásticas. Pede que lhe chamem "pai". Outros chamam-lhe "padrinho" ou "tio". "À noite era um vampiro" Não é, no entanto, só a alegada "pedofilia" que parece sobressair do retrato possível de Carlos Silvino. Mais que uma vez são características agressivas e conflituosas que se distinguem também. Em Julho de 1989, por exemplo, é acusado de ter insultado e agredido o motorista Ricardo Augusto Lourenço. "O Carlos Silvino era um indivíduo violento, tinha uma voz que intimidava. Ameaçava alunos e inclusivamente superiores", conta o advogado Adelino Granja. "Ele chegou a ameaçar de tareia um dos assessores da provedoria". Em Maio desse ano, entretanto, "Bibi" é alvo de um novo inquérito, desta vez por causa da queixa de uma mãe de um aluno alegadamente aliciado por Carlos. Instaurado um processo disciplinar, são dadas como provadas as acusações da utilização por parte de Carlos da cave da provedoria para assédio de menores, de masturbação de um aluno na casa de banho e de uma tentativa de penetração. Em Setembro de 89, é proposta a aposentação compulsiva e demissão de Carlos ao então Secretário de Estado Arlindo de Carvalho. Este despachou a demissão a 4 de Outubro. Carlos Silvino recorre da decisão para o Supremo Tribunal Administrativo e junta-lhe um abaixo-assinado de 193 assinaturas de colegas que testemunham o seu "bom comportamento". Na lista consta, entre outros, Luís da Cruz e Silva que agora explica: "Eu já deixei a Casa Pia há anos, não me quero pronunciar sobre isso". "Isso era típico dele. Sempre que tinha problemas na Casa Pia, conseguia abaixo-assinados", diz uma ex-vítima de assédio por parte de "Bibi", "ele sabia aproximar-se das pessoas, fazer-se amigo. Tenho um mecânico meu amigo que o conhece há muito tempo e que me disse: "Olha, era a última pessoa em quem desconfiaria". À primeira vista, diz este ex-casapiano que pede anonimato, Carlos Silvino era uma pessoa "normal". "Se você privasse com o "Bibi" acharia que ele era afável, muito prestável. Ele era assim, fazia-se muito prestável, submisso, lambe botas, para poder aproximar-se das pessoas e, nomeadamente, das crianças. Você via-o numa festa da Casa Pia e lá estava ele a servir de motorista do provedor e a ajudar toda a gente a estacionar os carros. Mas os miúdos... tinham um pânico incrível dele. No fundo, era um sabujo". Adelino Granja, não tem dúvidas de que o advogado de Carlos Silvino vai tentar explorar ao máximo a alegada "dupla personalidade" do cliente: "Realmente, ele ajudava a provedoria em tudo, na jardinagem, a fazer fretes, a transportar daqui para ali, era muito prestável para a provedoria", afirma. "Inclusivamente em relação às crianças, parecia muito meiguinho mas depois revelava a sua faceta de violador". À noite, as coisas mudavam. "Era como um vampiro. À noite, assediava as crianças. Era sempre à noite que havia tráfico de crianças que saíam da Casa Pia e acabavam por aparecer nessa mesma noite ou no dia seguinte", conta o advogado Adelino Granja. António Bastos, o advogado que representou Carlos na época, conta que o caso de "Bibi" lhe chegou às mãos "através de outras pessoas que davam óptimas referências dele". Ao requerer a suspensão da eficácia do despacho de 89, o advogado de Setúbal descreve Carlos Silvino como alguém "sem família", cuja única "família fora sempre a Casa Pia" e "totalmente impreparado para enfrentar o mundo exterior": "É pessoa totalmente inexperiente na movimentação no mercado de emprego, algo simples de espírito, ingénuo e impreparado para reagir contra a adversidade do presente momento". A relação profissional de Bastos e Carlos Silvino terminaria mal, no entanto. Carlos terá juntado documentos ao processo à revelia do advogado e este renunciou à procuração. O que é certo é que em Abril de 91, o STA profere um acórdão que, "por insuficiência de individualização das faltas disciplinares", anula o despacho punitivo e determina a readmissão de "Bibi" na Casa Pia. Este recebe o dinheiro que não lhe fora pago desde 89, acrescido de juros de mora e é readmitido a 24 de Junho de 1991. Como Carlos morava na Rua Alexandre Sá Pinto, a umas centenas de metros do Colégio Nuno Álvares, o provedor Luís Rebelo solicita a Vieira de Castro, na altura secretário de Estado da Segurança Social, a sua transferência para um serviço do Ministério da Segurança Social "onde este não tivesse contactos com menores". Carlos não aceita ser transferido e alega que recorrerá de novo ao STA se o transferirem compulsivamente. Confusão na oficina A conflitualidade de Carlos Silvino, entretanto motorista dos autocarros que levavam os rapazes aos jogos de futebol, causa de novo problemas nos anos 90, desta vez na oficina de mecânica. No final da década, a situação na oficina é de tal ordem que a provedoria manda fazer uma auditoria à mesma. O resultado é tudo menos pacífico: O mecânico Fernando Vicente acusa-o de insultar os mecânicos e de o "acusar de andar a roubar". Outro mecânico, Paulo Soares, acusa Carlos de se ter feito passar ao telefone pelo provedor adjunto para que a sua viatura fosse revistada. O responsável da frota, Amaral Macedo, vai mais longe. Numa comunicação ao director do Colégio Pina Manique, acusa "Bibi" de o ter agredido física e verbalmente na presença de motoristas e mecânicos, de lhe chamar "ladrão", de perseguir os mecânicos "espreitando e tirando fotografias do gradeamento exterior e do interior dos autocarros", de "espreitar os mesmos escondido através da janela do lar", de "invadir as instalações diariamente após o horário laboral". Carlos Silvino contra-ataca. Acusa o mecânico Vicente de "roubar óleo", acusa os mecânicos em geral de efectuarem reparações em carros particulares e de não atenderem as suas solicitações de serviço "por estarem a jogar computador ou a tomar café". Na auditoria à oficina, é o próprio auditor a reconhecer: "Nota-se aí um certo clima de instabilidade que teima em ficar e parece que causada pela persistência de Carlos Silvino da Silva em continuar a fazer acusações". Em Fevereiro de 2001, Carlos Silvino parece ganhar mais um braço-de-ferro. Amaral Macedo é afastado do cargo de gestor da frota. Mas as coisas vão voltar a complicar-se e de vez, para um homem que sobreviveu a três décadas de turbulência e problemas na Casa Pia. Pais de alunos alegadamente assediados por ele apresentam queixas que dão origem a investigações na PJ. Já este ano, em Setembro, a mãe de uma alegada vítima de violação queixa-se também à PJ. O filme parece estar prestes a chegar ao fim. Carlos é aposentado compulsivamente na sequência de novo processo disciplinar. A 7 de Novembro é emitido um mandado de detenção. "Bibi" é preso preventivamente dia 25. "Ele teve sempre o apoio da provedoria mas desta vez foi demais, eram casos a mais...", afirma Adelino Granja. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Abusos de "Bibi" não eram um caso isolado na instituição

Filmes de pornografia infantil envolvem a rede da Casa Pia

Denúncias noticiadas em 1981 não tiveram eco nos jornais

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